O catador assassinado e o tempo da angústia, por Patrick Mariano

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Foto: Jornalistas Livres

Do Justificando

O tempo da angústia

Por Patrick Mariano

Ricardo Teixeira dos Santos tinha 39 anos quando recebeu o primeiro tiro no peito. Ainda vivo, agonizando, clamou por ajuda. Recebeu mais dois tiros enquanto já estava no chão. Antes mesmo de o atendimento médico chegar, seu corpo foi embrulhado num plástico escuro, colocado em uma viatura que partiu em velocidade sob protestos de quem acompanhava a cena.

Um amigo tentou socorrê-lo, mas teve quase todos os dedos quebrados por um policial. Um morador que filmou a cena teve contra si uma escopeta apontada para o peito. O policial retirou-lhe o celular e apagou todos os seus arquivos.

De Ricardo, pouco ou quase nada se sabe. Chegou há 15 anos no bairro de Pinheiros, em São Paulo, trabalhou como gerente de uma loja e atualmente ganhava 50 reais por dia recolhendo garrafas e materiais para reciclagem com uma carroça.

De patrimônio deve ter deixado, além da própria carroça, alguns panos e um cachorro que o acompanhava pelas ruas da maior cidade da América Latina. Trabalhava recolhendo os restos de uma sociedade cada vez mais assentada sobre os laços do consumo. Ricardo vivia de recolher o que consumimos e descartamos. Retrato perfeito de um tempo em que a vida mesmo se tornou objeto descartável, sem valor algum.

Ricardo foi morto por agentes do Estado. O motivo: um pedaço de madeira com o qual possivelmente encenava o drama da sua própria vida. Nunca representou qualquer perigo, muito menos na hora da sua morte. Foi vítima de uma política estatal de extermínio que, assim como as garrafas que recolhe, despreza e se desfaz da vida dos chamados indesejáveis do sistema capitalista. A vida se torna, então, uma garrafa pet pronta para ser lançada ao lixo ou esquecida por aí, como um objeto incômodo.  

Morava na mesma cidade de um prefeito que lança máquinas que destroem a parede de casas de pessoas pobres com elas dentro, obrigando-as a sair com a roupa do corpo entre escombros, como se a vida fosse um mero entulho.

O tempo da angústia.

Um dia antes da sua morte, o Senado Federal aprovou a “reforma trabalhista” ou aquilo que pode ser compreendido como o maior ataque aos direitos dos trabalhadores desde a existência da CLT.

Quatro dias antes de Ricardo ser assassinado o Brasil voltou a sair no mapa mundial da fome da Organização das Nações Unidas. Isso significa ao menos de 5% da sua população sem se alimentar o suficiente. Os cortes no orçamento para programas sociais, bem como o congelamento desses gastos por décadas, medidas realizadas pelo atual governo com amplo apoio dos grandes conglomerados de comunicação, fará com que a tragédia social no Brasil esteja apenas começando.

Entrar no mapa mundial da fome choca menos que o país ter o índice de investimento rebaixado por uma agência internacional de riscos. No capitalismo versão neoliberal, não há dúvidas entre o lucro ou a vida.

Vivemos tempos de angústia, mas eles podem e tornar-se-ão tempos de revolta. E é somente no tempo da revolta que será possível transformar e renascer.

No ferro velho em que trocava os materiais que recolhia, restou de Ricardo a carroça, os brinquedos que o acompanhava pelas ruas de São Paulo (um cachorro de pelúcia, um navio antigo de plástico e um teclado de criança). Ficou, também, para os amigos, a lembrança da páscoa. Aquela em que dividiu um ovo de chocolate da Kopenhagen que havia ganho na rua. Foi a última vez que pode celebrar o renascimento de Cristo.

Patrick Mariano é escritor. Junto a Marcelo Semer, Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe e Giane Ambrósio Álvares, assina a coluna ContraCorrentes, publicada todo sábado no Justificando.

Redação

8 Comentários

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  1. E a gente fazendo conta pro dia que vai chegar

    E a gente fazendo conta pro dia que vai chegar, caso a gente não tenha sido abatido antes da chegada de tal dia.

