Muro de Berlim: o hilariante ato falho que o derrubou

Günter Schabowski, porta-voz do governo da ex-RDA

Berlim, primavera de 1989.

De passagem pela cidade onde havia feito a faculdade, recebido minha titulação e residido durante dez anos de minha vida, em companhia de Leticia Vota, minha então namorada, celebrei o 1º. de Maio junto à colorida multidão convocada pela central sindical DGB aos gramados do antigo Reichstag, naquela oportunidade ainda funcionando como museu, colado ao Muro.

Atrás dele, nos saudava o Pórtico de Brandenburgo, com suas colunas dóricas em réplica neoclássica, solidamente fincadas em solo da RDA – a República Democrática Alemã, como era conhecida oficialmente a Alemanha Oriental.

No lugar da quadriga greco-romana, que a encimava desde seus primórdios, a bandeira da RDA, e outra, com o vermelho-sangue da utopia, tremulavam alegremente sob um céu de brigadeiro.

Escrevi “com suas colunas… solidamente fincadas em  solo da RDA” – assim parecia!

O Muro

Onde nos encontrávamos, a Avenida 17 de Junho, de Berlim Ocidental – que na verdade começa na Praça Theodor Heuss, com o nome de Bismarck Strasse, em seguida mudando para Kaiserdamm, e que até o fim da Segunda Guerra Mundial, mas só depois da Ernst Reuter Platz, se chamava Charlottenburger – ali, pois, a interminável avenida, rebatizada de 17 de Junho – mais uma vez desviada pelo Obelisco da Vitória, que entrou para a história do Cinema com o anjo coruscante eternizado em “Asas do desejo”, de Wim Wenders – era contida por um muro com três metros de altura, sobrecabado com tubos cem por cento esféricos para impedir que mãos o agarrassem.

Depois desse primeiro muro estava um corredor, chamado Niemandsland – literalmente “terra de ninguém”, também conhecida por “corredor da morte”, com a largura de uma rua estreita, por onde circulavam as patrulhas motorizadas da RDA. Por sua vez, o acesso à terra de ninguém era protegida por uma barreira de obstáculos antitanque, fundidos em aço e cruzados em “x”. E atrás (ou dependendo do ponto de vista, em sentido oeste: à frente) deles, outro muro com medidas comparáveis ao primeiro.

Uma “linha Maginot” com 80 metros de espessura e armada até os dentes – eis a engenharia do Muro de Berlim, que muita gente imaginava ser aquele tapume furado dos velhos estádios de futebol brasileiros.

Nesta geografia de Guerra Fria, o Portal de Brandenburgo se situava em “terra de ninguém”, uma ironia que vai se explicar seis meses mais tarde.

“Tudo o que é sólido se desmancha no ar”

Erguido em agosto de 1961, para proteger a RDA da infiltração pelo fascismo e do assalto pelo imperialismo (aqui explicando que jargões oficiais nunca usam aspas), do outro lado do muro a grande avenida, cortada, retomava seu curso, atravessando boa parte do antigo centro histórico, até a Alexanderplatz, com seu nome original: Unter den Linden. 

Foi ali perto e naquela mesma manhã de 1º. de Maio, que na Karl-Marx-Allee (alameda que os camaradas, depois arrependidos, em 1945 haviam batizado de Josef-Stalin-Allee), um amigo – então Secretário da Agricultura do Paraná e marxista in petto – presenciava a versão de um 1º. de Maio que todo esquerdista que se preze sempre sonhara em passar em revista: a marcha da classe operária, sua juventude vestindo o azul da fidelidade, seguidos pelos Kampfgruppen – unidades paramilitares de defesa das fábricas – tudo coroado pelo desfile das forças armadas de defesa do socialismo. Mas – just in case! – com uma retaguarda de 400 mil soldados soviéticos acantonados nos velhos quartéis nazistas da hinterland da ex-capital do Reich.

Assim me descreveu a apoteose o amigo deleitado, e eu citei seu ingênuo fascínio numa reportagem para o Caderno B do Jornal do Brasil, com uma licença poética maldosamente emprestada do livro de Marshall Bermann: “Tudo o que é sólido, se desmancha no ar” (na verdade uma ironia de Karl Marx, usada por Berman para vender seu livro). 

