O TikTok da questão, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Donald Trump decidiu proibir o funcionamento do aplicativo TikTok nos EUA. Esta decisão aumenta a temperatura entre Washington e Pequim

A photo taken on December 14, 2018 in Paris shows the logo of the application TikTok. – TikTok, is a Chinese short-form video-sharing app, which has proved wildly popular this year. (Photo by JOEL SAGET / AFP)
O TikTok da questão
por Fábio de Oliveira Ribeiro

Sob alegação de que os dados dos seus usuários estão sendo capturados indevidamente, Donald Trump decidiu proibir o funcionamento do aplicativo TikTok nos EUA. Esta decisão que aumenta a temperatura entre Washington e Pequim também pode ter sido motivada por razões pessoais. É notório que o comício do presidente norte-americano em Tulsa fracassou porque os usuários do TikTok reservaram milhares de lugares e não compareceram ao evento. Não podendo se vingar dos cidadãos que fizeram isso, Trump descarregou sua raiva e frustração na companhia chinesa.

Para analisar melhor o que ocorreu farei algumas digressões teóricas.

Pierre Lévy afirma que “…as assim chamadas ‘comunidades virtuais’ realizam de fato uma verdadeira atualização (no sentido da criação de um contato efetivo) de grupos humanos que eram apenas potenciais antes do surgimento do ciberspaço.” (Cibercultura, Pierre Lévy, editora 34, 2ª edição, São Paulo, 2001, p. 130). Em outra obra, ele afirmou que “A identidade política dos cidadãos seria definida por sua contribuição à construção de uma paisagem política perpetuamente em movimento, e pelo apoio que dariam a determinados problemas (que eles julgam prioritários), a determinadas posições (às quais eles aderem), a determinados argumentos (que eles retomam por conta própria). Com isso, cada um teria uma identidade e um papel político absolutamente singulares e diferentes dos outros cidadãos, conservando a possibilidade de concordar com os que, sobre este ou aquele assunto, em determinado momento, possuem posições próximas ou complementares.” (A inteligência coletiva, Pierre Lévy, Edições Loyola, São Paulo, 1998, p. 65)

Menos otimista que seu compratriota, Paul Virilio preferiu criticar o que ele chamou de “sedentarização terminal”, uma “…consequência prática do advento de um terceiro e último horizonte trans-parente, fruto das telecomunicações, que permite vislumbrar a possibilidade inusitada de uma ‘civilização do esquecimento’, sociedade de um ‘ao vivo’ (live coverage) sem futuro e sem passado, posto que sem extensão, sem duração, sociedade intensamente ‘presente’ aqui e ali, ou seja, sociedade telepresente em todo o mundo.” (Espaço crítico, Paul Virilio, editora 34, 1ª edição, 1999, São Paulo, p. 108).

Como o fenômeno analisado ocorreu num momento eleitoral, não podemos deixar de citar aqui um fragmento significativo das obras de Steven Johnson e Clay Shirky. “O ‘eleitorado nervoso’ é uma cria das próprias pesquisas de opinião, cada expressão de ultraje popular alimentado mais ultraje, à medida que cada pesquisa amplifica o resultado da precedente.” (Cultura da Interface, Steven Johnson, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2001, p. 144). “O aumento da produção social faz crescer as tensões entre os desejos de indivíduos e de grupos. Essa tensão foi bem descrita por Wilfred Bion, um psicoterapeuta que se encarregou de uma terapia de grupo com neuróticos durante a Segunda Guerra Mundial.” (A cultura da participação, Clay Shirky, Zahar, Rio de Janeiro, 2011, p. 145).

Bill Gates disse algo que parece continuar sendo útil. “Algumas comunidades serão muito locais, enquanto outras serão globais.” (A estrada do futuro, Bill Gates, Companhia das Letras, São Paulo, 1995, p. 262). Dentro e fora da internet, existe uma comunidade global que certamente referenda as palavras de Julian Assange “Temos organizações e Estados com fronteiras cada vez mais indistintas entre si, com cada rede de influência global competindo entre si por vantagens. E seus fluxos de comunicação estão expostos a oportunistas, Estados concorrentes e assim por diante. Assim, novas redes estão sendo construídas além da internet, redes privadas virtuais, cuja privacidade é protegida pela criptografia. É essa base de poder industrial que está impedindo que a criptografia seja banida.” (Cypherpunks – Julian Assange com Jacob Appelbaum, Andy Müller-Maguhn e Jérémie Zimmermann, Boitempo Editorial, São Paulo, 2013, p. 82).

