O MPF ainda tem salvação?, por Luis Nassif

De que maneira conter os abusos sem impedir a defesa legítima dos direitos difusos? Confesso não saber qual modelo seria o ideal. Exponho apenas as indagações esperando provocar um debate mais aprofundado

Ainda não foi contabilizado integralmente o dano causado pela Lava Jato ao Ministério Público Federal.

No sábado publiquei uma mensagem de um ex-Constituinte, defensor inicial da proposta do novo MInistério Público, que depois se arrependeu amargamente do voto dado.

Na ditadura, lembrava ele, os procuradores foram cúmplices de todas as aberrações perpetrados pelo regime. Eram os limpadores da cena do crime, criando narrativas e justificativas jurídicas para os crimes cometidos.

Com a Constituição, imaginou-se ter trazido a corporação para o caminho da justiça social, de defesa dos direitos difusos, das minorias. Para exercê-lo a contento, dotou-se o Ministério Pública das mesmas prerrogativas do Judiciário. Em suma, dotou-se uma corporação do Estado dos mesmos poderes das instituições clássicas de uma democracia, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.

Como freio, imaginou-se um Conselho, composto por integrante de vários poderes, incumbido de moderar os arroubos dos procuradores na ponta.

O excesso de poder foi o pecado original do novo MPF. A democracia que nascia era imberbe, indefesa, mal saída das franjas da ditadura. Assim como em outros países da América Latina, o Executivo tornou-se um poder frágil, exposto a campanhas desestabilizadores da mídia – que, após apoiar a ditadura, entrava na democracia emulando o exemplo de Watergate e disposta a se mostrar um poder acima dos poderes.

Quando juntaram-se mídia e procuradores, a democracia passou a correr riscos, desde o início.

Já nos anos 90 ocorreram os primeiros abusos, com a parceria mídia-procuradores, promovendo linchamentos midiáticos e valendo-se da imprensa para parcerias infames.

Lembro-me bem do caso Guilherme Schelb – o procurador justiceiro que virou fundamentalista bolsonarista. Vazou informações contra uma subprocuradora para o Correio Brasiliense. Com base na denúncia que ele próprio fabricara, denunciou a colega para a corregedoria do MPF.

Eu mesmo provei dessa nova modalidade de coerção, ao defender a subprocuradora e ao criticar o abuso nas prisões preventivas. Em uma rede de procuradores, recém criada, fui acusado de estar a soldo do empresário Luiz Estevão, envolvido no escändalo do prédio do TRT em São Paulo. Pois havia defendido a subprocuradora, que havia dado aval para a liberação das verbas do TRT para Luiz Estevão (antes que o escândalo estourasse) que, por sua vez, estava ameaçado de prisão preventiva. Logo…

Nem o grupo inicial de procuradores humanistas resistiu ao novo poder de que se viram investidos. Juntaram-se em um grupo, os Tuiuiús, como reação ao período Geraldo “Engavetador” Brindeiro. O líder do grupo, Cláudio Fontelles, foi eleito pela lista tríplice e confirmado como Procurador Geral. Combinou com os colegas que nenhuma deles tentaria a recondução.

O pacto não durou um mandato sequer. O seu sucessor, Antônio Fernando de Souza, foi indicador PGR e reconduzido, quebrando o acordo. E, na sua gestão, promoveu o primeiro embate frontal com o Executivo, no episódio do Mensalão.

Foi uma trama que tinha na ponta inicial o PGR e na ponta final o ex-colega Joaquim Barbosa. E, garantindo a narrativa de ambos, a mídia e a incapacidade da defesa dos acusados.

As condenações tiveram por base uma mentira – o suposto desvio de recursos de marketing da Visanet, que nunca aconteceu. Havia laudos de auditorias comprovando o gastos da verba e uma perícia da próprio Polícia Federal confirmando – e mantida sob sigilo absoluto por Joaquim Barbosa.

Em todo período de julgamento do Mensalão, a exemplo da Lava Jato, os vazamentos eram sincronizados com eventos políticos, mostrando a ampla politização da PGR.

Antônio Fernando de Souza se aposentou gozando as regalias do poder acumulado. Foi para seu escritório de advocacia e ganhou contratos da Brasil Telecom, de Daniel Dantas – que ele livrou as ligações com a agência de publicidade de Marcos Valério -, e teve participação direta na anulação da Operação Castelo de Areias, como advogado da empreiteira Camargo Corrêa.

Seu sucessor, Roberto Gurgel, passou a controlar todas as denúncias criminais que chegava à PGR, já que a pessoa responsável por analisá-las era sua própria esposa. Foi assim que, durante todo o período do mensalão, manteve na gaveta o inquérito da Operação Norbert, do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, que apontava a existência de contas de Aécio Neves em paraísos fiscais. E tirou da gaveta uma denúncia contra Renan Calheiros justo no dia em que haveria votação para a mesa do Senador, com Renan tendo como principal opositor um ex-procurador, tornado Senador graças ao seu trabalho do Ministério Público.

