O caso APAE. Ao mestre com carinho… e críticas.

Antes de mais nada, é necessário deixar claro que considero Luis Nassif um dos meus professores informais.  O meu dileto e querido professor de jornalismo. Aprendo, aprendemos, muito com ele. Principalmente, aprendemos a ler criticamente uma matéria jornalística, a encontrar as intenções e as distorções dentro dos fatos noticiados.  Seu blog tem sido uma universidade aberta e um espaço de convivência democrática para mim e, creio, para todos que o frequentam.

Agora, como diria um amigo: “procedida a anestesia…”

Não tenho procuração para defender as APAEs, nem a intenção expressa de fazê-lo, creio-as suficientemente robustas para defenderem a si próprias, porém, tem me incomodado particularmente a campanha que Nassif vem conduzindo contra elas em seu blog.

E isso pouco tem a ver com a educação inclusiva em si, embora a tenha como pano de fundo. Temos, aparente e espero momentaneamente, visões opostas a respeito da condução prática desse modelo de educação. Contudo, se considero a minha visão legítima, devo considerar a de Luis Nassif legítima também.

O que particularmente me incomoda são dois pontos, uma aparente contradição e o conceito de bom jornalismo aprendido com o próprio Nassif.

A contradição dá-se em relação à imagem das APAEs que Nassif nos passa e a que tenho delas.

A APAE sempre me pareceu uma entidade meritória, fundada em 1954, portanto, há 60 anos presente na nossa sociedade, formada por pais de deficientes e voluntários. 

Nada soube que pudesse desaboná-la e mudar a minha visão sobre ela – nenhum escândalo em que ela estivesse envolvida nesta terra de escândalos me foi noticiado.  E, de repente, essa mesma APAE nos é apresentada como uma entidade segregacionista.  Luis Nassif chega, em um arroubo, por certo, a usar a palavra “confinamento”.  As APAEs praticando algo análogo ao cárcere privado, um absurdo.

Em que as APAEs seriam mais segregacionistas que escolas confessionais, por exemplo? Nelas, as confessionais, crianças católicas frequentam escolas católicas, adventistas frequentam escolas adventistas e judias frequentam escolas judaicas.  Estariam segregadas em suas comunidades? Por que Luis Nassif não assaca contra elas a mesma gana com que assaca seus textos contra as escolas da APAE?

As APAEs são um mal para as crianças? Pais e amigos fariam mal a seus entes queridos?

Essa contradição nos textos de Nassif me incomoda muito.

Quanto ao bom jornalismo, quanto me dói criticar meu professor.

Tomarei como exemplo o texto de 14/11/2013 No Paraná APAE bancam clubes sociais privados.

https://jornalggn.com.br/noticia/no-parana-recursos-da-apae-bancam-clubes-sociais-privados

Não posso acusá-lo, com dor no coração por isso, de ser um exemplo do bom jornalismo que nos acostumamos a receber de Nassif.

A começar pelo “manchetismo”. A manchete diz uma coisa, o texto diz outra. Quantas vezes criticamos no blog essa prática na grande imprensa?

Quem só lê a manchete pressupõem um escândalo generalizado ocorrendo nas APAEs do Estado do Paraná.  Vai se ao texto e está lá:

 “Antes, é importante ressaltar que o caso California (a cidade onde a APAE local mantém um clube de campo) não pode ser generalizado sem, antes, se proceder a uma boa pesquisa. Mas é ilustrativo da absoluta falta de controle sobre o sistema Apae..

O texto contradiz a manchete. Agora, seria um caso isolado à cidade de Califórnia. Nem isso é, veremos mais abaixo e, se trata-se de um caso isolado, seria ilustrativo de que?

Mas comecemos o texto pelo começo. Fatos distorcidos: “A intenção do programa (o “Todos Iguais Pela Educação” do governo Beto Richa no Paraná) é conceder “às escolas básicas de Educação Especial, mantidas pelas Apaes e outras instituições sociais, os mesmos direitos e recursos destinados às escolas públicas da rede estadual”.

O que é apresentado como um privilégio as APAEs é, na verdade, trata-las como são tratadas as escolas estaduais, destinando a elas, que prestam serviços públicos, os mesmos recursos destinado ás escolas públicas. Dinheiro público em valores equânimes sendo utilizado em benefício público. Onde o favorecimento indevido?

“Serão R$ 420 milhões para permitir que as escolas Apae possam concorrer com a rede regular de ensino.”.

