O mito de Procusto nos ensina sobre a violência no desacordo

O que o mito de Procusto nos ensina sobre a violência no desacordo – entrevista com Marta Rosmaninho, por Thiago Venco

“Se você acha que eu estou errado BATE EM MIM ENTÃO”! A frase é real e foi filmada por um ciclista em Niterói, que reclamava de um carro estacionado irregularmente na rota de bicicleta – o motorista, assim como o lendário bandido grego Procusto, entendeu que se o “viajante” não se enquadrava na sua medida, no seu padrão, a solução “justa” seria buscar a “adequação” de forma violenta.

 

O Labirinto do Desacordo entrevista a psicóloga e professora Marta Rosmaninho sobre as possíveis interpretações contemporâneas do mito grego de Procusto; como nossos conflitos sociais são marcados pela imposição de “pré-condições” violentas – e pela dificuldade de tolerar diferenças do outro?

 
Teseu, além de sair do labirinto, também matou Procusto…

 

 

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Uma breve apresentação do mito, traduzida da Wikipedia:

 

Na mitologia grega, Procusto (Προκρούστης) ou “o esticador [aquele que martela os metais], também conhecido como Prokoptas ou Damastes (Δαμαστής) “subjugador”, era um ferreiro trapaceiro e bandido oriundo da região da Ática, que atacava fisicamente as pessas ao esticá-las ou decepar suas pernas, de modo a forçá-las a ajustar-se ao tamanho de uma cama de ferro. 

 

Neste mito, Procusto era um filho de Poseidon que possuia um retiro no Monte Korydallos nos Erineus, na via sagrada entre Atenas e Eleusis. Ali ele tinha uma cama de ferro, para a qual ele convidava todos os peregrinos a passar a noite, o mesmo lugar onde ele os “trabalhava” com seu martelo de ferreiro, para esticá-los até que se ajustessem ao tamanho da cama. Em outras narrativas, se o “convidado” era muito alto, Procusto amputaria o tamanho excedente pelas pernas; ninguém hamais cabia na cama exatamente, pois secretamente, Procusto escolhia uma entre duas camas. Procusto continuou seu “reinado” do terror até ser capturado pelo herói Teseu, que viajava para Atenas pelo caminho sagrado; Teseu ajustou Procusto à sua própria cama. Matar Procusto foi a última aventura de Teseu em sua jornada de Trezena para Atenas.

 

Teseu matou Damastes, de sobrenome Procrusto, ao forçá-lo a fazer com que seu próprio corpo se ajustasse à sua cama, assim como ele vinha fazendo com aqueles viajantes. E ele fez isso numa imitação de Heracles, pois aquele herói retribuiu com violência aqueles que tramaram oferecer-lhe violência”.

 

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1) Comecemos pelo final: durante sua jornada heróica, Teseu pretende reestabelecer a ordem social num patamar superior, corrigindo a injusta e violenta norma de “adequação” de Procusto assassinando o “falso justiceiro” com seu próprio método.

A sociedade brasileira dá sinais de que aprova que a polícia militar cometa crimes em nome da “adequação” social dos criminosos – como constatamos na enorme aclamacão do (suposto) herói Capitão Nascimento, em Tropa de Elite, como constatamos na tolerância à repressão violenta da PM aos manifestantes nas ruas.


Que parâmetros, que ferramentas da psicologia ou da sociologia podemos mobilizar para compreender qual o desacordo em relação à norma que gera este ciclo vicioso, em que confundem-se os papéis sociais de Procusto (a norma corrupta, injusta) e Teseu (a norma institucionalizante, reguladora do convívio social)?

 

 

Eu acho que tem a ver com a dor. Sabe aquela mãe que fala pro filho parar de gritar – aos berros? Já viu essa cena? É um clássico.

 

Acho que não tem muito espaço na nossa vida social, nos nossos valores, na nossa cultura ocidental, atualmente, de olhar pra dor – de olhar pra incapacidade, de olhar pra dificuldade, acho que por isso temos muita dificuldade de lidar com o limite.