Seu sucessor, Rodrigo Janot, também manteve a gaveta cheia, sem tocar na Operação Norbert, apesar de ter trazido para sua assessoria os principais procuradores envolvidos na operação.

Faço essa enorme digressão para demonstrar que, excesso de poder não pode ser contido por manifestações individuais de ética. Antonio Fernando de Souza, que inaugurou a instrumentalização política da PGR, integrava o grupo mais idealista da corporação. Janot, que afundou de vez o MPF, também pertencia ao grupo e, antes de ajudar na destruição das empresas nacionais, ajudava a organizar cursos que discutiam problemas nacionais, autonomia, segurança nacional. A exemplo de um personagem de Brecht, que, depois do segundo gole, tornava-se generoso. Em uma dessas tertúlias, chegou a oferecer asilo a José Genoino, sabendo-o vítima de perseguição injusta. Assumindo a PGR, seu primeiro ato foi mandar Genoino para a prisão.

Aí se entra na segunda parte da história.

Foi a autonomia do MPF que permitiu a procuradores claramente corajosos, como Luiz Francisco, Raquel Branquinho atuarem contra grupos criminosos; a procuradores nos confins, defendendo índios, combatendo invasão de terras, defendendo o meio ambiente, defendendo minorias, combatendo o coronelismo nos mais remotos rincões do país. Mas, ao mesmo tempo, coexistindo com promotores truculentos que valeram-se do padrão imposto pela Lava Jato para exercer um poder ditatorial sobre suas regiões de atuação.

Hoje em dia, a Defensoria Pública cumpre uma missão extraordinária, a mesma que se imaginava que o MPF poderia cumprir após a Constituição. E a impunidade da Lava Jato Curitiba é uma mancha indelével, a prova definitiva da incapacidade da corporação se auto-regular.

O MPF foi contaminado não apenas poder seus adversários, mas pelos seus defensores. Ao escolher o primeiro da lista tríplice para PGR, os governos petistas consolidaram o corporativismo do setor. Ao abrir mão de Ela Wiecko pela recondução de Rodrigo Janot, Dilma Rousseff matou a derradeira oportunidade de reconstrução do MPF. Não por culpa dela, é claro, mas pelo mesmo descuido fatal que marcou a escolha de Ministros do STF, por não se dar conta de que a síndrome do poder político já havia contaminado a maior parte da corporação e do Judiciário.

Mas, ao deixar de lado a lista tríplice, deixa-se nas mãos de Bolsonaro escolher o Procurador Geral, o único com poderes para processar o Presidente.

De que maneira conter os abusos sem impedir a defesa legítima dos direitos difusos? Confesso não saber qual modelo seria o ideal. Exponho apenas as indagações esperando provocar um debate mais aprofundado sobre um poder que se desmoralizou, ao permitir que meia dúzia de provincianos deslumbrados cometessem toda sorte de abusos, sem serem desautorizados.

Luis Nassif

11 Comentários

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  1. A questão é complexa realmente, mas vamos a algumas contribuições.

    O mandato do PGR deve ultrapassar o mandato presidencial em pelo menos 2 anos e não ter recondução.

    A escolha deve se dar ampliando o leque de eleitores, que além dos próprios procuradores também inclua todos os Dep, Federais e senadores, acabando com a lista tríplice e a indicação do executivo. Quem elege é povo através dos seus representantes.

    Nas procuradorias estaduais e municipais, onde houver, utiliza o mesmo critério, com deputados estaduais e vereadores elegendo que irá presidir para além dos seus mandatos.

    1. A foto é emblemática. Vagabundo canalha levantando a garantia de mais 40 anos de NecroPolítica replicando o Estado Ditatorial Caudilhista Absolutista Assassino Esquerdopata Fascista. O que poderia dar errado? Pobre país rico. Não tem problema, agora somos todos norteamericanos, canadenses, italianos ou franceses,…Sempre AntiCapitalistas. Mas de muito fácil explicação.

  2. Na França a EPO é o ambiente da formação da “burguesia do Estado”, saem dela os quadros para administração estatal, das multinacionais publicas e privadas.
    Não são concursados são formados para ter visão, interesse de Estado e não de governo do momento.
    Quando erram, veja na Argélia, são criminosamente pró França e o sistema judiciário sempre da um jeitinho para…….

