O pior do grande encarceramento brasileiro é o que ainda está por vir, por Marcelo Semer

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Foto: CNJ

Por Marcelo Semer

No Justificando

O relatório do Infopen-2016 chamou a atenção para fatos alarmantes. Não apenas ultrapassamos o limite dos 720,000 presos, atingindo a terceira maior população carcerária do mundo, como somos o único país dos grandes encarceradores, que permanece nesse ritmo vertiginoso. Nossa virada punitiva parece não ter fim.

Nas últimas três décadas do século XX, pondo fim ao que se acostumou chamar de trinta anos gloriosos do hemisfério norte no pós-guerra, universalizou-se um movimento de recrudescimento da prisão. O fim do fordismo, a crise do petróleo, a recessão mundial, enfim, o final do século XX chegou aos países industrializados com a retomada de uma expansão punitiva (o segundo grande internamento, como diz Alessandro Di Giorgi[1]) que atingiu, nos Estados Unidos, o seu ponto mais alto: o encarceramento em massa de mais de dois milhões de presos.

Muitos foram os que se debruçaram sobre causas e consequências dessa virada punitiva.

Loic Wacquant[2] popularizou a ideia de uma nova penologia neoliberal, superando a aparente contradição entre o Estado mínimo e o Estado policial: os gastos previdenciários foram substituídos pelos penitenciários e o sistema penal como a mão direita forte que supriu, com violência, a ausência do dilacerado estado de bem-estar. O sistema prisional norte-americano, dizia Wacquant, virou o maior programa habitacional do mundo.

David Garland[3] compartilhou uma visão culturalista, segundo a qual as profundas transformações sociais e econômicas, que culminam com aumento de criminalidade e a propagação de uma angústia da pós-modernidade, abriram espaço para a aceitação da política neoconservadora na área penal. A sociedade emergiu na cultura do controle.

Jonathan Simon[4] esquadrinhou a estrutura institucional do Estado em transformação, mostrando o crime como paradigma da governamentalidade, e como isto corroeu a democracia norte-americana desde os anos 1970.

Michelle Alexander[5] descortinou o viés racial do endurecimento penal, pelo qual o encarceramento em massa nos EUA era a perpetuação, por meios supostamente mais racionais, mas certamente mais duradouros, da segregação que marca o país desde a época da escravidão.

Cada um a seu modo trouxe importantes condimentos para entender o movimento do hemisfério norte e arbitrar nossas próprias avaliações, embora os modelos não nos caibam como luvas.

É difícil encaixar uma explicação que parta da irrupção do neoliberalismo estilhaçando uma poderosa estrutura de bem-estar no Brasil. O atraso geracional da América Latina, em face das ditaduras no período, é uma mostra das dificuldades de transposição, mas não a única. Por aqui nem tivemos propriamente um estado de bem-estar social nem a conclusão da ruptura neoliberal –que parece estar cada dia mais próxima após o golpe.

Não se pode dizer, como Wacquant, que o principal mecanismo de transferência de renda (como o AFDC, nos EUA) foi reduzido à metade com o avanço da histeria penal; no Brasil, os mecanismos de transferência expandiram ao mesmo tempo que a população carcerária. Por igual motivo, não se deve gastar toda munição para entender a guinada neoconservadora de que fala Garland –parte significativa do crescimento da população prisional, deu-se nos governos de Lula e Dilma (como, aliás, também com Clinton nos Estados Unidos).

A transformação de governamentalidade que descreve Simon, o governo através do crime, é mais um retrato do momento atual do Brasil do que propriamente uma explicação do passado. Especialmente no que respeita ao espraiamento da mentalidade punitiva sobre todas as esferas (família, escola, empresa), e o enorme fortalecimento do Ministério Público –que lá foi contemporâneo à adesão ao rigorismo desenfreado. Isso só revela o quanto de notícias ruins ainda nos esperam nos próximos capítulos.

A centralidade da questão racial, e nesta, da extrema relevância da guerra às drogas e sua seletividade, mostra um panorama bem mais próximo do nosso, nas explicações de Michelle Alexandre, ainda que tenhamos histórias distintas dos mecanismos tradicionais de segregação. Sobre os níveis de violência policial, todavia, são os Estados Unidos que ainda engatinham perto da letalidade brasileira frente à juventude negra.

