O Pai Ao Lado do Rádio

Originalmente postado: http://klaxonsbc.com/2011/05/09/o-pai-ao-lado-do-radio/

 

A imagem do pai ouvindo o rádio marcou a infância. Domingo, o acordar cedo era marcado por uma mistura de sons. Os pedidos recorrentes da mãe para compra das coisas para o almoço e o rádio, sempre soando pela casa. Músicas perdidas, locutores do futebol. O almoço de sabores conhecidos, mas agradáveis, a tarde caindo em visitas, às vezes chatas, às vezes surpreendentes. Os narradores de futebol eram os companheiros mais resolutos dessas tardes, algozes na derrotas, e entoadores de cantos élficos nas vitórias. E o pai ouvindo rádio sem prestar a atenção no que ouvia.

– Quanto tá o jogo, pai? – perguntava esbaforido, ao chegar da rua.

– Olha, não sei direito, acho que 0 x 0 …

Os sons iam se confundindo e a vida era boa. Os programas de rádio após o término da transmissão esportiva eram ruídos. As notícias do domingo, “músicas inesquecíveis”, locutores de vozes discretas comparados com os exagerados narradores de gols e jogadas. O futebol amortecia o mundo.

Na segunda era acordar e bolar estratégias para atacar ou se defender dos torcedores derrotados e vencedores. Os truques eram vários: tripudiar, ironizar, contar vantagem, ignorar e até às vezes fingir não gostar mais de futebol. Não muda muito com o tempo, mas para qualquer menino é exercício de aprendizado e de novidade.

A imagem do pai ouvindo o jogo sonolento, parecia um mantra que o entorpecia, que suavizava os problemas. Hoje consigo entender quando coloco uma música quieta, em tom menor para dar torpor à mente, acho que é o mesmo. O som do rádio era sua fuga perfeita. Ele dizia não saber o que acontecia, mas sabia nome de locutor, de comentarista, de repórter de campo. O que diziam os comentaristas do jogo era debatido. O nível geral não ultrapassava o senso comum, nós começávamos repetindo os adultos e os termos. Passava o tempo e dominávamos os termos, criando clichês novos e mais lugares comuns. Ladainha permanente …

– Futebol é coisa de gente sem futuro – dizia a mãe, em uma das suas mil máximas – mas tinha palavra de conforto quando o time perdia coração de mãe antitorcedora, mas conivente com a dorzinha do filho. Não tinha sossego enquanto eu não largava o rádio, e ficava feliz quando eu pegava o caderno e na verdade o único cálculo que eu tava fazendo era a pontuação do meu time e se tinha chance de se classificar.

Terça-feira, se não me engano, saia a Revista Placar, na banca ficava mirando a capa, todas as vezes que passava. Decorava os times que saiam na capa da revista, os jogadores, a manchete das reportagens raramente tinha grana para comprar. Feliz o dia que meu irmão chegava com a semanal embaixo do braço, deitava no sofá para ler, posudo, quase me dizendo que não era pra mim. Não raro, a escondia no seu quarto só para me sacanear. Horas depois eu podia lê-la, parecia não ter fim. Encantava-me o Tabelão, que trazia toda a ficha técnica dos jogos da semana, escalação dos times, nome do juiz e bandeirinhas, renda, público, artilheiros, cartões vermelhos e amarelos. Minha “erudição” no futebol vinha daí, de que outra forma eu ia saber que o goleiro do Flamengo do Piauí se chamava Hindenburgo?

A imagem do pai sonhando ao lado do rádio, era o dia de família toda em casa, de ouvir os sons dos vizinhos na situação excepcional do domingo, e por mais triste que fosse ou estivesse a casa, havia barulhos diferentes no domingo. O futebol era a falta de outras falas? Poderia ter perguntado coisas da vida ao pai, a mãe se não estivesse envolvido com aquele mantra que entorpecia as tais tardes? Não existe como voltar, com tirar as chuteiras, como anular gols, expulsar o craque do outro time, desviar a trave conforme a conveniência de um gol sofrido, de um tento a favor.

A imagem do pai que jamais desligava o rádio, mas nem sempre ouvia (fingia?) o que vinha dele …

Redação

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