  3. Uma questão complexa e pouco trabalhada no debate dos especialistas diz respeito ao processo seletivo para procuradores e promotores. Nem mesmo o Grupo Prerrogativas comenta esse aspecto para analisar a atual crise do judiciário.
    Conheço inúmeros casos de famílias de classe média alta que sustentam seus filhos recém formados em direito durante anos para fazerem a prova.
    Como esperar que jovens pouco experientes, sem experiência na prática do direito, via de regra ideologicamente bastante conservadores, e sem nenhum serviço público relevante prestado ao país, vão defender a Constituição de forma equilibrada, isenta, competente e corajosa?
    Essa situação é ainda mais delicada pelo fato que vivemos num país com enormes desigualdades sociais, assimetrias de poder e com um racismo estrutural que ainda demandará um grande esforço de justiça histórica. Portanto, um procurador ou promotor precisa, além de competente, ser extremamente corajoso para não se render às pressões de grupos econômicos, políticos e midiáticos poderosos.
    Desde os anos 1990, quando trabalhei com procuradores do Ministério Público assessorando-os em causas de interesses difusos, percebia que alguns jovens recém concursados, mais que inexperientes, comportavam-se de forma oportunista, imatura e covarde. Via, na época, uma espécie de ovo da serpente sendo criado. O tempo foi mostrando que as serpentes cresceram e se espalharam num órgão tão importante como o Ministério Público, que possui quadros notáveis, mas foi sendo ocupado por profissionais com interesses pessoais, políticos e de classe que não condizem com sua nobre missão de justiça.
    Futuramente, quando o cenário mude e queiramos reverter as características anti-democráticas, elitistas e mesmo fascistas do judiciário, teremos que mudar o processo seletivo. Este não poderá ser baseado numa meritocracia que despreza as qualidades necessárias para servir ao Ministério Público.

  4. Não. Em resposta a pergunta do título. Não tem porque quem fala e se expressa é só a parte podre. A suposta parte sadia, se esxiste, se cala. E quem cala, consente.

  5. Com base nos fatos observados nas ações do M.P., é claro que, nos moldes atuais, NÃO tem salvação.
    Acho que o mais simples é deixar no M.P. (talvez até mudando o nome) apenas as atividades em que demonstrou ser útil, como a defesa dos direitos difusos. O restante, extinguir sumariamente.
    Em seu lugar, o ideal seria a instituição da possibilidade da revogação dos mandados parlamentares, mas se não for possível deixa como está. Aí, o controle da corrupção fica na mão do eleitor.

  6. Sugestões:
    -Reforma dos Conselhos Nacionais, com a inclusão de membros do Poder Judiciário e Defensoria Pública, além de pessoas com notorio saber jurídico, de modo que possam ser maioria, evitando que o CNMP não condene abusos dos seus membros;
    – Instituir que haja condenação aos honorários sucumbenciais por parte dos membros do MP em caso de denúncias criminais ineptas ou insistência de condenação sem provas;
    – No âmbito da proteção dos direitos difusos e coletivos, maior orçamento para aparelhar a DPU e Defensorias Públicas dos Estados, para atuar de forma concorrente ao MPF/Ministério Público dos Estados;
    – A indicação de lista tríplice passar a incluir indicações de uma Ouvidoria Geral Nacional, a ser elaborada por órgãos de defesa dos direitos humanos;
    – Quarentena de 10 anos para ex-membros;
    – Extinção da modalidade “aposentadoria compulsória”;

  7. Com tantos promotores e procuradores corporativistas e arrogantes (tão qual os juízes) desanima propor qualquer coisa. Mas, vou lembrar que o PT e vários outros são assim também, que este é 1 defeito humano, e dar algumas sugestões:
    1 – Ampliar a lista para os 5 mais votados e deixar que uma banca de juristas escolha a melhor redação, com tema escolhido pelo presidente sobre alguma falha grave do MP, ex:
    a) É moral e legal que membros do MP com salário médio acima de R$ 20 mil tenham auxílios e verba indenizatórias que professores de escolas e PMs (com salário médio de R$ 2 mil) não tem?

    b) Cerca de 90% dos inquéritos policiais não são concluídos e a lei diz que cabe ao MP o controle externo das atividades policiais. Quais Termos de Ajustes deveriam ser propostos pra melhorar o percentual de conclusão? Cite outras boas ações que o PGR e demais membros do MP podem fazer

    As seguintes propostas precisarão serem explicadas pro MP e população que acabarão com o corporativismo. Como 1 ótimo professor de curso de medicina que seja químico ou biólogo (se preciso, citar até Nobels)

    2 – Que o MP só possa indicar conselheiros no CNMP que não sejam do MP. Creio que os juristas, ex-membros do MP e advogados indicados serão menos corporativistas.

    3 – Que a vaga do MP no CNMP seja por lista tríplice para ser aprovado pela OAB. Será bom usar esta regra pra escolher os outros conselheiros também.

  8. Tenho sugestão para 3 medidas para o Judiciário e MP:

    1) PEC 37

    2) juiz de Garantias

    3) Condução do Procurador-geral e STF por colegiados com representantes da sociedade civil constituídos e nomeados pelo congresso.

  9. Como disse Sepúlveda Pertence: “Ajudei a criar um monstro”.
    É preciso matar o monstro da seguinte forma:
    (1) demitir TODOS os procuradores
    (2) criar uma nova instituição com dois pré-requisitos:
    (a) metade do salário atual
    (b) crime de responsabilidade para os excessos.

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