O ressentimento como política de Estado

Isto é um comentário ao post  “Sobre as Evidências da Tese do Ressentimento da Classe Média”, de Luís Felipe Miquel ( https://jornalggn.com.br/noticia/sobre-as-evidencias-da-tese-do-ressentimento-da-classe-media-por-luis-felipe-miguel )
 

O ressentimento da classe média não nasceu em outubro de 2002.

 

Ele existia antes de o PT ter a prefeitura de São Paulo. Estava pronto para ser usado contra a então prefeita Luiza Erundina, quando qualquer buraco no asfalto era chamado de “buraco da Erundina”.

É o preconceito que criou a “ficha de filiação do PT” que rodou o mercado financeiro em 1990 e tantos, que tinha “nome da mãe” e “nome de guerra”.

 

Essa é a mesma forma, a linguagem daquilo que se espalhou em posts apócrifos de Facebook e levava multidões a micaretas espontâneas na frente do prédio da FIESP.

 

Tem ressentimento com os mais pobres? Sim, mas é o ressentimento de sempre, não contra a “nova classe média”. O reacionarismo brasileiro foi cultivado durante anos na oposição primeiro ao candidato, depois ao governante Lula. Acredito que a mágoa seja ainda mais antiga.

 

O método de preferência, a criminalização, também não é inovador, ou recente. Muito pelo contrário, é o método de sempre.

 

Chico Anysio, na época da crise do governo Collor, pediu a “CPI do PT” em pleno Fantástico (o partido obteve o direito de resposta e o exerceu com Lula, semanas depois).

 

O roteiro é o mesmo, do aparelhamento do Estado aos dólares de Cuba, do dinheiro ilegal na campanha do PT ao apartamento no Guarujá. Você já ouvia versões dessas histórias de qualquer grupo de cinquentões discutindo política no bar, no clube, na pizzaria em 1989.

 

Na época das eleições de 1994, a IstoÉ deu na capa um cheque de R$5.000 de um doleiro, nominal ao PT. A reportagem alegava que a campanha de Lula seria financiada por meios escusos. O doleiro confessava fazer parte de um esquema, e ainda dizia “se eu quisesse f… o PT eu depositava (sic) R$100”. O partido ganhou na justiça o direito de resposta: uma edição de IstoÉ circulou com reportagem e capa criados pelo PT (mas com uma segunda capa com Lula usando um cocar). Semanas depois, outra capa de IstoÉ mostrava o rosto de Lula em uma fotomontagem com hematomas e dizia “Lula Sente o Golpe” (no caso, o golpe era a subida de FHC nas pesquisas depois do Plano Real).

 

Ninguém, enfim, inventou o ódio ao PT e a Lula no século XXI, nem tampouco são novas formas de manifestação desse antagonismo embebido de sentimentos negativos para com o partido e suas políticas.

 
Até mesmo o golpe em si, o ataque institucional no judiciário, no legislativo e dentro do próprio executivo, desde o Mensalão (na verdade desde o “caso Waldomiro” que o precedeu) se vale de táticas, de um modus operandi já trilhado em inúmeras batalhas políticas antes.
 

Mas justamente aí reside a grande diferença. Quando Chico Anysio falou no horário nobre em “CPI do PT”, malgrado quem aplaudiu, a Globo teve de colocar o Lula em cadeia nacional para defender-se, e o mesmo se sucedeu no exemplo da IstoÉ. É famoso o direito de resposta de Brizola lido por Cid Moreira no Jornal Nacional e o seu conteúdo que atacava a Globo. O PT governou durante uma crise econômica e o auge do escândalo do mensalão mas foi capaz de executar suas políticas, com os efeitos conhecidos, goste-se deles ou não.

 

Mesmo antes das manifestações de 2013, algo importante mudou. A oposição ao governo do PT, às suas políticas, passou a vir de novos atores, longamente discutidos no blog do Nassif. Eu mencionei “auge do mensalão” acima como se ele fosse no primeiro mandato do governo Lula, mas o impacto decisivo do escândalo se deu em 2012, quando foram presos José Genoino e José Dirceu, quando do afastamento de Luis Gushiken e outros do partido do governo.

 

Quem conhecia o nome ou a fisionomia de um ministro do STF antes de 2010, antes dos embates de Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes, justamente por conta do processo do mensalão?

 

Quantos juízes e procuradores foram anteriormente apresentados pela mídia como lunáticos em delírio de perseguição a políticos?

 

O poder veio antes do horror. A oposição preconceituosa ao “esquerdismo” ao “mimimi” ao “politicamente correto” aos “direitos dos manos” finalmente encontrou seus campeões. Quem tinha uma lá suas motivações políticas para contrapor-se ao governo e às mesmas políticas, como a imprensa corporativa, o mercado financeiro, etc achou o fio da meada.

 

Jornalistas truculentos sempre existiram, mas quando o ódio encontrou ouvidos, suas aspirações tornaram-se  concretas com nome, sobrenome, cargo, quando a criminalização que antes dava direito de resposta tornou-se a voz da suprema corte, e o tema do jornal das oito, um círculo virtuoso estava pronto.

 

Agressividade e niilismo sempre foram características cultivadas mesmo pelas mentes mais brilhantes e bem educadas de nossa sociedade, e uma visita à mesa de operações de um banco ou uma discussão casual entre médicos sobre seus pacientes do sistema público são o suficiente para comprová-lo.

 

Ronaldo Caiado, que na época da eleição de Collor era tratado como uma piada, agora tem post de Facebook compartilhado por executivos.

 

O descompromisso com a civilização ganhou enfim o respaldo de oportunistas tornados celebridade instantânea, comentaristas políticos, comediantes, e dos que já ocupavam o nicho. O horror que sempre foi cotidiano agora é a base da sustentação de decisões de Estado.

 

Não que nada disso seja uma grande novidade na história do Brasil.

 

A novidade era a democracia.

Redação

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