Os autores mostraram, no entanto, por motivos e formas distintas, uma contínua expansão do aparato penal. Polícia militarizada, legislação draconiana, abandono completo do ideal de reabilitação, tudo legitimado por uma adesão explícita da mídia, que cultuou como referência, o processo penal do espetáculo.

Mas se há um tema pouco aprofundado nestes estudos, é justamente o papel dos juízes no crescimento do encarceramento.

Ninguém discorda que as sentenças de uma maneira geral ficaram muito mais rígidas, mas em certa medida, especialmente nos casos dos países de common law, isto foi resultado de uma menor discricionariedade concedida ao juiz para aplicação da pena –traduzida em institutos como por exemplo, three strikes and you’re out; minimal mandatory sentences, truth in sentence[6].

Penso que o papel do juiz no grande encarceramento pode ser ainda mais relevante, nos países de tardia industrialização –onde a tradição de respeito aos direitos assinalados na lei tende a ser historicamente menor. Como explica Pedro Serrano[7]:

“Enquanto na Europa se observam medidas de exceção de caráter legislativo, pelo fato de que se reconhece nesses países uma tradição maior de universalização dos direitos fundamentais, o mesmo não se constata na América Latina e em países de capitalismo periférico e democracia incipiente. Isso porque não existe a necessidade, no processo de dominação, de se estabelecer a exceção por norma geral e abstrata, já que de fato, a exceção já está inserida nas suas tradições, chancelada, muitas vezes, pela jurisdição”.

Ou mesmo em Gizlene Neder[8], para quem a democracia brasileira contrapôs a uma formação de cunho liberal, uma prática tradicionalmente autoritária.

Aqui, por exemplo, não foi necessária aprovação de uma lei no-knock[9] para facilitar a polícia em buscas domiciliares a procura de droga. O pé-na-porta já é uma tradição, tal como a omissão dos juízes em cerceá-lo. O assunto é pouco discutido nos processos e, na maioria das vezes, justificado pelo que acontece depois do ingresso policial.

Tampouco é fácil dizer que propriamente estamos praticando a “virada punitiva”, porque jamais conhecemos o previdenciarismo penal. O ideal de reabilitação sempre foi uma quimera. E certas violações carcerárias que hoje indignam os países do norte, já são nossas velhas conhecidas.

Mais fácil apostar que estamos imersos em uma explosiva mistura entre o expansionismo penal, que vem recheado pelas novas roupas dos imperadores (o populismo penal, em todos os seus vértices) e um extenso legado autoritário, que mitifica a importância da polícia e entroniza o juiz em um papel auxiliar no combate à criminalidade.

Nos paradigmáticos processos de tráfico de drogas, por exemplo, temos a reunião dos reflexos do pânico moral, que vitamina penas com base na ideia de flagelo do mundo, destruição das famílias, pilar da criminalidade com a adesão incondicional à prova produzida pelos próprios agentes policiais, a quem se entrega uma venerada presunção da verdade, a despeito de todos os relatos conhecidos de abusos.

O encarceramento brasileiro padece até hoje dos desastrosos resultados da linha-dura iniciada pela Lei dos Crimes Hediondos, que ajudou a duplicar a população carcerária, trazer a guerra às drogas à linha de frente do ingresso prisional e tornar relevante o tradicionalmente encolhido, encarceramento feminino. Os juízes deixaram sua modesta contribuição com quinze anos de vigência irrestrita e de aplicação incondicional, até que o STF reconhecesse sua inconstitucionalidade.

O fantasma da Lei dos Crimes Hediondos ainda nos ronda e até hoje amputa os avanços que a jurisprudência do STF admitiu nos crimes de drogas: parte considerável das instâncias inferiores se recusa a conceder liberdade provisória, aplicar regime aberto ou substituir penas privativas de liberdade por restritivas de direito para microtraficantes primários.

O resultado desta mistura de um populismo importado e de um autoritarismo nativo é um crescimento sem peios de um estado policial, agora travestido em decisões judiciais populares, e níveis alucinantes de prisionalização.

Nesse quadro, é importante registrar: poucas contribuições do Judiciário foram tão importantes para reduzir os danos deste crescimento geográfico, quanto o projeto das audiências de custódia, capitaneado pelo ministro Enrique Lewandowsky. Nas localidades onde foram amplamente implantadas, os resultados tem mostrado que não apenas se reduzem os níveis de aprisionamento cautelar –com a aproximação imediata de juiz e réu- como não tem provocado maior prática de crimes dos que ficam soltos.