 

Estou pensando muito aqui no Capitão Nascimento, na Tropa de Elite… a violência também se inspira na gente, a violência.  Tem estudos, não sei citar, que dizem que na primeira vez que um policial mata ele sente remorso, na segunda ele já sente prazer, na terceira ele já sente prazer. Então penso assim – o ciclo vicioso, usando esse termo… ele também se perpetua porque a gente só está lidando com “efeitos”.

 
“Quem manda nessa porra aqui sou eu”, ele diz

 

 

Muitas vezes o que traz toda essa violência é uma falta de existir – num sentido bem amplo da palavra. Uma falta de ser testemunhado, então o filho se revolta contra o pai porque acha que o pai não deu atenção pra ele, o pai fica bravo com a revolta do filho, porque o pai não reconhece os sacrifícios que ele já fez por esse filho… então acho que o ciclo vicioso acontece por falta de reconhecimento do que já foi feito, do que já existe, das características, das habilidades pessoais.

 

O ciclo vicioso se mantém não pelo “defeito”, mas pelo “efeito” mesmo, eu quero que ele não grite, então eu peço gritando para ele não gritar, aí ele grita mais porque ele precisa ser ouvido, porque ele está com uma peça aqui… e assim a gente fica só nessa manifestação quase que representativa, e não ilustra a dor.

 
 

Vamos pensar no Capitão Nascimento, que tem aquele treinamento super duro? Mas na verdade ele sente um super… ele não aprendeu a fazer de outra maneira. Tudo o que ele quer é ser acolhido, e daí tem aquela esposa dele – estou pensando no Tropa de Elite “1” – que também não se sente acolhida, ele está lá cuidando, pela preservação, pela manutenção da família vamos dizer assim, mas ele deixa a mulher sozinha, grávida com um bebê e não se fazendo presente!

 

Então acho que o ciclo vicioso tem isso, ele fica muito só no “efeito”, no sintoma, e não na causa.

 

Por isso acho que os emaranhados vão, como um novelo de lã, tem tanta historinha, tanta historinha, que a gente não tira a ponta! E a ponta, de repente, é assim “meu, você nunca disse que me ama”, você nunca validou a minha existência, você nunca reconheceu o que eu já fiz até aqui… acho que isso vale pra tudo.

 

E acho que nos desacordos, na briga, é muito isso que está em voga: na verdade a gente está brigando para ser visto!

 

E acho que se confundem mesmo esses papéis, de Procusto e Teseu – porque sempre um se coloca como vítima e outro se coloca como algoz – um se vê vitimizado e vê o outro como algoz e vice-versa!

 

E na verdade a gente vive uma era de auto-responsabilidade. Claro, porque essas questões sociais com a policia são bem complicadas, porque é isso, “eu já não tenho meus direitos garantidos, então posso destruir essa sociedade que não me garante um monte de coisas”, que já está escrito em algum lugar – acho que nesse sentido os valores requerem uma análise mais profunda. Porque ao mesmo tempo a gente tem que ter uma maneira de protestar.

Ao mesmo tempo essa coisa da auto-responsabilidade traz um alívio de não se colocar no lugar de vítima, porque esse lugar de vítima tira a nossa força, e daí um jeito que a gente encontra, um jeito torto de se livrar dessa sensação de vítima é sendo algoz. Então você vê criança que desde pequena é hostilizada num ambiente, quando vai pra outro, e que os outros são menores, hostiliza o outro, pois é quase que uma maneira de se afirmar – acho que tudo isso é um grande pedido de socorro e de ser visto, mesmo nas nossas questões sociais.

Do mesmo jeito que os bandidos, ou as pessoas que vivem em outras condições e que de alguma maneira tem um discurso de que “eu tenho um direito, eu fui privado de ‘tais coisas’ então eu vou conseguir ‘a qualquer preço’”… o policial também sente que “pô, eu ganho dois mil, mil e oitocentos, ninguém me vê, ninguém me reconhece”… e tudo isso dentro de um contexto de miséria, de necessidade física, de coisas muito caras, de um capitalismo… e a gente que fica almejando “ter coisas”, não dá pra esquecer que a gente faz parte desse lugar.

