O TEATRO CÍVICO ITALIANO

Mattarellla e as freiras

A teatralidade dos italianos e os rituais de suas instituições políticas sempre me fascinaram. Tudo colabora: as impressionantes cenografias (palácios, ruínas, igrejas, praças, auditórios); a musicalidade extraordinária da língua e a gestualidade ligada à expressão linguística;  a sobriedade e corte  elegante dos vestidos (os figurinos) e o porte modelar de quem os endossa; a consciência melodramática da dimensão de cada ato.

Desse ponto de vista, a eleição do Chefe de Estado, do presidente da República, é o mais importante, e sobretudo, o mais teatral de todos os rituais políticos italianos. O fato de ser uma eleição indireta não lhe tira nenhuma importância. Pelo contrário, como tentarei explicar adiante, aumenta o seu aspecto cênico.

Pela Constituição italiana, o presidente é eleito por um colégio eleitoral (  i grandi elettori) composto pelos integrantes dos dois ramos do Parlamento (Câmara e Senado) e representantes das  20 regiões italianas. O total perfaz 1.009 votantes.

O presidente da República é o garante da Constituição, o chefe das Forças Armadas e preside o que no Brasil seria o Conselho Nacional de Justiça. O presidente não governa, mas todos os atos do governo, inclusive a escolha dos ministros e do primeiro-ministro, necessitam da sua assinatura e, portanto, do seu consenso institucional.  O seu mandato  (sete anos) é maior do que o previsto para uma legislatura (5 anos). O presidente tem o poder de dissolver o parlamento (por razões fundadas) e é ele que dá mandato a um possível primeiro-ministro de formar um governo com o apoio da maioria da Câmara e do Senado. Por ser um regime parlamentar, o primeiro-ministro, também, é eleito indiretamente. No caso atual, o premiê, Matteo Renzi, não é sequer parlamentar. Foi indicado, pelo presidente Napolitano, por ser secretário-geral do Partido Democrático depois de uma manobra nada transparente contra um seu colega de partido, Enrico Letta.

O por que estou dizendo tudo isso é para reforçar que o presidente da República é  um protagonista de primeira grandeza no drama cívico italiano, e que sua eleição é  seguida atentamente por toda a nação. Só a eleição do Papa é acompanhada com tanta atenção. Três coisas, porém, são bem diferentes : a eleição e o mandato papal não tem prazo nem acontece com regularidade cíclica; os eleitores (cardeais) são nomeados;  e, muito importante para as nossas observações, o ritual da eleição não é público, sabemos do seu andamento da escolha pelas fumaças negras ou brancas. Quase nada é ao vivo.

A eleição do presidente italiano acontece em um edifício, o palácio de Montecitório, sede da Câmara dos Deputados, cujo projeto original  é de Bernini, o gênio do barroco, completado por Carlo Fontana.  Em 1900, o edifício foi reconstruído pelo arquiteto Ernesto Basile, conservando somente a fachada. O hemiciclo de Montecitório, trabalho de Basile, é um palcoscenico perfetto, com sua forma vertical de auditorium grego-romano, unindo clássico e estilo liberty, decorado por motivos floreais. O vermelho predomina nas cores fortes do carvalho, nas poltronas, nas cortinas que ornam as tribunas que mais parecem camarotes de um teatro de ópera. Sobre a tribuna o extraordinário friso de Sartorio: uma grande fita de 105 metros composto de 44 painéis de quase 4 metros de altura pintado a cera fria e que narra, através imagens, a sua versão da civilização italiana. Acima do friso, um teto em vidro colorado emana luz natural. Diante do auditório, no alto, senta-se o presidente da Câmara que dirige os trabalhos.

A Constituição manda que nos três primeiros escrutínios sejam necessários 2/3 dos votos da Assembleia para a eleição de um presidente, o que induziria a um amplo acordo prévio entre as principais forças políticas, um conchavo bem amarrado. Somente duas vezes isso aconteceu: com Francesco Cossiga e Azeglio Ciampi.  Só a partir da quarta votação vale a maioria de metade mais um, 505 votos. Como controlar o voto secreto de mil pessoas? Como controlar a sede dos diversos partidos, correntes, cisões, interesses pessoais e os terríveis franco-atiradores, dispostos a queimar nomes estimados e importantes?

Tudo segue um script preciso,  em direta TV, sem interrupção. O presidente da Câmara chama por ordem alfabética, um a um,  os grandes eleitores que com um papel na mão entram numa espécie de túnel de madeira e cortinas (catafalco), votam, saem do outro lado  e, auxiliados por funcionários da Câmara, colocam o voto dentro de uma urna metálica, chamada de insalateira. São quatro tuneis, quatro urnas e diversos auxiliares vestidos a rigor (gravatinhas borboleta).  Esse desfile dos grandes eleitores demora um bom tempo (mais de uma hora) e é repetido a cada escrutínio. Como se repete também a contagem dos votos. O presidente da Câmara recebe o voto de um funcionário, que o recebeu de outro funcionário que retira o papel da urna aberta com testemunhas. Abre-o e o lê em alto e bom tom. O importante é o sobrenome: pode ser S.Mattarella, on. Mattarella, Sergio Mattarellla, prof. Mattarella, Mattarella Sergio, Mattarella S.. Essas diferenças, todos entendem, servem como controle para ver se os da tua corrente ou partido votaram realmente como foi decidido. O presidente da Câmara, então passa o voto ao presidente do Senado que o confere e passa aos auxiliares que separam por nome os votos, que depois serão recontados e reverificados um a um. Pode-se imaginar que seja possível fazer, no máximo, dois escrutínios por dia.

