Os autoritarismos micropolíticos de cada dia, por Eliseu Raphael Venturi

Ana Gabriela Sales
Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.
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Peter Paul Rubens. Caça ao leão (detalhe). 1621[i]

Os autoritarismos micropolíticos de cada dia

por Eliseu Raphael Venturi

“Sic transit gloria mundi”

Como lanternas que sobem aos céus em uma festa cultural, elevam-se as notícias – não notícias jornalísticas, mas “informações de que se toma conhecimento” – dos autoritarismos micropolíticos de cada dia. Como gotas de chuva densas, daquelas de verão, rápidas, que explodem ao tocar o solo, caem decisões e decisões micropolíticas autoritárias e arbitrárias, voluntaristas e superficiais.

Cravados com profundas fundações nas mentalidades, tais poderes autoritários da micropolítica engendram subjetividades muito peculiares, com os rostos mais gentis que se possa imaginar. Estes autoritarismos marcam a trama das relações sociais a um ponto tal que o agente moral, diante deles, precisa realizar escolhas de filiação ou de desfiliação, submetendo-se à brutalidade da perseguição e da interdição perpétua acaso não se conecte ao sutil sistema que se estabelece sobre o arvoramento burocrático, tal como teias de aranha que se sobrepõem em árvores.

Acaso se seja um estrangeiro nos círculos de formação desta cultura, isto é, se seja alguém que tenta ingressar, para o exercício de um direito, nos espaços dominados por estas subjetividades forjadas ao ferro quente do autoritarismo micropolítico – e salvo se tenha um salvo-conduto de algum contato considerado valioso – o estrangeiro será peremptoriamente excluído ou, acaso adentre, será ingresso em razão de um número de quota perversa, porque certos processos de seleção possuem as quotas nefandas que não são quotas de políticas de discriminação positiva, mas são quotas muito limitadas de efetivo cumprimento das regras seletivas (gerais, abstratas, impessoais, morais, técnicas, públicas, transparentes).

Sim, eventualmente, por sorte, ou seja, por alguma margem que escape ao universo dos grandes acordos daqueles que tenham poderes consideráveis de decisão, alguns sujeitos ingressarão segundo alguma consideração de mérito, ou alguma consideração envolvida efetivamente nas regras do jogo.

Os autoritarismos micropolíticos costumam se localizar nos espaços que se habitua chamar de “feudos”: altamente hierarquizados, altamente vigilantes, com senhores e vassalos – muitos vassalos ambiciosos, diga-se de passagem. Jura-se fé, fidelidade, torna-se dependente, um bom vassalo se cria desde o ovo, o resto é jogo e consequência, proteção e ataque aos que não cederam a devida porção de alma, trabalho e demais atividades estranhas às finalidades institucionais. Byung-Chul Han estava, então, certo, ao identificar que autoexploração se confunde com autorrealização e esta com autodestruição e falta de autenticidade.

O autoritarismo micropolítico depende de uma boa rede feudal para afirmar seus microssistemas de regras cambiantes e questionáveis, ao sabor dos humores, dos afetos e dos interesses das alianças espúrias que acendem e apagam como as lanternas que sobem aos céus e depois caem ou se apagam rapidamente. Estamos, então, no reino da distopia jurídica, do capricho, das violências, do despotismo, do desvio de finalidade, do abuso de autoridade, dos favoritismos. Déspotas e tiranos bonachões.

Dos maiores problemas é que a força que estes indivíduos exercem é a transmutação de uma força conferida por um sistema democrático. O que lhes confere a força é o cargo, não a virtude ou a habilidade técnica ou moral. Assim, assistiremos decisores medíocres e veremos procedimentos hermenêuticos repletos de estultices, mas legitimados por uma estrutura então tornada pervertida, degenerada, desvirtuada em sua missão e finalidade institucionais.

No mais, decisões tomadas com base no pessoalismo, no personalismo, no personalíssimo, nas relações de amizade, nas indicações pessoais e demais mecanismos subjetivos que funcionam de um modo paraprocessual. Processos não são entidades supra-humanas.

Um processo nunca é uma avenida aberta e clara, mas antes, no mundo das micropolíticas autoritárias, uma ruela com várias ramificações desconhecidas, ou um processo perpassado por várias maleabilidades, elasticidades e ductibilidades morais. Uma festa na sexta à noite, uma banca de julgamento na segunda de manhã. Uma simpatia e tudo pode ser diferente. Não há coordenada política que escape às micropolíticas autoritárias.

As decisões das micropolíticas autoritárias não se assentam em procedimentos argumentativos de justificação moral. Elas são incapazes de sobreviver a este crivo, a despeito das qualidades retóricas dos senhores feudais. Se no fundo “é assim porque queremos, é assim porque preferimos”, talvez não se considere haver sequer um ônus de resposta e, quem dirá, um direito de recurso.