A preocupação da Assange com a privacidade também é enfatizada por Edwar Snowden. Em seu livro, o analista que revelou ao mundo o programa estatal de espionagem massiva dos EUA, afirma que “Os estados autoritários normalmente não são governos de leis, e sim de líderes, que exigem lealdade de seus súditos e são hostis à dissidência. Os estados democráticos liberais, em contrapartida, fazem poucas ou nenhumas exigências, mas dependem quase exclusivamente de cada cidadão assumir a responsabilidade de proteger as liberdades de todos que o cercam, independentemente de raça, etnia, credo, capacidade, sexualidade ou gênero.” (Eterna vigilância, Edward Snowden, Planeta, Sao Paulo, 2019, p. 178).

Evgeny Morozov concorda com Snowden e vai além. Ele levanta preocupações genuínas acerca do que nós podemos chamar de privatização do direito público. “A ideia de que os mercados nos proporcionam condições melhores para exercer a nossa liberdade e individualidade – pois todos os nossos ‘votos’ contam, e também porque, em última instância, as empresas que nos servem serão punidas bem antes do que os partidos políticos – pode se basear em premissas falsas, mas continuam a desfrutar cada vez mais de apoio político.” (Big Tech, a ascensão dos dados e a morte da política, Evgeny Morozov, editora Ubu, São Paulo, 2018, p. 177).

Antes de avançar farei um recuo maior no tempo.

“…Kant considera a restrição do uso privado da razão, como exercida em uma repartição ou escritório administrativo em particular ou diante de uma congregação privada, como uma violação da liberdade bem menos séria do que as limitações no erudito que dirige seus escritos a um público esclarecido. Essa precedência concedida às prerrogativas públicas sobre as prerrogativas privadas pode parecer uma espécie de inversão das tradicionais prioridades liberais de parte de um dos principais mananciais do pensamento liberal. Nesse ponto, porém, Kant é claro: o uso da razão em uma reunião doméstica ou privada é dispensável para a liberdade, ao passo que o direito à publicidade, o direito de submeter livremente os juízos de alguém à prova pública diante de ‘uma sociedade de cidadãos do mundo’, não é dispensável, mas sim absolutamente necessário à liberdade, ao progresso e ao esclarecimento. Deste modo, o arejamento público dos juízos tem precedência sobre a troca privada de opiniões. O interesse predominante aqui é por um mundo, ou uma comunidade de cidadãos do mundo, a quem apelamos até mais urgentemente do que àqueles bem ao nosso redor. O juízo deve ser universal, e deve ser público – deve dirigir-se a todos os homens, deve tratar daquelas coisas públicas que aparecem diante de todos os homens e são visíveis a eles.” (Hannah Arendt – sobre “O Julgar”, Ronald Beiner – apêndice do livro Lições sobre a Filosofia de Kant, Hannah Arendt, relume Dumará, Rio de Janeiro, 1994, p. 113/114)

A tese kantiana pressupõe uma distinção entre o espaço privado e o espaço público que deixou de existir. Kant já concebia o espaço público como um fenômeno que transcende as limitações do espaço geográfico (objeto das preocupações de Paul Virilio). Para ele, era vital a garantia da liberdade de expressão nesse espaço ampliado, ao passo que sua limitação num espaço geográfico limitado poderia ocorrer sem causar maiores problemas.

O advento da internet modificou o espaço público, na medida em que o transformou numa continuidade do espaço privado. O confinamento geográfico, como notou Pierre Lévy, deixou de ser uma realidade para todos as pessoas. Elas podem participar de grupos que se transcendem sua localização no espaço. O que era uma prerrogativa do intelectual e do erudito no tempo de Kant se tornou uma extensão da personalidade humana à medida que ela se expande sem encontrar barreiras no mundo virtual.