O que o amigo e eu não sabíamos, é que naqueles dias o povo da RDA já fazia reuniões de protesto nas igrejas do país, o caldo começando a engrossar. Mas se alguém naquele 1º. de Maio do lado ocidental me perguntasse, se o Muro fora construído para ficar, eu teria respondido que sim, apesar de não acreditar em sua necessidade, muito menois na eternidade, 

Verão de 1989: o SED e as fugas em massa da RDA

Detalhe geralmente ofuscado pelo frenesi na cobertura sobre a queda do Muro, é que no verão de 1989 em torno de 100 mil alemães orientais em férias nos países do Leste, não queriam mais retornar, buscando asilo nas embaixadas da Alemanha Ocidental na Tchecoslováquia, Bulgária e Hungria. Milhares, ao alcançarem a fronteira da Hungria com a Áustria, simplesmente ignoraram as barreiras da fronteira, desembestando Áustria adentro; os guardas húngaros apenas bocejando de tédio. 

Esse era o pano de fundo de uma reunião de emergência do Comitê Central (CC) do SED, que decidira liberar viagens aos cidadãos da RDA para qualquer país do mundo. A pedido do CC, a autorização fora redigida por oficiais do ministério do Interior e do serviço de espionagem Stasi, a famigerada “polícia de segurança do Estado”. Aprovadas em brancas nuvens, diante dos “fósseis” do partido, Egon Krenz – o novo czar que um mês antes destronara Erich Honnecker e a velha guarda do partido, com um golpe de mestre há muito programado – pediu ao porta-voz do governo, Günter Schabowski, que divulgasse as novas libertárias na coletiva à imprensa internacional, programada para o final da reunião.

A cartada de Krenz era subliminar: a dívida externa do país beirava os 25 bilhões de dólares e a Economia da RDA estava há muito pendurada no soro da odiada Alemanha Ocidental. Com a liberação das viagens, Krenz pretendia aliviar a pressão popular, sobretudo ganhar tempo, salvar a RDA do mergulho no abismo.

O ato falho de Günter Schabowski que derrubou o Muro

Mas o que acontece, então? 

Estória virtualmente desconhecida no exterior, e até há pouco tempo mal contada, o Muro de Berlim caiu como efeito-dominó, numa cadeia de conspirações, armações, mas também de um imprevisto. 

Quando Schabowski, mais tropeçando no texto do que realmente lendo o bilhete que resumia as deliberações do CC sobre a permissão de viagens, para a imprensa internacional, subitamente o jornalista Ricardo Ehrman, correspondente da agência italiana, ANSA, o interpela, perguntando (veja o vídeo ao final do presente texto!): – Já está valendo a permissão?

– Perdão? – replica Schaboswki, e quando Ehrmann repete a pergunta sobre o prazo para a entrada em vigor das novas medidas, Schabowski procura a resposta no bilhete em não a encontrando imediatamente, chuta: “Olha…., que eu saiba é pra já!”. 

Foi a bomba! 

Mas de seu efeito Schaboswki apenas tomaria conhecimento em casa, acomodado diante da TV, onde assistia, atônito, ao assalto e à abertura do Muro, depois que a população havia recebido a notícia pelas TVs ocidentais.

Eram pouco mais de nove horas da noite, e a notícia tinha se espalhado aos quatro ventos.

Sacudido por telefonemas, reclamações e ameaças, foi quando Schabowski se dá conta da tremenda burrada que cometera, porque o bilhete levava um aviso explícito: “Divulgação vetada até às 4 da manhã de 10 de novembro de 1989”. 

Schabowski simplesmente atropelara a instrução, provocando a corrida ao Muro.

Ato falho ou armação?

Rosto crispado, em uma entrevista gravada um ano após a queda do Muro, Günter Schabowski admite que recorrera a um psicólogo para tentar explicar (-se), o que lhe tinha dado nos miolos naquele final de tarde de 9 de novembro de 1989. Nesta altura já expulso do SED, e vagueando desempregado pelas ruas da Berlim, sem muro, diz, sem vergonha alguma: “Vá saber, talvez foi mesmo um ato falho, porque um regime daqueles não merecia outro desfecho”. 

Hoje, o ex-comunista de carteirinha Günter Schabowski é filiado ao CDU – o partido democrata-cristão, conservador, de sua ex-arqui-inimiga na RDA, a Chanceler Angela Merkel. – e autor do livro soibre os últimos dias da RDA, intitulado “Fizemos quase tudo errado” (vide capa nesta edição).

Vinte anos depois, novos fatos sobre aquele fatídico e delirante 9 de novembro de 1989 emergem dos bastidores da História. 