 

Eu acho horroroso, mas você vê no Facebook, ”jogaram um homossexual de sei lá onde, o cara ainda estava vivo, foram lá e apedrejaram”. As pessoas vão lá e apedrejam! Tem essa postura, de “você também vai sofrer”.

 

E nesse sentido, falta compaixão, falta um olhar pro outro, falta perdão, falta a gente sair das nossas auto-referências, acho isso muito perigoso, na verdade. E até porque tudo que está aí “institucionalizado” serve para ser revisto!

 


Acho que o que está institucionalizado não tem um status, um estatuto de ser o certo, de ser o melhor, de ser a verdade absoluta. A gente age, a nossa sociedade age como se tivéssemos verdades absolutas,  inequívocas, únicas, e não tem! Cada vez mais a gente vê que não tem. Eu acho que isso é uma questão.

 

 

2) Nas relações familiares, não existe a mesma normatização judicial das relações civis, ou comerciais. Sabemos que muitos desacordos com os padrões familiares são “punidos” com violência, “esticando” ou “decepando” o sujeito que se desenquadra das normas “privadas” daquele grupo – seja esta violência física ou emocional. Estas punições podem, inclusive, infringir a lei vigente.

Como o psicólogo, ou o terapeuta, se prepara para conduzir o paciente que relata problemas de inadequação à normas familiares até uma solução que o poupe da violência em potencial, ou que o ajude a livrar também sua família dessa “maldição de Procusto”?

Esse é um tema difícil: enquanto terapeuta, eu tenho que estar ao lado do meu paciente, não no sentido de tomar partido, mas de acolhê-lo na sua verdade e no seu momento. Eu como psicóloga não tenho como “acelerá-lo”, não tenho como dizer “tira disso, vai pra isso”, então, o primeiro movimento seria acolher mesmo… a raiva, a angústia, ou a dor de não ser reconhecido, porque quando você fala de inadequação, é algo como “eu acredito numa coisa” X “eu não quero”.

 


Falando de coisas concretas, por exemplo, a pessoa resolve fazer uma profissão artística e a família não dá apoio, então, primeiro, você sempre tem que primeiro olhar para essa situação, para aos poucos ver que caminhos são possíveis para essa pessoa seguir. Pois ao mesmo tempo não seria saudável para essa pessoa sair “cortando tudo”, mesmo relações, ou culpabilizando os outros, mas também… é esse trabalho duplo: eu tanto quero “ser aceito”, ou “aceita”, e “não aceito a visão dos meus pais”, por exemplo!

 

Eu acho que é um momento que a gente fica nessa luta, nessa disputa de poder, “eu quero que você pense como eu”, o outro fala, “não, eu quero que você pense como eu penso”…

 


Eu tenho até uma situação pessoal… que eu queria que meu pai entendesse coisas da minha vida e ele não entendia, até que um dia eu fui conversar com ele e “me caiu a ficha”! Eu quero ser tão aceita por ele mas eu não aceito o jeito dele! Então esse momento me veio como um bálsamo, acho que na psicologia tem isso, às vezes coisas não são palpáveis, não é que alguma coisa concreta aconteceu, mas no momento em que eu tenho um insight, “ele não consegue me compreender, mas eu também não consigo aceitar o jeito dele, ele também não consegue aceitar o meu jeito”, me veio como um limite – e não como uma maldade.

Acho que as vezes é isso, os pais, não sei se estamos falando de pais aqui, mas agem como Procusto – botando limites – “volte tal hora!”, e na verdade, o que eles estão fazendo, é atuar como eles consideram ser “o certo” – isso é o complicado. Porque geralmente, em conflitos familiares, fica muito difícil falarmos de uma maneira muito abstrata, em psicologia; então se você traz uma relação de um pai com um filho, que não o deixa fazer “tal coisa”, que ele acha “não se deve fazer tal coisa”, o processo é um pouco ir acolhendo essa pessoa para ela conseguir realizar o que ela quer – e as vezes o que elas mais sofrem é a “não-aceitação”, da “não-validação”, e que na verdade lança a gente para uma situação que é de nos vermos sozinhos!