Enquanto isso, prosseguem dentro e fora os contatos, as trocas, as barganhas, as traições. Em 1994, o espetáculo durou mais de 20 escrutínios e só se resolveu depois do atentado de Capaci e a morte de Giovanni Falcone, sua mulher e seguranças. As forças políticas, então, chegaram a denominador comum, Oscar Scalfaro. O Estado precisava urgentemente de um chefe. Scalfaro fora, também, um juiz.

Durante as votações,  acontecem alguns golpes de cena para animar o ambiente. Por exemplo, o ex-presidente Napolitano, desde agora senador vitalício,  entrou no hemiciclo e foi saudado com uma ovação, interrompendo as indicações que Laura Boldrini, presidente da Câmara, dava à assembleia. O mesmo aconteceu quando foi chamado a votar. Porque todos estão ali controlando quem e como vota. Se sai imediatamente do catafalco significa que votou em branco; se demora muito é dúvida ou esqueceu a senha combinada. Será controlado depois.

Esse ano, Renzi anunciou Mattarella como candidato do PD. Disse que nas três primeiras tentativas os seus votariam em branco e depois, quando o quórum se abaixasse,  o votariam até alcançar a maioria, que o PD sozinho não tem. Foi um alvoroço, pois isso não era previsto. Foi chamado de desleal, de colocar em risco a governabilidade. Ele pouco se lixou. Seguiu com a sua tática. Arriscou.

Mattarella, viúvo muito reservado, várias vezes ministro, juiz da Corte Constitucional, daquele momento, não apareceu em público, e ninguém soube mais de palavra ou opinião sua. Começou a preparar a sua entrada como deus ex-machina, que do alto aparece no final do espetáculo e resolve todas as questões pendentes.

 Em  todo caso, foram realizados, rigorosamente, os três primeiros escrutínios. Não se pode pular os atos do espetáculo e passar diretamente ao gran finale. Todos acompanhavam essa estranha liturgia, onde não apareceria logo uma fumaça branca. Maquiavel ensina que enquanto não é anunciada a vitória não existe possibilidade de benevolência. O número de votos em branco era controladíssimo, pois significaria o quanto Renzi, príncipe de Florença, tinha em punho seus militantes e colaboradores.  Sexta-feira, lançou um apelo de convergência a todo arco político em torno do juiz siciliano. Era o sinal para que os opositores passassem, sem remorsos, para o seu lado. Berlusconi, que estava em Cesano Boscone cumprindo sua pena de serviço social em uma clínica, sentiu o poder da punhalada mortal e não pode nem mesmo fazer declarações em público.

Sábado de manhã, iniciado o quarto escrutínio, Mattarella saiu discretamente do seu apartamento, entrou numa discreta Panda e seguiu para a casa da filha, demonstrando conhecer perfeitamente o seu papel de protagonista. O suspense era saber se haveria traições a Renzi.  Mas, mano a mano, a expectativa foi se tornando conferir quantos trairiam Berlusconi . Quando às 13 horas o quórum foi superado (505) a assembleia liberou a tensão em um longo aplauso de mais de quatro minutos. Ao final, Mattarella alcançou 665 votos, ficando bem perto dos 2/3 que serviriam para liquidar a partida antes. O que era uma candidatura de parte, tornou-se avalanche de consenso.

Já dentro do novo papel, seu primeiro pensamento foi dirigido, suscintamente,  “às esperanças e preocupações dos meus concidadãos”. Em seguida, visitou um mausoléu das vítimas do nazismo, as Fosse Ardeatine. Hoje de manhã, foi à missa a pé, respeitando a proibição de tráfico de automóveis, e fez um selfie com as freirinhas da paróquia. Telefonou ao ex-presidente Ciampi e visitou, sempre a pé, o seu predecessor, Giorgio Napolitano.  Já sairam no Facebook fotos suas enquanto acompanhava na TV com os seus familiares a votação, ontem de manhã.

O ritual vai ser finalizado, em magna pompa, na terça-feira próxima. Mattarella sairá de sua casa acompanhado da secretária-geral da Câmara e, com o automóvel oficial da Presidência, irá até Montecitório, escoltado por carabinieri motociclistas. Será saudado por uma tropa de honra e quando o sino da torre maior de Montecitório badalará, entrará no palácio acompanhado da presidente da Câmara e do presidente do Senado, juiz e siciliano como ele, Pietro Grasso. Dentro do hemiciclo todos os receberam de pé e ele recitará a formula do juramento:   “Giuro di essere fedele alla Repubblica e di osservarne lealmente la Costituzione”. O sino voltará a bater e o canhão do Gianicolo, o mais alto monte de Roma, disparará 21 vezes. Ele, então, deixará a Aula Legislativa e lá fora ouvirá o hino nacional. O carro presidencial atravessará toda Via del Corso e renderá homenagem ao soldado desconhecido no Altar da Pátria. O corteio seguirá então ao Quirinal, o magnífico palácio romano, habitação outrora de 31 papas e reis de Itália, hoje a sede da Presidência e residência oficial do Chefe de Estado. Mais homenagens militares da guarda presidencial, i Corazzieri, no pátio interno e um breve discurso.  A peça termina com um coquetel para as autoridades civis e militares e o corpo diplomático. Pano rápido.

Redação

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