O mundo fantástico do feminicídio, por Cristiane Alves

O mundo fantástico do feminicídio, por Cristiane Alves 

Lá no mundo fantástico ouvem-se gritos, mas ninguém faz nada. No mundo fantástico é coisa que não nos cabe, panela pra não meter a colher, é um exercício de “sobrevivência”, porque a coisa pode virar contra quem interfere.

No mundo fantástico não se ouve gritos de protesto, urros de dor ou desespero, pedidos de ajuda. Ali não há mãos estendidas, mães suplicantes ou filhos mendicantes por atenção. Penso na impossibilidade de não se ouvir as preliminares de um feminicídio. Em como um homem visivelmente mais forte, agride uma mulher sem medo de ser interrompido em sua ação disciplinadora, porque em sua postura vemos justamente que ele se crê no dever de incutir nela uma conduta, uma mudança de rumo, um condicionamento comportamental. Ele crê que a culpa daquilo tudo é dela que o obriga a ser duro, grosseiro ou bárbaro.

Por fim a culpa é dela que o transformou no que há de pior, mesmo que seja para tentar salvar a sua alma perdida e egoísta. Mulher que se separa, que trai, que fala, que luta, que sustenta o olhar precisa aprender seu lugar, e lugar de mulher é onde o homem quer. E a sociedade ouve os gritos, e finge, vê a cena e ignora, até que outra vítima surge nas estatísticas de mortes por violência doméstica. A sociedade tem um breve luto, indigna-se numa breve luta contra o criminoso, nunca contra o crime.

No mundo fantástico a doença é menos grave que os sintomas e segue a vida de quem vive para fingir que está imunizado. A mulher morta vai ser culpada por muitas coisas, vão revirar sua vida, vão dizer que conhecem o homem e que ele jamais faria aquilo se não fosse (…). E quantas não têm carro pra apanhar dentro? Quantas não têm a garagem no subterrâneo do prédio, quantas não apanham no elevador? Quantas mulheres não têm quatro andares de subvida antes do fim?

Nem falo do monitoramento de câmeras, porque no fantástico mundo do feminicida ninguém vai culpá-lo por algo que ele está fazendo em legítima defesa de sua vontade. A câmera lhe é testemunha de defesa, porque em sua defesa há toda uma sociedade que nada vê.

Então ela o leva a se tornar assassino, ele só percebe o que ela fez depois que não tem mais volta. Ela o manipulou ao ponto de agora ele ter que pensar numa saída, num álibi, numa desculpa. Ter que buscar o corpo, olhar e pensar: “olha o que você me fez fazer!”. Limpar sangue, limpar digitais, olhar para o corpo e chorar (não pela ex vida, mas porque agora precisará explicar o que fez e detesta dar satisfação).

Mais uns dias e a morte será assunto pretérito, só mais um caso isolado e a vida segue no mundo fantástico de cidadãos de bem que não têm nada com isso. E tem os que defendem o porte de arma para que feminicídio possa ser combatido com “homencídio”.

Um primor dos mitológicos pensadores do mundo fantástico onde tudo é justificável quando vindo das pessoas certas.

Dói em mim saber que a solidão existe e insiste nos corações dos fracos de alma.

Cristiane Alves – Formação em Geografia (licenciatura e bacharelado) – UNESP, Especialista em educação especial com ênfase em Altas Habilidades e Superdotação – UNESP

Cristiane Alves

2 Comentários

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  1. Panelas e colheres

    A classe média que bateu panela para tirar uma mulher honesta da presidência agora acha deselegante meter a colher em briga de marido violento e mulher…

  2. Há um ditado cretino segundo o qual…

    O macho não sabe porque está batendo mas a mulher sabe porque está apanhando.

    E todos, não importam seus telhados de vidro, atiram não só a primeira mas penúltima e a última pedras.

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