Obras de Florestan Fernandes começam a ser reeditadas

Por Roberto C. G. Castro

Arte: Moisés Dorado

No Jornal da USP

Com o lançamento, no dia 15 passado, de A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica, as obras do sociólogo e professor da USP Florestan Fernandes começaram a ser reeditadas no Brasil pelas Editoras Contracorrente e Kotter, que criaram a Coleção Florestan Fernandes. Ainda sem data prevista de lançamento, os próximos títulos da coleção serão A Integração do Negro na Sociedade de Classes A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá. A reedição das obras do sociólogo é coordenada pelo professor Bernardo Ricupero, do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

“A coleção coloca Florestan de volta ao debate sobre os problemas do Brasil”, afirma Ricupero, destacando a atualidade do pensamento do sociólogo, que ao longo da vida se dedicou a escrever sobre a situação de vítimas da exclusão social, como negros, migrantes e pobres – os “debaixo” da sociedade, como dizia. “São temas muito atuais e Florestan tem muito a dizer a respeito.”

Segundo Ricupero, a Coleção Florestan Fernandes deverá ter pelo menos dois volumes lançados por semestre. Além do texto original de Florestan, os livros trarão sempre um prefácio escrito por pesquisadores mais jovens e um posfácio, constituído de uma entrevista com um pesquisador mais experiente. “A ideia é mesclar o trabalho de pesquisadores mais novos e mais velhos para ampliar a visão sobre Florestan”, acrescenta o professor, que foi convidado a ser o coordenador da coleção pelo filho do sociólogo, o jornalista Florestan Fernandes Júnior.

No volume de lançamento da coleção, o prefácio é assinado por dois professores do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), André Botelho e Antonio Brasil Jr. No posfácio, o livro traz uma entrevista inédita com o professor Gabriel Cohn, do Departamento de Sociologia da FFLCH, feita em março deste ano por Bernardo Ricupero e pelo pós-doutorando em Ciência Política da FFLCH Leonardo Belinelli.

“Autocracia burguesa”

Publicado pela primeira vez em 1975 pela Editora Jorge Zahar e agora na sexta edição, A Revolução Burguesa no Brasil representa uma “encruzilhada” na carreira de Florestan, na opinião do professor Bernardo Ricupero. Ao mesmo tempo em que resulta de pesquisas realizadas pelo sociólogo até então, a obra se abre para o que ele vai realizar nos anos seguintes, como um “publicista revolucionário”, considera o professor. “O livro é também uma resposta intelectual ao golpe de 1964 e, como Florestan mesmo diz, só pôde ter sido escrito por ele ser o sociólogo que era.”

Para a diretora da FFLCH, professora Maria Arminda do Nascimento Arruda – que nos anos 2000 foi responsável pela reedição de obras de Florestan pela Editora Globo -, A Revolução Burguesa no Brasil é um livro “notável”, que explica a forma de desenvolvimento da sociedade brasileira e a origem de problemas enfrentados pelo País atualmente. “É um livro que tem ‘revolução’ no título, mas trata de uma revolução que não aconteceu”, diz Maria Arminda. “O que houve foi um processo de modernização burguesa com muitas particularidades, o que resultou numa modernização conservadora e excludente. Ou seja, é uma obra de um grande intelectual que elaborou uma visão crítica sobre a modernização do Brasil.”

Maria Arminda chama a atenção para um conceito que Florestan concebe em A Revolução Burguesa no Brasil – a ideia de “autocracia burguesa”. Segundo ela, esse conceito diz respeito a uma relação privatista com o poder, independente do regime. “É quando o poder é apropriado por alguns”, diz a professora, que destaca a atualidade dessa concepção de Florestan. “Nós estamos vivendo isso hoje no Brasil. Chegamos ao limite de famílias se apoderarem do poder.”

Autocracia burguesa” é um dos temas analisados pelo professor Gabriel Cohn na entrevista publicada como posfácio do primeiro volume da Coleção Florestan Fernandes. Segundo ele, em A Revolução Burguesa no Brasil, Florestan está a todo momento apontando para a dificuldade da constituição de uma classe, destacando que a burguesia não se formou integralmente – ou, na linguagem do sociólogo, nunca chegou a “saturar” seu papel histórico. “Florestan demonstra que aquela classe que deveria ascender cortando os laços com as classes anteriores, na realidade simplesmente criou novos elos, menos subalternos, porém de manutenção de uma estrutura que, supostamente, deveria ser superada”, afirma Cohn. “É que todo esse processo histórico que conduziu a uma burguesia que chega a um ponto em que revela não ser transformadora surge de uma classe que não consegue se constituir plenamente, até porque é incapaz de formular um projeto claro.”

