O trabalho e os dias de ira no golpe

Isaak Brodsky – realismo socialista

O trabalhador deve lançar mão da astúcia e da desmedida para subverter a ordem econômica e social. Aliás, isso já ocorreu inúmeras vezes ao longo da história. 

 

Dies irae

Numa manhã de domingo, resolvi fazer algo fora do meu hábito cético: fui a uma igreja. Inadvertidamente, enquanto o padre falava sobre o dia da ira, que estava próximo ou coisa parecida, comecei a vagar em pensamentos.

É que a palavra “dia” me fez lembrar que a segunda-feira estava próxima, o dia do senhor seria substituído por mais um dia de trabalho. Ora, isto é que seria motivo de ira: mais um sufocante dia de trabalho. Foi então que, numa espécie de associação livre, recordei-me de uma leitura da minha juventude: “Os Trabalhos e os Dias”, de Hesíodo.

Para Hesíodo, há dois tipos de luta. Na verdade, duas formas dessa deusa se manifestar: uma má e outra boa.

A primeira delas seria a da inveja, da ganância, da destemperança. Por assim dizer, foi a luta ambiciosa de Zeus contra o poder de seu pai, Cronos. Ou, na cultura judaico-cristã, o assassinato de Abel pelo seu irmão invejoso Caim.

Já a segunda configuração de luta, a boa e positiva, no entendimento poético de Hesíodo, seria a luta do trabalho.

Enquanto o sacerdote seguia no sermão sobre a ira, o poeta grego falou à minha memória sobre a raça de ferro (é a que a nossa humanidade faz parte): ela está fadada ao trabalho, haja vista que não teríamos “pausa da fadiga e da miséria”.

A condenação ao trabalho foi o castigo dado por Zeus à humanidade em resposta à astúcia de Prometeu, que furtou o fogo e o ofereceu aos homens. Do mesmo modo, na tradição ocidental judaica e cristã, Deus imputou sentença semelhante a Adão e a Eva, por terem dado ouvidos à astuta serpente, além de expulsá-los do paraíso, conforme disse o padre naquela manhã: “Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado.

Entre um hino e outro, escutei um senhor do meu lado resmungar que o “trabalho dignifica o homem”.  É verdade, ele tinha razão. E é bom destacar que o trabalho foi e é considerado como salvação das criaturas. Em um determinado momento da história, o trabalho deixou de ser um meio de punição para se tornar um fator de elevação espiritual, de conquista da graça divina. Tal transformação ocorreu após a reforma protestante, ideologia que justificou a ascensão da classe burguesa. O cristianismo reformado trouxe o culto ao trabalho e sua relevância para a ascese espiritual do homem. Vale lembrar que esse foi o tema do multirrecomendado estudo de Max Weber, “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”.

O fato é que parece que um ser supremo e coercitivo, um espírito absoluto e/ou transcendente, sempre tem os seus caprichos. E um deles é prescrever o trabalho aos homens mortais e submissos, tanto como castigo quanto como graça. E esse ser todo-poderoso jurisdiciona as relações de trabalho, fazendo a mediação entre o trabalhador e a glória ou a danação, dando a “cada um segundo as suas obras”.

A astúcia e a desmesura

A missa prosseguia. O pecado original surgiu no fluxo de ideias do clérigo. Pensei: em verdade, a humanidade foi condenada (ao trabalho) por causa da sua astúcia. A deusa grega Métis representava a astúcia. Simbolicamente, Zeus, antes de destronar o seu pai Cronos, engoliu a deusa Métis. Como já mencionado, Prometeu, cheio de astúcia (diferente do seu irmão Epimeteu, nada astuto), revelou o fogo à humanidade. A serpente, no paraíso, denotava também a diabólica astúcia. Aliás, foi essa serpente que fomentou a descoberta do fruto proibido da árvore do bem e do mal por Adão e Eva, para muitos, uma desobediência, o pecado original.