 

Pois por mais que a gente viva em coletivo, que a gente forme família, a nossa angústia a gente vai viver individualmente, o nosso sofrimento a gente vive muito sozinho.

 

Acho que é uma tentativa de mostrar os dois lados… de uma maneira, de relativizar… pois as vezes quem é “pego” por uma atitude de Procusto, acaba agindo como Procusto também! E eu acho que a dificuldade está nisso, de também aceitar o outro e coexistir; porque acho que a grande dificuldade hoje em dia nas famílias é coexistir, a verdade de um com a verdade do outro.

 

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3) Nas relações trabalhistas, vigoram códigos de conduta não-declarados, que coagem o trabalhador a enquadrar-se em normas que podem exigir que ele “se estique” (que tome decisões que estejam além do que sua moral consideraria aceitável) ou que “se mutile” (reprimindo características pessoais, por exemplo: a homoafetividade; sua orientação política; sua percepção de conflitos de gênero; seu senso de justiça ou mérito nas recompensas pelo trabalho).

Como o terapeuta lida com pacientes que somatizam estes conflitos em doenças psicológicas causadas por “camas de Procusto” no trabalho?

 

Considere que existe uma “capacidade de irreverência”; dá para ser irreverente se você tem outras qualidades para oferecer no mercado de trabalho. Porque o “irreverente” hoje em dia tem um lugar – os transgressores fazem parte (do pensamento administrativo, da gestão). Agora, isso é muito cruel se você pensa em pessoas com um trabalho mais operacional, braçal, em que a pessoa TEM que se enquadrar. Isso é uma coisa muito forte.

Como se lida com estes pacientes? Como sempre, acho que se tiver uma raiva, sempre acolhendo a emoção que vem e ajudando a aproximar da entoação disso (no sentido de acento, ênfase, modulação da emoção). Porque fazer uma cisão total, eu trabalho de um jeito e vivo de outro, “de dia é Maria de noite é João” ,  não é saudável para uma pessoa. Um paciente meu que coincidentemente estava trocando de trabalho e fez dessa troca um exercício de assumir certas coisas.

 


Pode ser muito cruel, por exemplo, se assumir como “gay” num almoço da “firma” com um monte de homem falando aquelas babaquices, entre elas, que “gay tem que morrer”… como psicólogo você fica até sem saber o que dizer – porque o mundo é realmente muito cruel.
 

 