Um deles é que o jornalista Ricardo Ehrman foi efetivamente “cutucado” por Günter Pötschke a interpelar Schabowski. Pötschke, que não pode mais confirmar o lance, porque morreu recentemente, era editor-chefe da agência oficial ADN, da RDA, e também membro do comitê central do SED. 

Uma cópia do bilhete que resumia as novas instruções de liberação de viagens descansava sobre o tampo de sua escrivaninha, mas também vetada para divulgação antes das 10 da manhã do dia 10 de novembro. Sendo velho conhecido de Ehrman, Pötschke o encorajou para furar o bloqueio noticioso, com isso abrindo espaço para sua própria divulgação.

Outro exemplo. Uma equipe de TV da Alemanha Ocidental, a serviço do canal a cabo da revista Der Spiegel, embrenhara-se em Berlim Oriental, depois de tomar conhecimento da notícia dada por Schabowski. E “seguindo o povo, para onde o povo vai”, os documentaristas captam cenas dignas de um Moisés dividindo ao meio as águas do mar bravio, para dar passagem ao povo escolhido: no posto Bornholmer Strasse, de entrada (mas nunca de saída) da RDA, a multidão já se aglomerava, cobrando em coros altissonantes “Wir wollen raus!” (Queremos sair!) e “Macht auf das Tor”! (Abram os portões!). 

E diante da câmera deslinda-se a História.

Com movimentos discretos na guarita de controles, oficiais das tropas de fronteira e da temível Stasi estão confusos. Ligam para seus superiores, que não conseguem dar-lhes instruções objetivas, porque não estão menos desnorteados. 

Sentindo-se protegida pela presença da mídia ocidental, a massa começa a levantar o tom de voz, o caldo atingindo o ponto de fervura. É quando entra em cena outro “traidor” daquela noite: Tenente-Coronel Harald Jäger, da Stasi, que reúne os subordinados em sua sala, para calçar-se na decisão que vai tomar. Vinte anos depois, diz em entrevista: – Eu queria saber deles, o que deveria fazer. E eles responderam: ´Você é que tem que saber, ora essa, o chefe é você! E eu respondo: ´Devo permitir que os cidadãos da RDA saiam? Ou devo abrir fogo? – pelo amor de Deus!” (…) Depois pensei: “já encheu o saco, agora vou agir por conta própria.”

E Jäger toma sua decisão, sozinho, sem ordens superiores: manda erguer a cancela, melhor: a eclusa – e sem qualquer controle a torrente humana desembesta rumo a Berlim Ocidental.

 Naquele momento, diz Stefan Aust, diretor do documentário, com o Muro cai também a RDA, e desfaz-se em frangalhos um sistema autoritário que reinava de Berlim a Moscou, de Vilna a Bucareste, declarando página virada da História aquela ordem mundial, obsoleta, do pós-guerra – instante histórico em que, quarenta e quatro anos após o silêncio das armas, a 2a. Guerra Mundial termina de fato.

Centro de uma trama até hoje só parcialmente explicada, Schabowski e seu bilhete ganharam a aura do mitológico. 

Schabowski sabia mesmo o que estava lendo para os jornalistas? E os jornalistas: quantos tinham aceitado fazer perguntas previamente combinadas? Um baralho marcado para atropelar a “turma” de Egon Krenz, recém-chegada ao poder? Por acaso Schabowski tentou jogar seu próprio jogo, entrando para a História como o herói que detonou o Muro? E se Krenz sabia do bloqueio da notícia até as 4 da manhã – por que insistiu em divulgá-la? Aquilo, tudo, foi mero “acaso”, ou uma traição coletiva do inconsciente também coletivo?

No dia 4 de novembro de 1989, cinco dias antes da queda do Muro, o dramaturgo Heiner Müller tinha discursado na enorme manifestação da oposição, que levara meio milhão de pessoas ao centro de Berlim Oriental – finalmente tinha tomado partido!

Mas ao escolher a leitura dramática de sua peça didática, “A missão”, para celebrar debochadamente o 1. aniversário da queda do Muro, Müller estava interessado em discutir o lado trash, a nota de rodapé verdadeiramente esdrúxula, hilariante, da História. 

Personagem central de “A missão”, o revolucionário francês, Dubuisson, é enviado ao Caribe para exportar a revolução de 1789. Mas quando seu barco se aproxima da costa exuberante, bordejada por aquele mar cor de esmeralda, Dubuisson se lembra que ainda é dono de engenho de açúcar e de escravos africanos naquelas paragens, e muda de idéia, perpetuando-se como novo governador da ilha. Daí a frase corrosiva de Muller: “Onde a paisagem é bonita, espreita a traição!”.

