O looping político da esquerda e o eterno retorno da direita, por Luiz Eduardo Soares

A dinâmica dos acontecimentos constrói cenários e cancela outros, de tal modo que as lutas se travam em arenas circunscritas por limites que independem de arroubos voluntaristas ou virtudes morais.

O looping político da esquerda e o eterno retorno da direita

por Luiz Eduardo Soares

Sarrafo é o nome que se dá à barra que os atletas do salto em altura devem ultrapassar. Ela vai sendo elevada na medida em que a competição se torna mais exigente. Por outro lado, quando se diz que a polícia “baixou o sarrafo”, o que se afirma é que o cassetete foi empregado com -sejamos elegantes- prodigalidade. Minha hipótese é que o cálculo político dos governos de esquerda que visa a governabilidade -operando em sociedades regidas pelo capitalismo, especialmente em sua fase neoliberal- tende a rebaixar o sarrafo das finalidades estratégicas, gerando uma dinâmica em loop, um movimento espiralado, cuja direção é a auto-aniquilação, a médio ou longo prazo. Isso acontece porque concessões e ampliação de alianças ao centro implicam renúncia progressiva à própria agenda, abandono de compromissos de classe e frustrações populares sucessivas, processo que abre espaço para o fortalecimento de oposições cada vez mais radicais à direita, levando a derrotas futuras ou ao risco de sofrê-las, o que, por sua vez, conduziria o governo de esquerda -ou as esquerdas já derrotadas, lutando para voltar ao governo- a mais concessões para ampliar ainda mais o arco de alianças. O retorno ao poder dar-se-ia em condições mais precárias, reiterando a necessidade de aprofundamento do círculo vicioso da auto-diluição. Assim, a esquerda seria neutralizada e domesticada, sem que fosse preciso amarrar-lhe ao pescoço a coleira da proscrição, do exílio ou da clandestinidade. Para acuar e dissolver a esquerda não seriam necessários golpes ou bravatas militares, nem mesmo mudanças constitucionais garroteando direitos democráticos, porque o preço do poder passaria a ser a imersão na lógica da competição eleitoral sob a chantagem desestabilizadora das forças econômicas porventura ameaçadas, associadas à mídia e a interpretações jurídicas sensíveis às conveniências do lawfare. E atenção: não se trata de fraqueza de caráter, vacilação ideológica ou traição moral. A dinâmica dos acontecimentos constrói cenários e cancela outros, de tal modo que as lutas se travam em arenas circunscritas por limites que independem de arroubos voluntaristas ou virtudes morais.

Por isso, a meu juízo, o recuo na abertura do segundo governo Dilma -que abdicou do programa de campanha e sinalizou, via nomeação de Joaquim Levy, inflexão à direita- não deve ser creditado a idiossincrasias, competências ou habilidades. Outra ou outro governante provavelmente tentaria manobras análogas, mais ou menos ousadas, talvez também buscasse esvaziar a pauta-bomba do Congresso, articulando essa operação ao novo pacto pela austeridade fiscal, garantindo estabilidade e aguardando momento futuro para redefinição do rumo político (afinal, que papéis cumpriram Meireles e Palloci no primeiro governo Lula?). Contudo, o fato é que a lógica de ferro da oligarquização, há um século imputada a partidos populares, emana do jogo perverso em que se articulam forças burguesas, mídia e apropriações de mecanismos judiciais (e policiais).

Sempre há pressões na política, mas distinções devem ser feitas. Por exemplo: a chantagem que se abate sobre um governador do Rio de Janeiro deriva de coalizões entre milícias e segmentos policiais, dotados do poder de fogo para promover o pânico e municiados de dossiês apócrifos -que estão para os fuzis como as fake-news em redes sociais estão para as armas de destruição em massa. No plano nacional, a pressão que se projeta sobre presidentes progressistas deriva da coalizão entre atores econômicos, eles mesmos muitas vezes manejando diretamente a mídia, sob a vigilância estreita do grande irmão geopolítico, assessorados por protagonistas do Judiciário, nos marcos do Estado de direito. Esse rolo compressor empurra o barco para a boca do lobo eleitoral: os avatares políticos do centro fisiológico, servos da grana, e os fascistas de plantão, escravos do ódio, à espera da primeira oportunidade.

Aliás, note-se que talvez não seja exagero identificar algum laivo de cinismo na atenção pesarosa da grande mídia ao conservadorismo evangélico popular maleducado, ao qual se credita o avanço do bolsonarismo, mascarando, nesse giro esperto (evidentemente, com base empírica), a participação decisiva do aglomerado subnornal jurídico-midiático na exclusão de Lula das eleições de 2018.