Para Cohn, havia no Brasil amplo espaço para a burguesia transformar as bases da sociedade, mas ela não teve “apetite” para ocupá-lo. “A burguesia brasileira sempre tendeu a agir, pontualmente, para atender aos seus interesses imediatos, o que talvez responda em parte à questão da inapetência de classe”, diz o professor. “Havia, sim, margem de movimento para a burguesia local, e ela, dentro dos seus limites, tinha espaço para atuar, mas usou-o muito pouco. Ela concentrou sua atuação na busca de resultados ‘satisfatórios’ e não ‘ótimos’.”

Formando uma espécie de “burguesia oportunista” – que busca simplesmente garantir a sua parte -, a classe se dedica então a um exercício autocrático do poder. “O exercício autocrático do poder tende a ganhar autonomia em relação à classe e, dadas certas circunstâncias (em geral devidas a rupturas no interior da classe), ela caminha no rumo da institucionalização na forma da ditadura”, continua o professor na entrevista. “O problema, no entanto, é que não se constrói uma sociedade de modo autocrático. Ninguém consegue, não há nenhum caso. Você pode sufocar uma sociedade de modo autocrático, mas a sua construção tem que passar por outras formas de organização, outros mecanismos. A questão que ocupava Florestan no tocante ao que seria a revolução burguesa era a de como foi possível criar uma estrutura de poder incapaz de pensar o País, de formular um projeto.”

A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica, de Florestan Fernandes, Coleção Florestan Fernandes, volume 1, Editora Contracorrente e Kotter Editorial, 536 páginas, R$ 70,20.

Colaborou Maria Laura López

O texto acima faz parte da série de reportagens Florestan 100 Anos, produzida pelo Jornal da USP em comemoração ao centenário de nascimento do sociólogo e professor da USP Florestan Fernandes (1920-1995), a ser completado nesta quarta-feira, dia 22.

***

Universidade Federal de São Carlos guarda o acervo do sociólogo

Por Claudia Costa

Ao longo de sua vida, o sociólogo Florestan Fernandes reuniu uma coleção com cerca de 12 mil livros, que ele mantinha em um apartamento em São Paulo, reservado para essa finalidade. Hoje esse acervo se encontra na Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Entre os destaques da coleção está um exemplar de O Capital, de Karl Marx, com anotações de Florestan, e um fichamento de 277 páginas feito pelo sociólogo sobre essa obra. Há livros sobre antropologia e sociologia nas Américas, índios, negros e imigrantes, volumes sobre personalidades como Che Guevara e Fidel Castro e obras sobre filosofia, economia e psicologia, entre vários outros temas.

“As negociações para a vinda do acervo para São Carlos começaram quando foi inaugurado o Teatro Florestan Fernandes da Ufscar, em 1996, um ano depois da morte do sociólogo”, revela a responsável pela coleção, bibliotecária Claudia de Moraes Barros de Oliveira. “A família de Florestan esteve presente na solenidade e, naquele momento, a universidade já demonstrou interesse em cuidar do material.” Um dos compromissos assumidos pela Ufscar com a família foi manter o acervo exatamente como o sociólogo o deixou, até nas mesmas estantes e prateleiras.

Naquele mesmo ano, a família Fernandes doou para a biblioteca da Ufscar o arquivo pessoal de Florestan. Ele contém fichas manuscritas, cadernos e cadernetas de pesquisa, trabalhos de alunos, fotografias, recortes de jornais com entrevistas concedidas e artigos publicados, panfletos de campanha política e correspondências trocadas com correligionários, amigos e pesquisadores do Brasil e do exterior. “Tem cartas que Fernando Henrique Cardoso enviou para Florestan, um cartão postal presenteado a Florestan por Lula com a arte de Henfil, cartões postais assinados por Anita Leocádia Prestes e fotografias do início do Partido dos Trabalhadores”, comenta Claudia.

Telegrama do presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Lula, ao sociólogo Florestan Fernandes 

Cartão postal com arte de Henfil enviado por Lula a Florestan Fernandes 

Além dos livros e documentos, a biblioteca da Ufscar recebeu ainda 133 objetos pessoais de Florestan, que agora compõem o Fundo Florestan Fernandes (FFF) da Ufscar. Entre esses objetos, Claudia destaca a beca utilizada por Florestan Fernandes quando ele recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, em Portugal, em 1990, a máquina datilográfica do sociólogo, seus óculos, placas de homenagem e um retrato de Florestan pintado pelo artista Bernardino de Souza Pereira. “A maior parte desses objetos, cerca de 80 peças, fica exposta no que nós convencionamos chamar de Museu Florestan Fernandes, embora não se trate oficialmente de um museu”, explica Claudia.

Em 2009, o Fundo Florestan Fernandes da Ufscar foi reconhecido pela Unesco – órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) para a educação e a cultura – como Patrimônio da Memória do Mundo. “A Unesco identifica o arquivo como um dos conjuntos documentais de maior relevância para a humanidade”, orgulha-se Claudia.

Redação

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