Então, essa pessoa prefere almoçar sozinho, ou ir com meninas… isso são coisas para rever. Na psicologia eu trabalho na universidade, tenho meu consultório particular; os psicólogos não entram naquele enquadramento (estético) – a não ser que eu fosse psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise, aí eu teria que atender de tailleur – mas tirando isso, temos uma certa liberdade. Acho que é isso: temos que fazer a pessoa se ver para além da aparência. Tem médico que não usa branco; tem médico que isso traz uma segurança para ele; pior são essas empresas que EXIGEM certas coisas que não são da sua natureza. Isso é muito cruel. Primeiro tenho que reconhecer (o relato do paciente); mas também faz parte da vida fazer concessões. Se essa empresa é importante, se você precisa de tal emprego, a questão é: “no que isso te viola”? Digamos, “você tem que usar camisa”; ok, não gosto, mas vou atender lá um cliente e tenho que usar camisa. Outra coisa é não poder falar quem você é, ter que esconder sua sexualidade, esconder a sua família… aí são danos maiores e talvez você tenha que trabalhar no sentido de largar esse trabalho! Se não dá para mudar o outro e também não dá para me mudar, talvez encontrar uma alternativa. Mas nem sempre é possível; nesse paciente o que a gente conseguiu foi ir conquistando esse novo lugar, porque também, se já estiver estabelecido num lugar e todo mundo tem uma imagem de você; chegar nesse lugar e falar “olha, eu não sou nada disso”… você já chegar como “o diferente” tem um peso, mas é ainda menor do que o peso de mentir ou omitir uma história muito tempo e de repente, se assumir. Nunca peguei casos muito extremos, como alguém que inventasse (uma versão de si mesmo); pois você sabe, tem quem tenha uma vida e toda uma vida paralela. Aí é um trabalho bem mais profundo porque daí é uma questão psicológica bem séria de “cisão”. Porque muitas dessas “irreverências” passam por um processo pessoal da pessoa se aceitar desse jeito. Você usava o cabelo curto mas foi se assumir com um cabelo comprido, assume algumas coisas, mas isso faz parte do seu processo – e tem pessoas que tem vergonha, que se sentem “erradas” – e começam a ter danos quase irreversíveis quando uma regra da empresa ou da sociedade começa a ter “estatuto de verdade” para aquela pessoa; quando aquela “verdade” imposta pelo outro não corresponde à sua verdade pessoal, individual. Acho que aí você tem um grande problema, um grande sofrimento, porque aí não dá pra romper com a sociedade e nem romper com a sua verdade. Aí tem um trabalho de resistência mesmo, de resiliência… é muito pessoal. Não devemos generalizar, temos que ver como cada um enfrenta a sua história.

 

 

As pessoas tem que se valer da suas próprias convicções, da sua própria verdade, para estar no mundo.

 

 

Digamos, “eu não uso vestido, mas tenho que ir num casamento e tenho que usar vestido” – eu faço essa concessão social, acho que isso é também uma inteligência e uma capacidade. As vezes você se enquadrar num modelo, “porque é importante”, “porque faz parte”, porque “aquilo” não vai tirar sua identidade – acho que é um sinal saudável, você não precisa ser sempre original, fiel a você mesmo todo o tempo. A gente não pode correr um risco “ah temos que ser sempre muito verdadeiro, muito original, muito você” – porque existe um mundo compartilhado. E a não ser que você, o seu propósito de vida, o seu trabalho, seja também “trazer uma nova visão”… por quê obrigar todo mundo a fazer isso (ser sempre afirmativo da sua verdade)? Tem um lado que é “prático”, que pode até facilitar – “bota uma camisa uma calça e vai lá”! Eu tive um dos alunos que me surpreendeu: tem uma atividade que eu faço que eu peço que eles peguem algum dos objetos que estejam ali com eles, que seja um objeto que os represente – e ele me tira uma “prestobarba” – ele me falou que o chefe dele disse que ele tem que fazer a barba se de manhã até a hora do almoço ela crescer um pouco! Eu fiquei chocada. Uma empresa onde você não pode ter a barba minimamente mal-feita. Se você não tem cargos maravilhosos, se não são os amigos com trabalhos “criativos”, em que é “superlegal” ser irreverente e usar sapatos amarelos, a grande massa da população que vai trabalhar em cargos de produção tem que estar no “padrão da empresa”: e ainda que isso seja um setor da sociedade, temos que ver (como psicólogos) como é que a pessoa lida com isso.

 

 

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4) Existe um risco de o próprio terapeuta, ou psicólogo, incorrer no problema de Procusto, ou seja: enquadrar os pacientes nas “camas de ferro” que ele entende, ainda que equivocadamente, serem os instrumentos que sua formação profissional lhes forneceu.

 

Como o aluno de psicologia pode se preparar para evitar esse risco, de forçar um enquadramento dos conflitos de seus pacientes em “réguas” fixas, que eventualmente venham a agravar o caso, “esticando” (distendendo sua capacidade emocional de lidar com seus problemas sem agravar quadros patológicos) ou “mutilando” (reprimindo impulsos criativos, soluções autônomas e cerceando alternativas para a construção de uma estrutura emocional “mais apta” a lidar com seus problemas)?