Estamos, enfim, no limiar de compreender que não há mecanismo mais criminógeno do que a própria prisão.

Mas a grita ideológica dos que se armam contra a “bandidolatria” e clamam por moralizar, mas apenas tingem de prisão e pena os raríssimos espaços de apreço a liberdade, se tonifica a cada dia.

O pior do encarceramento brasileiro parece mesmo ser o que ainda está por vir.

Um retrocesso na custódia pode afundar um sistema penitenciário em frangalhos, que já abriga o dobro do número de presos para o qual foi construído. Enfim, apagar fogo com querosene. Mais uma vez.

Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

2 Comentários

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  1. o pior….

    Pelo sobrenome dos juízes, principalmente de SP, se descobre que enquanto o Poder Judiciário não passar de feudos de uma Capitania Hereditária. Nunca teremos algo próximo à Justiça, desta forma. Capitania Hereditária ampliada na Esquerdopatia, para calar o Judicário, que colocaria alguma ordem nesta Cleptocracia. Mas então, tantas mamatas, tantas mordomias, tantos resort’s pagos por centenas de instituições como Febraban, tantas aposentadorias, pensões e salários nababescos recrudesceram aquela ânsia democrática e igualitária. Quanto às cadeias brasileiras tem como piorar? ‘Prefiriria morrer a ir para masmorras medievais”. Quem foi o gênio que disse isto? Somente o então Ministro da Justiça José Eduardo Cardoso. Depois de 1/4 de século de governos pseudo-progressistas e socializantes de FHC, Lula e Dilma. Se ‘masmorras medievais’, a culpa é de quem e quem é responsável por tal situação, caro Iluminado?!!! Entendemos. Assim como compreendemos que o CRIME é um grande negócio, dos maiores negociantes desta República. Como disse outro Ministro da Justiça, o crime no RJ é atividade organizada, controlada e finamciadora de uns 2 ou 3 Deputados, Senadores juntamente com Governador. É assim no RJ, é assim no Brasil inteiro. Toda a população brasileira sabe disto. Ainda bem que o Ministro foi pelo menos sincero. ”Os pequenos ladrões são enforcados pelos grandes’. Como disse o traficante colombiano extraditado para os EUA: Querema cabar com o tráfico de drogas no Brasil, acabem com o Denarc / SP.E ainda estamos discutindo o porque estamos enchendo cada vez mais as masmorras medievais?!!! É surreal !!! (P.S. Quarenta anos redemocráticos. 30 sob uma tal ConstituiçãoEscárnioCaricaturaCidadã, e nunca olharam para presidios. NINGUÉM. Lembraram agora, pois comparsas são os novos moradores. A mulher, a mãe, a filha, a irmã do encarcerado, tem que ficar de quatro, tirar toda a roupa e pular de pernas abertas ou ser fiscalizada por espelhinos, em frente a Agentes Penitenciários ou Policiais. Será que o pessoal da Lava Jato passa por isto? Alguém lembrou desta gente em 4 décadas?) O Brasil é de muito fácil explicação..   

  2. Assalto ao trem pagador
     

     

    De tudo o que foi dito, pouco se refere à realidade brasileira pois que o articulista estabelece paralelos com realidades exógenas, esquecendo-se de que o nosso país é “sui generis”.

    As razões do enorme aprisionamento de nossa população, além das poucas apontadas, passam pela índole do brasileiro, pela sua pouca educação e baixa escolaridade, pelos efeitos das políticas públicas no tratamento das necessidades da população , em especial na área de segurança para enfim atingir a população carcerária.

    De tudo o que se possa dizer, entretanto, reconheça-se primeiro que O BRASIL É O PAÍS DA IMPUNIDADE.

    Se de todos os crimes comunicados às autoridades, apenas dos  7% são investigados e desses poucos apenas algumas investigações chegam a conclusão,admitamos, o que não seria se a polícia, o ministério público e a justiça agissem com a celeridade que a lei recomenda? O Brasil seria um presídio,  como de fato é, só que é a população a maior encarcerada, e do lado de fora, vive em celas mais confortáveis, temendo a polícia e os bandidos.

    A impunidade é tão descarada que bandido estrangeiro vem se esconder aqui.

    [video:https://youtu.be/-6tflujQjJQ%5D

     

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