Como paisagem bonita, o cartão-postal coruscante de um “supermercado” chamado Berlim Ocidental certamente exerceu fascínio inconfessável em não poucos camaradas da liderança da RDA. A ironia dessa noite, já na Kurfürstendamm – a rebrilhosa Champs Elisées prussiana – é que os orientais não correram atrás das roupas de griffe, mas das ordinárias bananas da marca Chiquita. Para Muller e outros, prova ilustrativa de que a fome dos orientais era por uma sórdida “República de Bananas”  – a  neoliberal “República Merkel”, que 25 anos depois da queda do Muro ainda não conseguiu acabar com as desgualdades sociais entre a antiga RDA e a “Bundesrepublik” ocidental e turbo-capitalista.

 

 

 

Redação

2 Comentários

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  1. bem hilário mesmo.
    boas

    bem hilário mesmo.

    boas explicações sobre a queda do muro.

    tive um amigo que visitava a oriental dois meses antes e

    quando voltou o muro estava caindo.

    e ele não conseguia exlicar nada sobre o fato.

    silenciou até hoje.

    para ele, aquela maravilha comunista iria

    continuar por muito mais  tempo.

    mal sabia ele que talvez essa queda do muro fosse

    a aberttura necessária para a assunção do pt ao poder.

    pois, isso desobnubilou a paisagem, acabou com o slogan anticomunista

    cujo argumento a direita esgrimia contra a esquerda,

    os trabalhadores e os movimentos sociais.

    como o pt nascera já distanciando-se muito da influencia comunista,

    foi mais fácil manter uma política em defesa da maioria da população

    sem interferencia externa assim tão escrachada.

  2. As últimas horas da existência da famigerada

    barreira protetora anti-facista (na verdade, o muro), mostrando os patetas desastrados e confusos são detalhadas aqui:

     

    http://www.spiegel.de/politik/deutschland/mauerfall-mauerkomoedie-das-ende-der-ddr-multimedia-story-a-1001158.html

    Está todo em alemão. E mostra, minuto a minuto o que deu errado nesse dia. 

     

     

    Em suma, esse tal Schabovski esqueceu de virar uma folha a mais do projeto de lei que iria permitir as viagens ao exterior. Nesta folha estava descrito que o assunto só deveria ser divulgado no dia seguinte, em 10/11/1989 às 04:00 horas da manhã. 

    E o cara respondeu à pergunta de repórter italiano, sobre quando entraria em vigor com a frase: “no meu entendimento, de imediato.” (Unverzüglich).

    Essa palavrinha -Unverzüglich-, transmitida ao vivo para todos os cidadãos alemães orientais detonou uma alavanche de milhares de curiosos nos postos de passagem, que encontraram alguns guardas-fronteiriços totalmente desinformados e despreparados para lidar com uma turba.

    Num dos trechos do video acima, um dos líderes da guarda de fronteira chega a comentar algo como “temos umas centenas de balas, contra milhares de pessoas. Isso não ajuda em nada, e só põe gasolina num fogueira.”

    Aí um líder dos guardas decide simplesmente abrir a fronteira. 

    Uma das várias lições que ficam era que um serviço de segurança do estado todo-todo como uma STASI ou NSA, a rigor, a rigor, não serve para absolutamente nada, quando a massa começa a se mover. Ou seja, o povo, uma vez perdendo o medo, uma ditadura desaba em questão de minutos ou horas. E os patetas que trabalham nesses serviços, e que só instilam o medo aos súditos da ditadura, tinham dormido nesse dia!

    Nesse cronograma acima percebe-se que o governo ditatorial da RDA estava totalmente sem noção do que fazer. 

    E para aquelas pessoas fãs da teoria do caos (“uma borboleta batendo asas na América do Sul pode provocar um furacão na América do Norte”) existe uma comprovação dessa teoria na política: esse movimento civil alemão-oriental começou com uma cerimoniazinha simplérrima: os primeiro-ministros da Áustria e da Hungria se reuniram alguns meses antes na fronteira entre os dois países, e operando um alicate em comum, cortaram simbolicamente um arame farpado que delimitava os dois países. Assunto aparentemente nada a ver, com a RDA! 

    Só que os alemães orientais mais vivos perceberam aí uma chance de se escafederem, sem se arriscar muito. E o governo-irmão comunista húngaro estava pouco se lixando do que os dinossauros alemães-orientais quisessem fazer. Esse pequeno eventou detonou toda a movimentação que culminou com a queda do muro. 

    Divertidíssimo! 

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