 

A formação do psicólogo depende de três pilares: conhecimentos teóricos, técnicos; a supervisão, que é o espaço em que o aluno realiza a prática – ou mesmo o recém formado – e se debruça sobre essa prática, tem uma reflexão sobre como foi esse seu atendimento, “o que eu falei”, “o que o outro falou”; o outro pilar é o autoconhecimento – algo que em psicologia está muito claro que se necessita, mas ele não é subsidiado (nota: no sentido de assistido), como fazer uma terapia.

 

Então a ferramenta mais evidente que os alunos tem para não ficar achando que a verdade dele é a única e absoluta é fazer terapia, no sentido de se olhar, reconhecer se percurso e reconhecer seus valores.

 

Porque também, ser psicólogo não é “aceitar tudo e todos”. Às vezes você tem um paciente muito mau caráter, com um caráter duvidoso… você não é obrigado a atender essa pessoa. Isso é uma das coisas que a gente aprende – aprender que temos limites. Por exemplo, digamos que estou vivendo um luto, um divórcio; chega um paciente com um tema muito semelhante ao que estou vivendo, há uma responsabilidade ética minha – encaminhar. Mesmo pensando “ah, mas ele vai me pagar esse dinheiro, que vai me ajudar, estou devendo…” – mas é uma responsabilidade ética – eu não tenho condições emocionais de atender aquele caso nesse momento.

O terapeuta, os estudantes de psicologia, os psicólogos, independente da área, precisam fazer um trabalho terapêutico não só com uma visão ingênua “ah… eu aceito o outro…”, uma coisa assim “Madre Teresa”, “respeito ao próximo” – pois é um processo muito profundo de reconhecer seu percurso e poder identificar no que você “se engancha”, no que não engancha; e a partir disso poder fazer um atendimento.

Se debruçar (sobre si mesmo) e ao mesmo tempo sempre ter uma revisão. Pois tem uma coisa… o terapeuta precisa muito sair desse lugar de “deus”, de “eu sei do outro”, porque ninguém sabe do outro melhor que ele mesmo. Então outro recurso fundamental é parar e se deparar com sua prática: “eu tive um atendimento, eu estive com tal pessoa, em tal comunidade e vi ‘isso, isso e isso’; manejei de ‘tal maneira’… e permitir que a você seja apontado o dedo – “olha, você foi num sentido, aqui você foi em outro, você perdeu a mão nisso, deu uma sugestão aqui…” – então a escuta também tem a ver com isso, com esse que é o maior recurso e que está em desuso na nossa sociedade, de redes sociais: debruçar-se sobre alguma coisa. Vá, descreva o que foi o seu encontro e leia, releia, que você mesmo vai perceber a sua pergunta, em que sentido ela foi, pois as nossas perguntas – a nossa interação enquanto psicólogo – elas denotam um valor, se eu estou filiada a algum pensamento.

 

Uma coisa bem interessante que não se divulga muito: pessoas evangélicas ou espíritas que procuram psicólogos evangélicos e espíritas, pensando aí na religiosidade; o que eles querem? Eles querem garantir um universo de significados.

 

Porque se uma pessoa que vê espíritos vai num psicólogo que não acredita em espiritismo, ele vai ser encaminhado pro CAPS (Centro de Atenção Psicossocial)! Dentro do arcabouço, de toda a teoria que ele terapeuta tem! Mas se ele é espírita, Kardecista, talvez ele possa entender essa pessoa de outra maneira. As pessoas quando vão procurar um psicólogo querem saber onde esse psicólogo “está sentado” – e até pessoalmente, isso faz parte.

É interessante: nos Estados Unidos, por exemplo, entrega-se uma “cartinha” no começo e fala assim “eu vou segundo os dizeres da Bíblia” – o paciente assinou que está ciente de que é isso, pronto! É um contrato de trabalho. E aqui não existe isso e não vai existir tão cedo.