Ouvindo, agora, referências apocalípticas do padre, o velho Hesíodo novamente sobressai nas minhas reflexões desconexas: o mito das cinco raças. Segundo Hesíodo,

“(…)a raça agora é (…) a de ferro. (…)

Zeus destruirá também essa raça de humanos de fala articulada”

Ou seja, a raça de ferro, essa da humanidade atual, também será superada, metaforicamente, como foram as outras quatro (a de ouro, a de prata, a de bronze e a dos heróis). E a hybris (desmedida, desmesura, excesso) dos heróis gregos será retomada com o elemento central da desconstrução da raça de ferro:

“graça alguma haverá a quem jura bem, nem ao justo

nem ao bom; honrar-se-á muito mais ao malfeitor e ao homem desmedido.”

A despeito do malfeitor e dos corruptos, o homem desmedido herdará a hybris da raça anterior, a raça dos heróis. Talvez esteja nesse tema a chave para a compreensão do übermensch (super-homem, sobre-humano) de Frederic Nietzsche. Como disse Almachio Diniz (do Cadernos Nietzsche), “a forma do sobre-humano virá da destruição do mundo moral de hoje”.

A par do protagonismo dos heróis gregos, como Aquiles, Hércules e Ulisses, por exemplo, bem como daqueles homens que o padre falava na missa, como Moisés, Davi e Elias, os trabalhadores, coletivamente, têm que assumir as rédeas da sua história e romper com o status quo. Buscar a desconstrução do que está posto é um contraponto propositivo ao establishment.

É imperioso dizer que a quintessência do avanço econômico e do desenvolvimento social mundial é o trabalho, é o trabalhador. E o trabalhador deve lançar mão da astúcia e da desmedida para subverter a ordem econômica e social. Aliás, isso já ocorreu inúmeras vezes ao longo da história. Só para citar alguns exemplos, antigos e atuais:

– 1º de maio de 1886: data da primeira manifestação de 500 mil trabalhadores nas ruas de Chicago e de uma greve geral em todos os Estados Unidos. Três anos depois, em 1891, o Congresso Operário Internacional convocou, na França, uma manifestação anual, em homenagem às lutas sindicais de Chicago;

– No dia 23 de abril de 1919, o Senado francês ratificou as 8 horas de trabalho e proclamou o dia 1º de maio como feriado, e uns anos depois a Rússia fez o mesmo;

– Estudantes secundaristas de São Paulo, do Rio de Janeiro, em 2015 e 2016 e, do Chile, em 2012, ocupam escolas para exigir direitos e melhorias do serviço de educação;

– Trabalhadores e estudantes franceses fizeram greve geral contra o retorno de uma pauta liberal retrógrada, em 2016;

– Estudantes secundaristas de São Paulo ocupam a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp).

Nesse momento, percebi que a missa estava nos instantes finais. E, infelizmente, eu estava arrebatado pelos eventos recentes da política brasileira. Dito de outro modo, os trabalhadores do Brasil devem assumir a astúcia e a desmesura heroicas para reverter a possível imposição de um novo código de Hamurabi castrador, o “Ponte para o Futuro”, de Michel Temer e seus asseclas. O povo produtivo desse país deve posicionar-se, efetivamente, para além dos sofás e dos televisores, sobre o golpe que está em curso. O mercado quer condenar a população a mais uma agenda liberalizante, com os velhos ditames da cadavérica dama-de-ferro Thatcher. No ensejo, vejam aqui alguns motivos para que os trabalhadores lutem contra esse golpe.

Ademais, nessa perspectiva, têm surgido algumas pautas nas discussões dos movimentos sociais e nas redes virtuais, indicando ações como, por exemplo, grandes paralizações, greve geral e ocupações por todo o país, inclusive em Brasília. O povo trabalhador não deve abrir mão da democracia. Como bem disse Fernando Haddad, no ato de Anhangabaú, “a direita comete sempre um erro: subestimar a luta do povo trabalhador”.

Por fim e ao cabo daquela liturgia católica, o padre fez uma exortação muito interessante. Disse que o povo de Deus deveria fugir da escravidão do Egito e, logo em seguida, com a resistência renovada todos os dias, deveria prosseguir na superação do árido deserto, até lograr a terra prometida.

Sei não! Fiquei me perguntando se aquele padre não era progressista como o Papa Francisco.

Redação

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