O conceito de concorrência não se aplica aqui. APAE é uma organização social sem fins lucrativos, reconhecida como de utilidade pública. O colégio ETAPA concorre com o colégio OBJETIVO em busca se seus clientes-alunos, a APAE não concorre com a escola pública, tanto quanto o Hospital das Clínicas de São Paulo, que pertence à Universidade de São Paulo, não concorre com o SUS.

Vamos escolher aleatoriamente uma delas, a da cidade de Califórnia, a primeira mencionada no comunicado da Secretaria da Educação (http://tinyurl.com/kaw69cb).

Não se deixe enganar, a escolha não foi aleatória.

O endereço remete a uma página do Governo do Paraná sobre a destinação de verbas às escolas de educação especial. Nele, realmente a primeira escola mencionada é Califórnia, a segunda é Marilândia, talvez porque em ordem alfabética o “C” de Califórnia venha antes do “M” de Marilândia.

Mas não me parece que foi por isso a escolha “aleatória” de Nassif. A história da APAE de Marilândia não colabora para a tese de benefício indevido e malversação de recursos públicos que Luis Nassif tenta construir.

O que ficamos sabendo?

A instituição (APAE de Marilândia) iniciou construção e reforma há alguns anos com recursos próprios. No entanto, as obras de reforma não foram concluídas. Com o dinheiro que será repassado por convênio, cerca de R$ 150 mil, será possível terminar a obra que inclui cozinha, cozinha experimental, sala de música, lavanderia, sala de arte, pátio coberto e banheiros adaptados.”

Nada que impressione ou escandalize. Pouco dinheiro, R$ 150 mil, utilizados para um fim prosaico, a reforma da cozinha e adaptação de banheiros. Nada mais que um socorro á uma instituição sem fins lucrativos e que presta serviços públicos.

Já, Califórnia …

Pelo texto de Nassif:

Uma visita ao site da Apae de California revela algumas surpresas (http://glurl.co/cMu). Todas suas atividades têm isenção tributária. Mas o que se vê na Apae de California é um conjunto de atividades econômicas e sociais, a maior parte das quais não relacionada com a educação especial.

Ah, a questão fiscal. É um cipoal. E não só em relação à prestação de contas da APAE. Anos atrás, quando meus filhos estudaram no ensino básico, as escolas que frequentaram, particulares, consumiam boa parte do meu orçamento doméstico. Na época, no entanto, que eu saiba, estavam isentas de impostos. Eram parte de uma entidade mantenedora “sem fins lucrativos”. Não sei como está hoje. As APAEs são entidades sem fins lucrativos, deveriam ser taxados as suas fontes de recursos, caso elas derivem de atividades econômicas? Sinceramente, não sei.

A Apae mantem uma escola privada – onde não entram alunos com deficiência -, um clube esportivo, uma gráfica, um buffet, todos debaixo do manto da isenção tributária e todos compartilhando a mesma estrutura física.”

Finalmente o escândalo. Ocultos sob o “manto” da APAE um clube esportivo (é de campo), uma gráfica e, pasmem, um buffet. Tem alguém ganhando dinheiro, não pagando impostos e utilizando a estrutura da APAE. Certo?

Não.

Aqui precisamos entrar com um conceito, o de “sustentabilidade no terceiro setor”.

Procure por ele na internet. Há trabalhos muito interessantes. Porém, em poucas palavras, trata-se da necessidade que as entidades têm de gerar recursos próprios para financiar suas atividades e reduzir a dependência do poder público e das doações –ambos, sujeitos a contingências várias.

O conceito popularizou-se nos anos 90 sob o governo FHC e seu  “Estado mínimo”. Quem viveu essa época pode imaginar o que foi gerir uma instituição dependente de repasses do Estado.

É um tema que carrega bastante controvérsia e sua prática riscos de distorções dos fins filantrópicos da entidade que o adota. Ainda assim, é praticado ou buscado por quase todas, se não todas, as entidades civis de interesse público. SENAI e SENAC, por exemplo.

Visitando-se a página da APAE de Califórnia isso fica bem claro. Todas as atividades, escola, clube e gráfica são apresentadas como parte do esforço de auto-sustentabilidade da entidade.

Há duas escolas, a Escola Diego Henrique Gomes, particular e aparentemente com uma clientela de crianças ditas normais e a Escola Joana Carreira Portelinha – Educação Infantil e Ensino Fundamental na Modalidade de Educação Especial dedicada às deficientes. 