 

Quando a gente entre para um ambiente profissional como a psicologia, que vai lidar com emoções, com sentido de vida, com significados, a gente tinha que ter um compartilhamento – porque é dali que vão sair as nossas interpretações e compreensões daquela vida. 

 

Mas eu acho que o único jeito é o psicólogo estar vigilante; além da terapia é estar todo o tempo vigilante. Eu já vi psicólogos muito bons que com seu tempo de experiências falam “ah, eu já vi de tudo”… e entram no “piloto automático”. Aí você perde o outro, que está na sua frente.

 

 

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5) Gostaria de comentar livremente sobre uma interpretação que faz do mito, seja numa perspectiva pessoal, social ou profissional?

 

A responsabilidade do Procusto, como uma postura inadequada – e realmente inadequada – reside nessa tentativa dele de padronização:

 

Se a gente parar para pensar, muito do sofrimento humano tem a ver com nos tornarmos “Procustos de nós mesmos”.

 

Digamos, “eu acredito que felicidade seja uma coisa”, e quando falamos de “expectativa para o outro” então podemos falar até em relação a filhos – “acho que é bom pro meu filho ‘tal’ caminho, ‘tal coisa’”… enquanto eles são pequenos e acham a gente “o máximo”, somos pai, mãe e herói, está ótimo – mas tem um momento em que consideramos que o ideal de felicidade é “tal coisa” – e daí “a coisa” nunca vem desse jeito, perfeita, acabada, totalmente confortável, justaposta, nunca cai como uma luva a existência, com as nossa expectativas, acho que esse é um dos principais desafios, desafio pessoal mesmo.

 

Digamos, “a burguesia paulistana acha que educar bem os filhos é ‘permitir fazer tal coisa’ – isso você vê, esses valores aparecem muito fortemente – ‘fazer uma viagem’, ‘poder falar inglês’, vejo muitos amigos meus fazendo isso, coisas que eles não tiveram eles querem proporcionar ao filho achando que isso é a solução da vida do filho. Acho que essa é a postura mais nociva: a gente mesmo criar isso.

 

Eu ter uma ideia do que o que eu acho necessário para ser feliz – “eu tenho que ganhar tanto”, “eu tenho que morar em tal lugar”, “eu tenho que fazer tal viagem” – e as vezes a gente não consegue, a vida não nos possibilita isso.

 

Então como eu me ajusto? É isso o que você vê. E não é só quem não consegue, tem um monte de gente que consegue e que as vezes atribui “felicidade”, o “relacionamento bom”, a conquistar certas coisas muitas vezes materiais. E se não conquistam ficam com certa sensação de fracasso, de “onde foi que eu errei” e não tem muito essa reflexão do “será que eu estou pensando a melhor coisa pra mim”?

 

Sem essa reflexão (qual o sentido e qual o contexto de minhas escolhas, da narrativa pessoal e intransferível), dá sempre a impressão que “a culpa é do outro”, a responsabilidade é do outro.

 

As vezes a gente, com nossos sonhos e nossos anseios, também temos que “nos flexibilizar” – e o que nos faz feliz? De repente eu me digo “para ser feliz eu preciso de tal coisa” – e se por acaso eu até conquisto “tal coisa”, ou o processo de conquistar “tal coisa” é tão sofrido que você fala “acho que vou ter que ser feliz de outra maneira”. Então, isso é uma postura muito séria na nossa sociedade que também acho que é muito cruel – se você pensar na educação é muito cruel.

 

