O dia em que vi Papai Noel

            Eu devia ter uns cinco anos quando meus pais resolveram passar o Natal em Poços de Caldas. Morávamos em Caconde, uma pequena estância climática na região da Mantiqueira, fincada a uns cinquenta quilômetros de nosso não menos aprazível destino. Daquele passeio tão raro em tempos tão difíceis, guardamos em família, no fundo de uma velha caixa de sapatos, apenas a fotografia em monóculo tirada na praça. Eu e meu irmão estamos enfiados em jaquetas de napa beige-claro, que até hoje remetem ao meu nariz interior um cheiro bom de cola e trama em tecido plástico. Eram jaquetas bem desconfortáveis, como também foram os macacões de áspera lã com alças nos ombros que minha mãe fez, sempre iguaizinhos para os dois filhos não-gêmeos, embora nascidos no mesmo dia de anos diferentes.

            Ficamos os quatro no mesmo aposento de um hotel bem simples. Em minha memória, no entanto, tudo ainda gira como se não houvesse mais ninguém no quarto durante aquela noite. Eu ia pegar no sono. Do escuro na cabeceira da cama, enxergava a pequena entrada do apartamento, iluminada pela luz que vazava do corredor externo, um facho amarelo trazido pela meia-lua envidraçada no topo de uma porta muito alta. Hoje sei que o mundo nos parece bem maior quando somos crianças. A porta – que não devia ser tão grande assim como ainda imagino – abriu-se. Foi então que vi o verdadeiro Papai Noel pela primeira e única vez. Ele entrou no quarto devagarinho, vestindo sua habitual roupa vermelha. Depositou sobre a penteadeira um tamborzinho atado a duas baquetas de madeira, em uma operação de entrega bastante rápida, virou as costas e saiu silenciosamente. Não fiquei espantado, aquilo era um fato natural.

            No dia seguinte, estávamos todos reunidos, pai, mãe e cada filho com seu brinquedo. Lá estava meu tamborzinho atado às baquetas de madeira, adornado nas laterais por losangos azuis. Aquele foi meu primeiro brinquedo comprado em loja, um produto comercial, digamos assim, num tempo em que as coisas vinham sem abundância, num tempo em que se cravava palitos em chuchus para transformá-los em maravilhosos bichinhos da ilusão, quando se era feliz com pouca posse. É certo que meus pais penaram com a barulheira espalhada por um novato percussionista nos dias seguintes. Seu pequeno erro de avaliação custou-lhes alguns tormentos auditivos, talvez algum arrependimento, mas serviram para indicar-me os primeiros tropeços no caminho do amor à música. E reforçaram o espírito mágico do Natal em meu coração de criança através da certeza no Papai Noel.

            Cerca de um ano depois, sentada à beira da cama, minha mãe decidiu revelar-me: filho, Papai Noel não existe. Chorei e briguei com ela, sentindo-me trapaceado, incapaz de distinguir suas boas intenções, cego às tantas alegrias produzidas por uma mentira banal. O mito morria e eu bradava cheio de indignação contra uma suposta desonestidade materna. Hoje, livre da sensação de engodo, enternecido por seu propósito inocente, gostaria de acreditar na minha reação diante daquela “falta de sinceridade” como o prenúncio de um traço que iria me acompanhar por toda a vida, um apego a essa mesma verdade que tantas vezes traímos.

            A mente possui o dom de reconstruir as lembranças. Preenche as lacunas e corrige o passado segundo as nossas conveniências mais secretas. Pois é assim que, habilidosamente tratadas, guardo na memória essas recordações da linha do tempo, escolhidas e dispostas com paciente carinho ao longo dos anos, prontas para um resgate a qualquer instante, faíscas de luz estelar que conduzem o caminhante até o fim da jornada.

 

P.S.: escrevi estas recordações depois de ler “Poços de Caldas em pé de guerra” (http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/pocos-de-caldas-em-pe-de-guerra) , sobre umas pilhérias de mau gosto feitas por comentaristas esportivos.

Redação

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