As decisões não são nem questionadas formalmente, nem tampouco judicializadas; isto quando a fonte delas mesmo não é por dentro do Poder Judiciário. O máximo que se pode fazer é bradar sua injustiça no âmbito da privacidade – pois no âmbito da esfera pública se explicitam a falta de solidariedade dos pares e a rede de vassalagem defenderá o reino da micropolítica autoritária. No mundo das micropolíticas autoritárias não existe amizade, muito menos solidariedade ou fraternidade. O que há é cálculo, aliança, uso e descarte. As ameaças disciplinares vêm de todos os lados e como comissões são formadas por pessoas, o mau relacionamento político é a pior política, é o mau direito, é a ausência do direito levado à prática.

As decisões, ainda, não são decisões insatisfatórias diante de uma “justiça ideal”, ou de um cenário analítico complexo em que se abram redes de causalidade, redes de condicionalidade, redes de singularidade. Não há essa sofisticação, não há sequer o sentido do interesse violado a despeito do direito preservado; o que há é a crueza da violência institucional. São arbitrariedades grotescas e cotidianas, no plano da literalidade dos dispositivos, no plano das interpretações simples, no plano daquilo que se chamam “casos fáceis”, da subsunção, são talhos conceituais intensos e desconsiderações frontais da linguagem mais evidenciada em sua semântica mais imediata.

Estas decisões fáceis, rasas, pouco desenvolvidas, pouco escritas, extensivamente e exaustivamente repetidas, elas são os componentes elementares das micropolíticas autoritárias cotidianas: se a anáfora é proposital, os efeitos são profundos, persistentes e estruturantes de novas relações, e essa estruturação enfraquece a maleabilidade do jogo em nome da cristalização das regras veladas e sua repetição habitual.

Existe, sobrevive e se emula, assim, um corpo monstruoso de decisões antijurídicas eficazes, eis que são seguradas não por políticas democráticas, valores ou conteúdos democráticos: são força bruta, institucionalizada, sustentada e alimentada por uma rede de agentes sociais comprometida com uma cultura das micropolíticas autoritárias de cada dia.

Valer-se-ão inclusive da crítica à democracia liberal (aliás, não seria esta forma o nascedouro mesmo destas micropolíticas?), serão da esquerda, do centro, da direita, dos direitos humanos até mesmo; será uma ironia sem fim, um jogo inútil de rotulações e pretensas identidades. Enredar-se-ão em multiespécies de ramificações de democracias; falarão de ontologias do cotidiano ou das tipologias da democracia, criticarão céus e mares, deterão as metodologias verdadeiras, corretas, adequadas, e, ao final, como subproduto biliar, oferecerão mais do mesmo autoritarismo micropolítico cotidiano.

A macropolítica se torna o objeto do alívio pulsional daquilo que se expande nas micropolíticas. Criticam-se as grandes decisões da política, as grandes jogadas do mercado, mas nos microuniversos seguem-se as mesmas lógicas. O horror moral da corrupção tem um “locus” e um rosto definido, e o subterfúgio das microcorrupções cotidianas é como que expurgado nos altares de sacrifício da esfera pública. As coisas vão mal por cima e por fora, mas por dentro estão mais corroídas e apodrecidas do que nunca, e o “odor mortis”, quanto mais de perto, mais ofensivo ao olfato.

Uma educação política está cada dia mais distante. O ensino do discernimento e da oposição ao arbítrio do poder é substituída mais e mais pela docilidade, por um lado, e pelo corporativismo, por outro, como duas grandes amarras do nó micropolítico autoritário. As redes pessoais e individuais são mais importantes do que qualquer conhecimento, do que qualquer direito abstrato, do que qualquer princípio moral. A “corrosão do caráter” assume uma amplificação que abarca inclusive os setores da crítica do poder que, conhecedores das regras e das análises, valem-se deste conhecimento para produzir mais dos mesmos efeitos aos quais deveriam se opor– ou seja, emulações das mesmas subjetividades dominantes.

Se a totalidade da obra é grandiosa e majestosa, seus detalhes são ainda mais instigantes, mais reveladores das pequenas estruturas que dão forma ao todo. Não à toa, a grande lição hermenêutica do círculo hermenêutico recomenda que não se prenda nem no micro nem no macro, nem no holismo nem no detalhismo, nem no esboço geral e nem no preciosismo detalhista. Interpretação e compreensão são sempre trânsitos, idas e vindas, focos, desfocos e refoques.

Talvez um dia, assim, desçamos da grande política e olhemos o nosso feudo sagrado da micropolítica autoritária cotidiana, do corredor e do escaninho, decidindo nossas vidas a todo instante.

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Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.


[i] Disponível em: <http://www.peterpaulrubens.net/lion-hunt.jsp>. Acesso em: 02 fev. 2019.

 

Ana Gabriela Sales

Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.

2 Comentários

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  1. A pertinência do tema se dá porque é o que vemos no dia a dia: na igreja, no clube e na universidade. Os pequenos desvios morais cotidianos: a estrutura perfeita para os grandes desvios…

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