Como costumo dizer: aqui no Brasil “não é legal” ser sapateiro, “não é legal” ter um ofício, por todo o histórico que a gente tem, social, sociocultural. Então as pessoas, às vezes, querem fazer um bacharelado! Gente, por quê você quer fazer um bacharelado? Um bacharelado no limite não instrumentaliza ninguém para ter um ofício. Acho que isso é uma enorme “sacanagem”: não se trata de aprender a fazer uma coisa bem feita, e fazer, e com isso ter trabalho e ganhar um salario digno – as pessoas ficam querendo “ter um conhecimento” – e não é nem pelo conhecimento, é pelo diploma! Hoje em dia é assim, “o brasileiro TEM que fazer faculdade”. Acho isso um equívoco muito grande. Acho que o que a gente precisa é encontrar variadas formas de ganhar dinheiro, de se encontrar em uma entre tantas profissões que hoje existem, que quando eu estava no colegial não existiam; mas a mentalidade ainda fica, “TEM que ser engenheiro, médico ou advogado”, um “senso comum”. São padrões antigos, que hoje em dia… estas profissões estão até mesmo em “desuso” se o objetivo for ganhar dinheiro! Vamos supor – a tecnologia da informação pode dar mais dinheiro, se o objetivo for ganhar dinheiro.

 

Por outro lado, vejo amigas minhas que foram trabalhar com psicologia social que estão desiludidas; foram trabalhar durante dez anos com “abrigos”, saíram e hoje dizem “nunca mais quero trabalhar em abrigo”, por conta da realidade que viveram. De ter um mundo ideal, de lutar por ideais e de repente constatar que é um trabalho muito difícil. Claro, isso (a dificuldade) não justifica (abandonar); mas tem gente que experimenta outros tipos de relações de trabalho; é o que eu vejo, muita gente “conflitada”… se formou, estudou psicologia, estudou na PUC como eu, uma faculdade não só “elitizada”, mas com histórico de escolas de esquerda, questionadoras, e de repente você vai com toda essa vontade e você quebra a cara, porque o mundo é mundo mais política do que se imagina. Não é só “boa vontade”, “bons estudos”, pois na educação se tenta mostrar que “o sujeito que mora lá no sertão ele também tem os valores, o conhecimento dele, precisamos reconhecer, incentivar e valorizar” – só que as coisas são muito perversas, as relações sociais de trabalho no Brasil são muito perversas. Então acho que Procusto também ocupa esse lugar: sabe “vestir a camisa da empresa”?

 

Eu vejo que estamos numa enorme crise de valores. Por exemplo, fiquei sabendo que a “Itaú Seguros” comprou a “Porto Seguro Seguros” – que tinha reputação de excelência em atendimento ao cliente – e a intenção do Itaú seria eliminar a marca Porto Seguro e manter tudo como Itaú. Achei interessante, uma reflexão rápida que faço: esses agentes não estão interessados em qualidade, excelência de atendimento, caso contrário manteriam o (bom) nome “Porto Seguro”. O mundo está vivendo isso – mega bancos saem comprando tudo e é “assim que você se mantém”. E se formos pensar, eles se mantém porque eles se mantém com uma lógica única, exclusiva. Ao invés de você falar, “essa empresa que eu comprei é boa, tem excelência “ – eles querem comprar pra não ter mais essa concorrência! O cara lá da “Porto Seguro” vende por sei lá quantos bilhões e fala “ótimo, fiz minha vida, fiz um business, o business me deu essa grana e agora estou garantido por algumas gerações e dane-se”. Acho bem perverso os hiper bancos, os hiper mercados… saem comprando tudo. Uma atitude muito difícil, ter essa atitude responsável… estou fugindo do assunto?

 

O Labirinto do Desacordo: Não! No sentido de que esse enquadramento, na fusão e aquisição a parte “dominante” ou vai esticar o outro para caber na sua medida ou vai cortar fora a perna dele (a competitividade). Porque o que interessa realmente é uma padronização violenta e com uma satisfação de um desejo que é do Procusto, desta entidade que pega os “passantes” (as empresas compradas pelo mega capital) e coloca eles na armadilha da cama de ferro – “pode vir que você vai ter uma cama que cabe direitinho para você” – mas não, não tem cama… não caia nesse conto.

 

Acho que a última consideração é essa: o Procusto não está ocupado com os outros, está ocupado com ele mesmo. Um egoísmo, que reflete nessa sociedade contemporânea, em seu “ensimesmamento”. Um olhar que não é pro outro, nem voltado para uma questão de ética e valores… é irrefletido.

Redação

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