Depreender daí que a escola Joana Carreira Portelinha seja um local de “confinamento” de crianças vem do exagero e extrapolação ideológica de quem confunde educação exclusiva, no sentido de especializada, com educação excludente. Óbvio está que são conceitos diferentes. Confundi-los por desconhecimento é uma coisa, confundi-los conhecendo a diferença entre eles é outra.

Aparentemente, pela foto aérea apresentada no site da entidade, ambas dividem a mesma estrutura física de apoio.

Pelo que entendi, uma escola, a particular, gera recursos para a outra, a de ensino especial.

A gráfica presta serviços à APAE e se mantém com recursos advindos de serviços prestados ao público em geral. O Buffet idem, e também é a parte prática dos cursos profissionalizantes de garçons e de culinária ministrados pela entidade.

O clube de campo é frequentado pelos deficientes e mantido pela APAE e pelas mensalidades dos sócios. Pelo menos é o que depreende da sua apresentação no site da APAE Califórnia:

 “O Clube Apae foi o primeiro programa de auto-sustentação; em meados 1995 iniciou a  construção … Com a implantação desse programa propiciamos uma maior integração da pessoa com deficiência junto aos sócios que frequentam o Clube, pois as atividades desportivas acontecem simultaneamente. … face ao contato contínuo do sócio com a instituição, as pessoas manifestam maior interesse em conhecer mais sobre as deficiências. Com frequência, a Apae promove eventos que envolvem toda a comunidade, alunos e familiares.”

Com tudo que se possa falar dos riscos distorção na auto-sustentabilidade do terceiro setor, não vejo como acusar, até aqui, a  APAE Califórnia de desvios na utilização de recursos. Seria necessário entrar na contabilidade da entidade. Creio que existam órgãos do poder público que façam isso e não lembro de nada sobre as APAEs vindo deles. Tampouco Nassif apresenta algum dado que possa ser utilizado como indício corrupção.

Agora, entramos em outro ponto não recomendável ao bom jornalismo sobre o qual Luis Nassif já nos deu mais de uma aula. Ou seja, a prática de onde não “há fatos, levanta-se suspeitas”.

Vejamos.

 “A Apae foi presidida por Ana Mazeto, que se tornou a atual prefeita da cidade e correligionária de Beto Richa.

Tentativa de ligar um fato a outro sem uma clara relação causal. O quem tem a prefeitura a ver com a APAE? E, ser correligionária de Beto Richa é demérito de caráter?

“A prefeita assumiu a prefeitura denunciando seu endividamento.”

Fazendo elogios é que não tiraria o prefeito no cargo, caso esse fosse de partido adversário.

“No primeiro ano, no entanto, adquiriu uma perua Freemont, da Fiat, por R$ 105 mil, para servir seu gabinete (http://tinyurl.com/kcxaky5). Revela a maneira como trata recursos públicos.”

Não revela nada.

Lula foi alvo de iguais críticas quando no seu primeiro ano de governo trocou o avião da presidência. Para desgastá-lo, a grande imprensa fez até concurso para saber que nome dar ao avião. Teve quem sugerisse que como o avião da presidência americana chama-se “air force one”, o da presidência brasileira deveria ser chamado de “air force cinquenta e one”. Jocosamente passaram a chama-lo de “Aero-Lula”, por fim e até hoje. Lula comprou o avião e fez o governo que fez. Nassif endossaria as críticas à compra do avião, nos mesmos termos?

Após uma breve visita à prefeita e ex-preseidente da APAE de Califórnia, visita da qual deixa-nos a impressão da prefeita ser uma pessoa perdulária com os recursos públicos e escassos, Luis Nassif volta à APAE.

O que justifica essa superestrutura, os repasses do MEC e da Secretaria da Educação e a isenção fiscal é uma escola especial que atende a 83 alunos, de bebês de três meses a idosos, 19 em período integral (segundo a Secretaria de Educação do Município, seriam 60 atendidos).

É justo, no meu entender. A quem atende gratuitamente de bebês a idosos portadores de necessidades especiais deve ser dado estrutura, verbas públicas e isenção fiscal. O número de alunos, 83 ou 60, é pequeno? Em uma cidade de 8 mil habitantes, talvez não.