O fato é que os desafios da governabilidade são reais e precisam ser enfrentados. De meu ponto de vista, há duas saídas mais relevantes para governos progressistas, no repertório disponível das experiências históricas, para evitar o circuito auto-destrutivo que descrevi acima. Elas não são mutuamente excludentes.

Uma delas é a conexão com as ruas e os movimentos sociais, além do investimento em mídias alternativas e a disposição de empreender o bom combate pela hgemonia moral-intelectual. A adoção dessa via acionaria, no quartel-general liberal-conservador, o sinal de alerta para o risco de populismo plebiscitário, a serviço de veleidades bonapartistas e autoritárias -curiosamente, quando a mídia conservadora reina e o capital prospera, sem entraves, descartando milhões, espoliando a maioria, não há autoritarismos plebiscitários, nem riscos à democracia. A hipocrisia não tem limites onde a pusilanimidade é soberana.

A outra via é menos discutida, talvez seja mais complexa e até mesmo mais importante. Refiro-me a políticas públicas que construam nova hegemonia por meio da mudança de práticas e da geração de efeitos, sobretudo junto à base popular. Sabemos que respostas positivas a demandas populares são fundamentais, tanto para qualificar as condições de vida, quanto para redefinir, em termos efetivamente democráticos, as relações entre Estado e sociedade. Por isso, nenhum governo subestima o significado de políticas de moradia, transporte, acesso a renda, à educação e à saúde. Mas até aí estamos chovendo no molhado. As novas práticas com efeitos capazes de abalar dimensões simbólicas e moral-intelectuais, às quais me refiro, são aquelas que dizem respeito ao respeito aos cidadãos e às cidadãs, enquanto sujeitos não só de direitos, mas de dignidade -cujo valor é único, em sua individualidade incomparável e insubstituível. Isso não nega a coletividade, nada tem a ver com individualismo. Onde é que políticas públicas se cruzam com o reconhecimento do sujeito, em sua singularidade? Quando os representantes do Estado lhe dirigem a palavra ou seus atos, diretamente. Qual a face mais tangível desse ente distante e abstrato, o Estado? O policial uniformizado na esquina. É nesse contato que o racismo mais abjeto, a mais vil iniquidade, o patriarcalismo mais arcaico se reencenam, evocando o passado que tem se reproduzido inercialmente, como um atavismo, ao longo dos séculos, a despeito de tantas mudanças. Há outras cenas, outros momentos, outros malencontros, no apartheid das cidades, nas relações de trabalho, mas nesses casos a máquina de opressão é tripulada por atores econômicos e sociais não-estatais, de um modo geral. No relacionamento com as polícias, o Estado é que surge, armas na mão, humilhando, subjugando, negando o reconhecimento à cidadania e à dignidade. Isso se estende à Justiça e ao cárcere.

Por isso, ouso afirmar que além da reconexão com as ruas e com os movimentos sociais, além da valorização de mídias alternativas, além de políticas públicas redistributivas, as quais também enaltecem a dignidade, além de tudo isso, a mudança no universo policial, carcerário e da Justiça criminal pode abrir uma via nova para redefinições nas relações entre as pessoas e as instituições chave do Estado. Digo que são chave porque diante delas os sujeitos aparecem em sua individualidade, despotencializados, fragilizados, reduzidos à sua comum humanidade e, no Brasil, se forem negros e negras, se forem pobres, frequentemente são reduzidos a objetos, na medida em que são tratados como entidades desprovidas nem digo de direitos, mas de dignidade. Uma virada nesse plano, uma sublevação assim capilar e profunda, talvez possa promover o deslocamento de placas tectônicas, na esfera da afetividade e da intersubjetividade, onde se travam batalhas decisivas pela hegemonia.

Um governo não tem poder para mudar a Justiça, mas pode fazer muito barulho, levantando bandeiras perfeitamente legais e aparentemente inócuas nessa seara. E, certamente, um governo popular pode, sem riscos para a governabilidade, investir seu peso para -mesmo por movimentos mediados- mudar polícias, penitenciárias e brecar o encarceramento em massa que está destruindo a vida de gerações. Soa banal, irrelevante? Procure saber qual o lugar desse tipo de experiência no cotidiano popular. Alguém poderia questionar: a opinião majoritária apoia repressão mais dura, penas mais longas. Respondo: a linguagem conhecida é a da violência policial e dos cáreceres hediondos. Se este é o único mundo real, a demanda é que a carga brutal seja dirigida aos outros, os criminosos, e que a intensidade seja o signo da separação entre pobres trabalhadores e pobres criminosos, para que não pairem dúvidas. Quando essa não for a única linguagem, nem o único mundo real, quando se constituir um novo ambiente, atualmente ignorado, jamais vivenciado até hoje, em que o respeito predomina, quais serão as demandas, em que novas conexões neuronais se formarão quais novas redes de afeto, crenças e valores?

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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