Isso não apenas causou o aumento das tensões entre as pessoas, como notou Clay Shirky. Na verdade, as novas tecnologias da comunicação provocaram imensas modificações na arena eleitoral que não foram percebidas por Steven Johnson. Redes sociais como o Facebook/Twitter podem ser e são utilizadas e eventualmente manipuladas para amplificar a penetração de campanhas políticas. Elas também são empregadas como armas de ataque para prejudicar adversários eleitorais (isso ficou bem claro no caso de Fernando Haddad, cuja candidatura foi praticamente destruída pelo gabinete do ódio criado e comandado pelos Bolsonaro).

No caso do TikTok x Trump ocorreu uma evidente inversão. Foram os usuários que se apropriaram da ferramenta para sabotar um evento presencial do candidato republicano em Tulsa. Essa reapropriação democrática colocou em risco a estratégia de Trump de duas maneiras. Além de expor a fragilidade do “aparato eleitoral” do republicano no mundo real, os usuários do TikTok concretizaram as palavras de Pierre Lévy. Eles recuperaram a mobilidade democrática de uma paisagem política que Trump pretendia congelar se transformando no único protagonista eleitoral a tirar vantagem do uso das redes sociais.

Se o que estivesse em questão fosse a privacidade dos usuários de smartphones, Trump teria que proibir o funcionamento de milhares de apps criados nos EUA para fazer o mesmo que o TikTok supostamente tem feito. Alguns desses apps, segundo Shoshana Zuboff, são extremamente invasivos. Outros enunciam normas de privacidade que não são cumpridas. As informações extraídas de maneira furtiva dos smartphones dos usuários são intensamente comercializados no Vale do Silício.

A NSA transformou a espionagem em massa em uma política de Estado. As empresas norte-americanas que exploram o capitalismo de vigilância fazem isso para obter lucro. Portanto, o ataque que Trump desferiu contra o TikTok não tem nada a ver com a preservação da privacidade. Ele foi orquestrado para ferir mortalmente o renascimento da democracia por outros meios nos EUA.

O absolutismo de Donad Trump é evidente. Ao atacar sistematicamente a imprensa, ele rejeita a criação de um espaço público liberal kantiano. Ao proibir o TikTok ele se insurge contra a reconstrução da política nos espaços privados amplificados pelas novas tecnologias da comunicação.

Se levarmos em conta a espionagem massiva realizada pela NSA com ajuda do Facebook, Google e Microsoft, bem como o sucesso financeiro dos empresários norte-americanos que exploram o “excedente comportamental” extraído aberta ou fraudulentamente dos usuários de aplicativos de smartphones e aparelhos eletrônicos ‘smart’ (vide minha série de artigos sobre a obra de Shoshana Zuboff), o uso criativo do TikTok para prejudicar eleitoralmente Trump e a reação do presidente dos EUA podemos concluir que uma afirmação de MacMahon não faz mais qualquer sentido. “No ciberespaço, onde a identidade e a motivação são obscurecidas pelo anonimato, o agente de todos os eventos deliberadamente ameaçadores é ‘o hacker’.” (Ameaça cibernética, David MacMahon, editora Market Books Brasil, São Paulo, 2001 p. 55).

As preocupações com privacidade e criptografia enunciadas por Julian Assange, Edward Snowden e Evgeny Morozov nunca foram tão oportunas. As verdadeiras ameaças à democracia não estão nas mãos de hackers e sim nas dos donos de companhias gigantescas e de Estados governados por pessoas autoritárias como Donald Trump.

Bill Gates e Paul Virilio estavam igualmente errados. O primeiro foi incapaz de admitir a possibilidade do autoritarismo limitar a consolidação de grupos de internautas. O segundo desprezou aspectos essenciais da filosofia de Kant. A identificação da política com o espaço geográfico é um erro. A destruição de espaços virtuais democráticos não pode deixar de ser considerado um crime.

O TikTok possibilitou a formação de uma eficiente comunidade de norte-americanos capazes de explorar as vulnerabilidades da campanha do candidato republicado. Ao proibir o funcionamento do app ele desmantelou essa comunidade considerada indesejável. Esse evidente encolhimento forçado do espaço democrático deveria ser objeto de debates no Judiciário dos EUA. Os usuários do app levarão o caso à Suprema Corte Americana? A conferir.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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