     

    A volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar

  2. Será

    que a parte lúcida da elite dominante brasileira ainda não percebeu que nuvens carregadas estão a se formar? Será que ela não perebeu que o seu sono tranquilo a cada dia que passa está mais ameaçado? Muito cuidado, pois, para o Tempo e para a História não há prova de segunda época.

  3. Mais um entre milhares

    É por isto que me indignei quando, acuada pela corja golpista, a presidenta Dilma alertou, demagogicamente, que se fazem isto com uma presidenta, o que farão contra os mais pobres do país. Tivesse ela tomado conhecimento ao menos do massacre do Pinheirinho, saberia de pronto que a sua lógica estava um tanto invertida, digamos assim. Tanta indiferença em relação aos abusos cometidos contra os mais humildes do país, sem nenhuma reação às políticas estaduais de segurança publica, que o abuso cresceu, cresceu até chegar nela. Se matam tabalhadores de forma tão ostensiva desde muito antes do Lula sem que isto seja prioridade de luta para o Governo Federal, o que dizer quando um malandro ligado ao Bolsonaro se infiltra numa comitiva internacional do Governo e chama a presidenta de puta diante das câmeras do mundo todo? Se o governo preferiu ser republicano e deixar passar, fica a dúvida se não foi mesmo é falta de moral pra reagir.

  4. Omissão de socorro é crime

    Brasil volta ao Mapa da Fome.

    Isso significa ao menos de 5% da sua população sem se alimentar o suficiente.

    210.000.000 : 100 X 5 = 10.500.000 de pessoas, cidadãos brasileiros, sem se alimentar o suficiente.

    Omissão de Socorro é crime previsto no Código Penal Brasileiro em seu artigo 135.

    O objetivo da lei é a proteção  da vida e da saúde, e a punição prevista é de  detenção de um a seis meses e multa.

    Brasileiros: passivos, omissos e criminosos.

    1. omissão….

      39 anos. Ou seja a mesma idade da redemocratização brasileira a partir da Anistia de 1979. Nasceu e cresceu nesta nova fase do país sob o comando, leis e Constituição elaborados por figuras políticas que estavam fora do país e retornavam. E o que estes medíocres deram à população brasileira fora farsas, mentiras, roubos e corrupção? Este rapaz teve Crehes de melhor qualidade? E Escolas? E Cursos Profissionalizantes? E Lazer ou outro tipo de Educação? Infraestrutura e Apoio Familiar melhorado com novas condições sociais? Ou somente mais achaque e censura? Foi parar nas drogas e nas ruas como uma maciça parte da juventude da sua época e das posteriores. Então a PM, de pais de familia, sob o rigor militar, com salários baixos, condições péssimas, é que devem fazer o serviço social que párias não fizeram por 4 décadas? Não tem como esconder a verdade nem embaixo de censura. São aulo foi governada por “coxinhas e mortadelas” praticamente por todo este período. A verdade esta aí para quem quiser enxergar. Nos livrarmos de políticos tão mediocres nos faz urgente, sob o risco de passarmos mais décadas np nível raso de Erundina’s, Marta’s, Serra, Haddad, Covas, Dória, Alckmin… Até onde poderemos descer mais?

      1. Quer dizer que os Militares não têm culpa de nada?

        Então os Milicos que mergulharam o Brasil nas trevas de 64 a 85 não têm nada a ver com a miséria e ignorância atuais, Zé Sérgio?

        Se alguém invade sua casa, destróia parte dela, leva tudo o que você tem e depois vai embora. Você volta para a sua casa. Você vai dar e levar a mesma vida que levava antes da invasão imediatamente após o retorno?

        Você acha que um Presidente eleito em 2018 que seja bem intencionado, tem como reverter esse recuo social e histórico do Brasil promovido pelos atuais golpistas em menos de 30 anos?

        Se o governo eleito em 2018 não reverter a atual situação em 6 meses, você não vai mais culpar os golpistas, mas apenas o governo eleito. É isso mesmo?

  5. Atacaram um acampamento no

    Atacaram um acampamento no Pará. O terror esta a solta. Como ataca e mata pobres a fascista sociedade brasileira se mantém calada. Matar pobres e pretos não é crime neste maldito país. Tenho vergonha de minha cidadania.

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