O Governo Temer e a nova agenda conservadora, por Leonardo Avritzer

O Governo Temer e a nova agenda conservadora

por Leonardo Avritzer

A crise que conduziu a admissibilidade do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff é uma crise dos três poderes, mas é fundamentalmente uma crise do poder executivo e da forma como ele produziu a governabilidade no período 1994-2015. Essa forma, produziu uma governabilidade cujos custos não foram medidos e acabaram levando a uma disputa muito mais ampla sobre o projeto de estado que irá vigir no Brasil nos próximos anos.  Os primeiros 45 dias do presidente interino, Michel Temer mostram os principais elementos deste projeto na concepção dos atores conservadores: um controle absoluto do Congresso, em especial da Câmara dos Deputados sobre a pauta da presidência que levou a incorporação de uma agenda anti-direitos pelo executivo. O segundo é um controle corporativo e patrimonialista sobre a agenda de governo expressa no tipo de reformas do estado que o governo propõe e que buscam fortalecer carreiras corporativas no estado e cortar políticas sociais. Permitam-me elaborar de forma mais ampla os dois elementos do projeto conservador.

Michel Temer assumiu a presidência no dia 12 de maio de 2016 com uma agenda completamente própria ou pelo menos diferente do programa da chapa pela qual foi eleito, agenda expressa pela medida provisória 726 de 12 de maio de 2016. O primeiro objetivo da medida foi negar qualquer relação entre o novo governo e uma pauta de direitos sociais e de diversidade cultural, sexual ou de qualquer outro tipo. A medida provisória extinguiu todas as secretarias especiais ligadas à direitos, como a das mulheres ou da igualdade racial, extinguiu o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o da Cultura. Ainda que possa ser argumentado que o motivo principal da extinção de todas essas secretarias especiais e ministérios tenha sido econômico, acho difícil sustentar este argumento. Afinal, o aumento do judiciário e das carreiras “nobres” do executivo (advocacia da união e defensoria pública) definidos pelo presidente na semana seguinte tiveram um impacto muito mais elevado do que os cortes dos ministérios. Ao mesmo tempo, ministérios sem qualquer função ou estrutura como o da pesca e do turismo não foram afetados pelas medidas iniciais. Assim, a melhor teoria em relação à medida provisória 726 é de que o seu objetivo foi simbólico. Buscou-se sinalizar para os atores conservadores do Congresso e da sociedade que um período de expansão de direitos e de inserção de agendas de direitos no executivo estava chegando ao final.

A segunda característica do governo Temer é bastante compatível com a primeira e envolveu questionar a implementação política ampla de direitos constitucionais. Através desta agenda, começou-se a enfocar a espinha dorsal da área social, expressa nas políticas de saúde, educação e previdenciária. A primeira semana do governo Temer foi marcada por diversos balões de ensaio em relação à área social. Em relação a saúde, o novo ministro Ricardo Barros, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, afirmou que o país não conseguirá sustentar o acesso universal à saúde. Segundo ele, “Temos que chegar ao ponto do equilíbrio entre o que o Estado tem condições de suprir e o que o cidadão tem direito de receber.” (Fps, 17/05/2016). Esta também foi a tônica do pronunciamento do novo ministro da Educação que apesar de não ter proposto uma reformulação da área suspendeu inscrições para os três principais programas do ministério, o Pronatec, o Fies e o Prouni. Por fim, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, coloca tanto a questão constitucional quanto o equilíbrio dos programas da previdência ligados à proteção social em questão. Assim, o governo Temer torna-se o governo com a maior regressão em relação a direitos desde a promulgação da Constituição de 1988, o que, mais uma vez, aponta para a conjuntura atípica que presenciamos, na qual um vice-presidente interino realiza mudanças profundas no governo e por que não dizer na forma de organização das políticas sociais, sem ter qualquer mandato eleitoral autorizando tais ações.

Assim, não é de estranhar que o governo Temer seja instável. A instabilidade do governo interino deriva de diversos problemas: o primeiro praticamente insanável é a falta de legitimidade, seja do ato que conduziu Temer à presidência, seja das ações posteriores mencionadas acima de introduzir uma dinâmica anti-direitos e anti-social na agenda do poder executivo. Surpreendentemente, esta dinâmica acaba tendo duas ancoragens, a do Congresso e a do mercado. Congresso e mercado por motivos diferentes e talvez opostos, ancoram o novo presidente. No caso do Congresso, trata-se de ver qual o preço que o presidente interino está disposto a pagar para a legitimação da forma pouco ortodoxa através da qual ele chegou ao poder. Assim quando assistimos a um aumento dado aos servidores do poder judiciário ou a aceitação da renegociação das dívidas dos estados, percebemos que o que está em jogo é uma tendência do presidente interino de modificar o lugar da legitimação política. Não se trata mais de buscar a aprovação da opinião pública. Diga-se, de passagem, nenhuma pesquisa de opinião foi publicada por grandes jornais ou TVs do país entre o dia 11 de abril e o dia 20 de junho porque sabemos que o presidente interino não é capaz de se ancorar na opinião pública.  Trata-se de buscar uma legitimação do governo apenas pelo Congresso e pelo mercado.

