O diabo mora nas bolinhas de papel

  O candidato Serra pretendeu enganar a opinião pública com uma encenação hilária. Para isso, contou com o habitual suporte dos grandes meios de comunicação. Quando ouvi falar do assunto pela primeira vez, em uma daquelas rápidas olhadelas na internet durante o expediente da quarta-feira, fiquei bastante aborrecido com a notícia. À noite, os jornais da televisão reverberavam a manchete. Pensei comigo, isso vai virar uma bomba, vão explorar o tema incansavelmente até o dia da eleição. Pouco importa se as manifestações acaloradas na política das ruas sejam recíprocas e desprovidas de aval das lideranças de campanha. Vitimizar foi a palavra que me veio à mente, que se castigava sob o peso da indignação.

   Tarde da noite, fui à blogosfera e o outro lado do universo se fez presente. A tal agressão estava em um vídeo que se espalhara a partir de imagens de um canal da TV aberta. Minha primeira reação ao ver o filme foi cair na risada. Na curta cena exibida, o homem que se preparou durante toda a sua vida para ser Presidente do Brasil discursa em meio a um grupo de pessoas. De repente, surge de trás, arremessada suavemente por alguém distante do foco da câmera, uma bolinha de papel, uma daquelas marotas bolinhas de papel que vi muitas vezes atiradas em meio à balbúrdia das salas de aula do primeiro grau. Pausa.

  A bolinha assumira contornos diferentes, de acordo com o viés ideológico dos chamados formadores de opinião. Seria um pássaro? Um avião? Uns disseram que foi um rolo de fita crepe. Para outros, mais afoitos, o míssil continha em seu núcleo uma bobina de papel. Meu espírito de engenheiro, ao ouvir a palavra bobina, logo associou o injuriante balaço a peças monstruosas da indústria mecânica pesada russa.

  Pronto. O cenário de horror estava montado. Contudo, o estratagema revelava uma incrível puerilidade. O contundente míssil guardava em seu núcleo um ingrediente muito mais grave que aquele invocado pelos seus detratores: trazia consigo a capacidade de expor ao respeitável público doses cavalares de flacidez moral. Acontece que, no mundo atual, nada escapa aos nossos olhos.

  Desativemos a pausa e voltemos ao filme. O dançante objeto descreve uma parábola e percute a traseira da cabeça do tão preparado candidato. A câmera congela, para que vejamos o exato momento em que o petardo atinge a cabeçorra. Em seguida, o quadro a quadro é retomado e o artefato, depois de quicar com graciosa elasticidade,  reflui em nova parábola, dessa vez menor e rumo ao solo. Se a cena caísse nas mãos de um dos editores do Batman, na versão igualmente hilária sob a forma de seriado, certamente receberia aqueles balões onomatopaicos: primeiro, um “toimmmm”, depois um humilhado “ploft”. O candidato não sente que foi alvejado, tão insignificante é o golpe. Pobre balística! A vítima prossegue gesticulando, enquanto olha para baixo, curioso, para identificar um movimento que lhe pareceu estranho no ar. Comecei a rir, mas a minha risada continha um fio de nervosismo. Minutos depois, segundo a narração do episódio, o candidato dispara (ou recebe) um telefonema. Imediatamente, leva a mão esquerda ao topo da reluzente cabeça, posição anatômica distante daquela em que se deu a suposta concussão. Nos instantes seguintes já são as duas mãos que envolvem a calva, achegam-se os assessores e anjos da guarda. Cliquemos nas duas barras verticais, nova pausa.

   José Serra, o Rojas tupiniquim, foi conduzido pelos anjos da guarda a um hospital, após ser tomado por insuportável tonteira. Lá, enfiaram sua admirável cabeça em um tomógrafo computadorizado, equipamento tão sofisticado quanto distante de alguns seres mais, digamos, simplórios.

  Cliquemos agora em “Play”, para continuar. O homem que sempre reafirma cumprir sua palavra retorna à cena, saído de um veículo tão branco como uma ambulância. O rosto parece ainda mais abatido que de costume, a voz soa choraminguenta. Segundo suas palavras, todos estão diante de uma autêntica vítima do repulsivo ódio de seus inimigos. Profere ainda belas palavras, que não se deve tratar adversários como inimigos. Lembrei-me de seus notáveis adversários, alguns pertencentes ao campo amigo: Aécio Neves, Geraldo Alckmin, Roseana Sarney, Tasso Jeraissati, e por aí vai.

  O filme-flagrante logo chega ao fim. Dou risada. Meu filho, no dia seguinte, dirá que também caiu na risada, a ponto de não se conter. Minha filha, também ligará no meu trabalho para contar que o assunto está bombando no “twiter”. Contudo, não sei se rio ou se choro, porque é cômico pegar o criminoso (seria este um termo excessivamente duro?) com a boca na botija de maneira tão patética, mas constatar a indigência moral de uma das figuras mais proeminentes do país também é de embrulhar o estômago. Alegra-me saber que a mentira andou por meio de pernas curtas, mas é de lascar quando sabemos que a mesma deslavada mentira partiu de alguém portador de 40% das preferências do eleitorado.

  Minha mãe costuma dizer que o diabo mora nos detalhes. Tenho acompanhado as peripécias do nosso astucioso Chapolim Colorado, tomei conhecimento de relatos da maior gravidade, coisa de cachorro grande. Contudo, uma simples bolinha de papel, imbuída de toda a sua singeleza e peraltice, possui o poder simbólico de uma explosão nuclear. As parábolas da bolinha nos deixam estupefatos diante da farsa, e quem encena a farsa é um farsante. Mais uma vez pergunto, seria este um termo excessivamente duro? Longe de mim ser um moralista. Concordo plenamente com o que disse um pensador: o moralismo é o último refúgio dos canalhas. Todos cometemos as nossas burradas. Há desonestos na banda tucana e há desonestos na banda petista, talvez um pouco mais lá do que cá, assim quero crer, mas a verdade é que ninguém é santo. O gene egoísta de Richard Dawkins pulsa no interior de nossas células pecadoras. Entretanto, alguns de nós buscam acertar, outros não se pegam vexados por seus erros. Há os que sentem natural empatia pelos outros e há os psicopatas dos mais diversos níveis, aqueles que são capazes de tudo para alcançar seus objetivos, capazes de ludibriar com absoluta desfaçatez. Há os que procuram defender a ignomínia, há os que sentem vergonha alheia. Há, também, os que consideram que o inatacável candidato simplesmente pisou na bola, que ele demonstrou burrice. Para esses, Serra não teria sido hábil o suficiente para levar adiante seu truque. Um pequeno deslize no campo vasto de nossas inabilidades. Para mim, ele se reafirmou como um grande embusteiro. Pergunto-me, pela última vez, seria este um termo excessivamente duro para com aquele que tantos julgam acima do bem e do mal?


Redação

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