O monstro saiu do armário

O monstro saiu do armário

PUBLICADO EM 03/12/2015

Biólogos e estudiosos em geral não sabem definir exatamente quando e onde ele surgiu. Porém, há centenas de anos os pesquisadores já registravam os vestígios de sua nefasta presença. O que se sabe, com certeza, é que o monstro, com o passar dos séculos, teria desenvolvido predileções pelos climas tropicais e semiáridos – embora pudesse sobreviver até em temperaturas abaixo de zero, se necessário.

No Brasil, ovos do monstro chegaram com as primeiras caravelas e se espalharam pelas capitanias hereditárias, instalando-se nas frestas das escrivaninhas, nas alcovas, nas adegas escuras, nos cofres, entre os pergaminhos amarelados dos decretos e mordomias da colônia. O monstro apreciou o sol ardente, os privilégios da corte e a informalidade gentil. Adaptou-se bem de norte a sul – e daqui nunca mais se foi.

 O monstro pertence a uma categoria raríssima dentre as espécies. Ele pode ser ovíparo, vivíparo ou ovovivíparo a seu bel prazer – o que lhe confere uma absurda facilidade de copular com parceiros variados e se reproduzir infinitamente. Para compensar esta aberração inata, monstro é excepcionalmente voraz. Insaciável, precisa se alimentar dia e noite, em volumes crescentes, desmedidos, que jamais satisfazem suas vísceras inchadas. Cientistas descobriram também a mais surpreendente característica do singular predador: sua incrível camuflagem, a habilidade ímpar de se imiscuir em qualquer ambiente e ali viver na surdina.

Eventualmente corriam boatos e discussões acaloradas sobre sua existência ou não. Contatos imediatos do primeiro até o vigésimo grau já tinham sido relatados e, em certos casos, abafados imediatamente, sendo seus protagonistas alijados de cena sem explicação. Havia ainda o grupo dos céticos. Estes alardeavam, sorridentes e irônicos, que não existia monstro algum; tudo era fruto da imaginação das pessoas, teorias da conspiração. E quando um corpo aparecia numa estrada de terra, com marcas de garras suspeitas, os céticos logo davam um jeito de atribuir aquela morte a sequestro mal sucedido, latrocínio ou crime passional.

No entanto, de uns tempos para cá, o monstro – distraído ou acomodado na chamada zona de conforto – relaxou sua vigília cuidadosa. E, talvez pela idade provecta, passou a emitir um odor estranho, uma catinga de torcer o nariz dos transeuntes. Num gabinete oficial, por exemplo, abria-se um arquivo, retirava-se uma pasta, um contrato e sentia-se logo o cheiro.

– Hum! Tem coisa fedendo aqui – diziam, à meia voz.

O fato é que tal cheiro tomou espaço; passou a brotar com frequência nos altos escalões – sobretudo em reuniões fora do expediente, em quartos de hotéis luxuosos aqui e no estrangeiro; em restaurantes finos. Somelliers, maîtres e garçons notavam malas pretas fedorentas repousando junto aos móveis, mas preferiam evitar comentários. Melhor fingir que estava tudo dentro da mais perfeita normalidade olfativa, mesmo porque o monstro, embora invisível e intangível, era sempre elegante, afável e generoso nas gorjetas dadas aos amigos e aos amigos dos amigos. A vida era bela.

Aí, a coisa piorou. Além do cheiro, o monstro começou a deixar rastros de pelo fétido, tufos soltos aqui e ali; mechas abandonadas nos lobbies de resorts, nas poltronas de primeira classe dos voos internacionais, nos conveses de iates cinematográficos. E veio outra novidade: suas crias, herdeiras especialistas em camuflagem, comeram além da conta, se empanturraram, ficaram lentas, deixaram pistas, sobras nos rodapés e sombras nas paredes.

Um dia, num golpe de sorte, as crias foram avistadas. Um indivíduo insistente, incomodado com o fedor que lhe causava náuseas, resolveu lavar o prédio inteiro. Arrastou um velho armário e – surpresa! – atrás estava um dos ninhos do monstro. Eram dezenas de filhotes, diferentes na cor e na pelagem, mas idênticos nos rabinhos presos. Ao serem descobertos, os bichos emitiram grunhidos agudos e saíram em louca disparada. Como é natural, correram para o abrigo do predador adulto, buscando proteção e revelando os esconderijos da criatura, um após o outro. Desmascarado, o monstro inicialmente tentou escapar, fez-se de inocente, até choramingou. Porém, no escuro, cenas grotescas se sucederam. Sem piedade, o monstro ignorou suas crias, renegou-as e até devorou algumas, sacrificando-as com ódio e desprezo.

Foi dado o alerta. Os humanos, até então iludidos, encararam a realidade; era impossível manter-se indiferente. O monstro já tinha tomado conta de quase tudo e não estava disposto a abrir mão das presas habituais, essenciais para sua sobrevivência de parasita descomunal. Acuado, o monstro reagiu, mostrou os caninos. Não seria fácil exterminá-lo. Tinha subterfúgios, rotas de fuga, aliados poderosos e bem remunerados, chicanas judiciais a resguardá-lo.

O filme de terror está paralisado nesta cena. A plateia retém o fôlego, em suspense, pipocas paradas no ar rumo à boca. O monstro saiu do armário e se postou no meio da sala, completamente visível; olhos flamejantes, unhas e dentes expostos. Às vezes parece amedrontado; outras, ameaçador. Urrando, encara os espectadores, urina sobre os tapetes, defeca nas poltronas. Agora, não dá mais para ignorá-lo. Sim, o monstro existe.

 

https://www.otempo.com.br/opini%C3%A3o/fernando-fabbrini/o-monstro-saiu-do-arm%C3%A1rio-1.1183483

Redação

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