No caso do mercado, percebe-se, claramente, uma mudança de posição de longo prazo. Desde a nossa redemocratização temos um divórcio parcial entre mercado e política no Brasil. Este divórcio começou na elaboração da Constituição de 1988, onde a expansão dos direitos sociais e do papel do estado, não foi defendida mas também não foi contrarrestada pelo mercado. Os interesses conservadores na constituinte foram interesses retrógados economicamente como o dos grandes proprietários de terras improdutivas ou dos especuladores com terras urbanas. Mesmo durante o governo Lula, a reação do mercado ao seu governo foi inicialmente positiva. Assim, há de fato uma mudança de perspectiva dos atores econômicos que tem se expressado em uma agenda anti-direitos que não pretende se submeter ao voto dos eleitores. É difícil dizer se a agenda regressiva do mercado é motivada apenas economicamente. Parece claro que ela expressa uma tentativa do mercado de conter a expansão fiscal do estado, mas parece que há um pouco mais aí: uma aliança de longo prazo contra a inclusão social mesmo quando esta se dá pela via do consumo. Essa agenda consegue um apoio do Congresso ainda que seja evidente a sua contradição com as práticas políticas deste grupo “pseudo-liberal” que tornam o estado brasileiro improdutivo e corporativo e incapaz de exercer um papel positivo na questão econômica. Esta parece ser a aliança que irá sustentar Temer.

Ao romper com uma agenda de ampliação de direitos e buscar o apoio de um Congresso no qual mais da metade dos seus membros estão implicados na operação Lava Jato e cuja legitimidade é baixíssima, o governo Temer marca o fim de um período que podemos genericamente denominar de Nova República. Este período foi caracterizado por uma aliança entre o centro e a esquerda que permitiu a ampliação dos direitos sociais e a efetivação de um programa de inclusão social por parte de um governo de esquerda. O PMDB foi parte central desta aliança. A opção do partido por uma saída da aliança que estava em forte crise, por si só não marcaria o final de um período. O que sim marca o final deste período, é a tentativa de regressão em relação a direitos e ao papel do estado que caracteriza o governo Temer. Ocorre neste caso, uma re-oligarquização da política brasileira com uma agenda política e econômica de exclusão social. O fato que o governo se ancora no Congresso e no mercado para realizar uma mudança que não foi sancionada eleitoralmente e provavelmente não o será, marca, assim, o final de um período de convergência entre o Congresso, o judiciário, os partidos e a sociedade civil sobre uma pauta progressista de ampliação de direitos e governo democrático. Abre-se, no Brasil, um longo período de disputa política visando restaurar a tradição de soberania e de direitos que o governo Temer parece decidido a botar fim.

 

Leonardo Avritzer

2 Comentários

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  1. As democracias não são iguais

    As democracias não são iguais em todo mundo, diferenciando-se em muitos aspectos. Em geral, há um arcabouço de cunho liberal, que embasa a organização desses regimes: eleições, três poderes independentes, etc.

    O Brasil tem aquilo que se pode chamar de regime democrático neopatrimonial (FREY, 2000; AGUIAR, 1987) ou delegativo (O´DONNEL, 1991). Quer dizer, nele convive o arcaico e o moderno, sem que ambos se excluam ou resolvam impasses, equilibrando-se no intuito de manter-se no poder. É um acórdão que inclui estratos médios da sociedade e burocracias estatais, que se beneficia diretamente ou é refém do poder que está nas mãos da elite.

    E uma vez no poder, o profissional da política e as formas de representação brasileiras promovem baixa ou nenhuma accountability do sistema político que esta democracia conjuga.

    Quer dizer, nossa democracia é coxa.

    O golpe parlamentar-midiático é sintomático de uma democracia que nunca foi moderna plenamente, liderada por uma elite que se unifica apenas no interesse de manter-se no poder, ao passo que no interior de instituições jurídicas do executivo, legislativo e judiciário convivem comportamentos e agentes atados à modernidade e ao atraso do patrimonialismo.  

    Qualquer conflito mais complexo, especialmente se põe em cheque os privilégios e o poder da elite, maiores são as chances de respostas rompantes voltadas a conservação desses interesses e espaços sociais. A intromissão do STF em temas que não deveria; a omissão do Congresso em temas que lhe compete; um executivo dependente de um “presidencialismo de coalização”.

    A depender da democracia neopatrimonial que temos configurada em solo tupiniquim, a Constituição de 1988 será vilipendiada pelos agentes mais interessados em perpetuar essas criativas maracutaias voltadas a concentrar mais poder na elite e seus capatazes burocráticos, intelectuais e de setores médios e econômicos.

    Somente o protagonismo radical e crítico do conjunto da sociedade civil organizada permite o entendimento dos vícios do jogo democrático, deslocando a pauta política para um espectro progressista ecológico.

     

    AGUIAR, Joaquim. Formas de dominação e sociedade: o caso do neopatrimonialismo. Lisboa, Analise social, s.3v.23n.96(1987), p.241-278

    FREY, K. Políticas públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática da análise de políticas públicas no Brasil. Planejamento e Políticas Públicas (IPEA), Brasília, v. 21, p. 211-259, 2000.

    O’DONNEL, Guillermo (1991) Democracia Delegativa?. Novos Estudos CEBRAP, n.31, outubro 1991.

  2. No fundo, para o

    No fundo, para o “constitucionalista” Temer e seus apoiadores nas demais instituições, a Constituição “comuna” de 1988 durou tempo demais. Já a neutralizaram bastante, mas seria preciso retomar a tradição cíclica das constituições brasileiras, e impor outra, adequada aos interesses seus e de seus representado$, com urgência, para outros 20 anos. Aí vem…

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