“Faturamento em gráfica, buffets, escola particular, clube social, mais os recursos financeiros do Ministério da Educação e da Secretaria da Educação do Paraná, tudo isso para atender a 83 alunos ou 60 alunos.”

Antes de sairmos achando que é muito recurso para pouco benefício é preciso primeiro saber quantos são esses recursos, qual a qualidade do serviço prestado e quanto são os custos disso. Não tenho essa informação. Se Nassif a apresentou, passou-me despercebido.

Nassif apresenta ainda a estrutura funcional da entidade voltada à educação especial:

Bancados pela Secretaria de Educação do Paraná: 16 Professores;  01 Secretária;  01 Professor Ed. Física;  01 Professor Arte; 02 Atendentes; 01 Merendeira; 03 Auxiliar de Serviços Gerais;  01 Instrutor;  02 Professores PSS.

Bancados pela prefeitura de California: 01 Atendente; 01 Auxiliar de Serviços Gerais, 01 Telefonista;  01 Fisioterapeuta;  01 Professor Ed. Física.

Bancado pelo SUS: 01 Assistente social (40h);  01 Psicóloga (32h);  03 Fisioterapeutas (24h);  02 Fonoaudiólogas (20h); 01 Terapeuta Ocupacional (8h);  01 Neuro Pediatra (8h);   01 Auxiliar de Serviços Gerais.

Nossa, isso tudo para 83 ou 60 alunos? Sem dúvida é de matar de inveja quem lecionou nos anos 90 em escola de bairro de Diadema – SP e dispunha para isso apenas de giz e cuspe. O giz o Estado fornecia, o cuspe o professor trazia de casa.

Mas lembremo-nos, trata-se de alunos portadores de necessidades especiais em faixas etárias que vão de bebês a idosos. E se realmente a APAE lhes proporciona educação infantil, ensino fundamental – 1º ciclo, EJA – ensino de jovens e adultos, laboratório de informática, psicologia, fonoaudiologia, assistência social e terapia educacional, pode ser até que a escola tenha capacidade para receber muito mais alunos que hoje, mas a estrutura não me parece superdimensionada. Nada que me pareça um cabide de empregos.

Note-se a informação na página da Escola Joana Carreira Portelinha de Educação Especial: “Atualmente a Escola de Educação Especial Joana Carreira Portelinha atende 83 alunos especiais distribuídos em 12 turmas conforme faixa etária e programas de atendimento.”.

São 83 alunos mas são necessárias 12 turmas para atendê-los. Na educação regular para alunos ditos normais, essas mesmas 12 turmas atenderiam em média 360 alunos. Educação especial e especializada é cara.

Há na página dessa escola um dado que parece ter passado despercebido do Nassif. Estranhei a informação referente ao ensino fundamental – 1º ciclo. Primeiro ciclo apenas? É pouco. Fui conferir, e o que encontrei?

A medida em que o aluno interage com o processo de alfabetização, gradativamente apresenta um nível de assimilação dos conteúdos que, durante as sondagens e avaliações diagnósticas, certifica-se a possibilidade de inserção do mesmo na rede Regular de Ensino.”

Talvez a Escola Joana Portelinha não tenha uma filosofia de ensino tão distante daquela preconizada pelo Nassif.

E é isso, por fim, que me machuca quando alguém que admiro escreve algo assim como o que encerra o texto do Nassif:

“No site da Secretaria da Educação do Paraná, soa como escárnio a proposta do programa “Todos iguais pela educação”, de jogar R$ 420 milhões nas Apaes do estado, para que tenham condições de competir “em igualdade de condições”, com a rede pública.”

Escárnio? O Paraná está jogando dinheiro fora quando subvenciona a APAE? O objetivo é “aumentar a competitividade” dentro do sistema público de ensino?

Escárnio? Seria escárnio prover educação especial e especializa para quem precisa dela, para portadores de necessidades também especiais?

Palavras tão duras. O que faria Luis Nassif, alguém sempre tão consciente, tão humano, usar palavras tão duras?

Arrisco que paixão. Quero crer que paixão. Nassif é um homem apaixonado. Como cobrar coerência de um homem apaixonado se o motivo da sua paixão, em sentido contrário, lhe cobra a incoerência?

Explicar o que a paixão tem a ver com tudo isso é, no entanto, coisa que demandaria muito mais tempo e espaço. E, sem dúvida, aqui não é o lugar nem o momento.

Enfim, “Na curva perigosa dos cinquenta derrapei neste amor. Que dor!”.

Redação

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