Os dez dias que abalaram o mundo, cem anos depois, por Luís Carlos Valois

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Diário da Causa Operária

Os dez dias que abalaram o mundo, cem anos depois

por Luís Carlos Valois

De repente, lá estava eu, em São Petersburgo, andando da Fortaleza Pedro e Paulo até o Palácio de Inverno, passando pela ponte Trotsky, no dia 7 de novembro de 1917, cem anos depois de John Reed, autor do célebre 10 Dias que Abalaram o Mundo, ter caminhado pelas mesmas ruas e narrado um período crucial da Revolução Russa.

Era uma promessa que tinha feito para mim mesmo, passar a semana dos cem anos da Revolução, com meus pais, no local onde tudo ocorreu. Quando nasci, em 1967, portanto, quando a Revolução fazia 50 anos, em plena ditadura militar no Brasil, meus pais, comunistas, ainda tiveram a petulância de me dar o nome de Luís Carlos, em homenagem ao Velho.

Cresci, decorei o nome dos generais ministros para passar de ano no colégio, soube que havia livros proibidos e que era perigoso falar e fazer muitas coisas, mas era criança. Ganhei um exemplar de O Capital e do Manifesto em quadrinhos, participei de movimentos estudantis, dentro das limitações da época, logicamente, mas depois, formado, ingressei na magistratura e me distanciei da política efetiva, a política de rua, de militância, mas a promessa não esqueci.

Exatamente no dia em que a revolução fazia cem anos, estive, com meus pais, visitando a Fortaleza de Pedro e Paulo, onde funcionava a prisão czarista e onde foram presos Maxim Gorky, Trotsky, Kropotkin, Maria Vetrova, entre muitos revolucionários, bolcheviques ou não, inclusive Alexandre Ulyanov, irmão de Lenin, antes de ter sua pena de morte executada.

Parte da Fortaleza é um museu da prisão czarista, com suas celas e informações sobre as pessoas presas. Meu pai me falava de cada fato da revolução, que ele lembrava quando lia as informações contidas nas placas. Mas minha mãe só andava pelos corredores, dificilmente entrava em uma cela.

Com o tempo, percebendo o comportamento de minha mãe, perguntei por que ela não entrava nas celas. Ela disse que tinha uma sensação ruim: – Quando eu entro, parece que vão fechar as portas atrás de mim! Eu indaguei a razão, alguma espécie de claustrofobia? Ela respondeu: – Não meu filho, é porque já fizeram isso comigo, a polícia já fechou a porta atrás de mim. Na visita, na viagem, passeando, eu tinha esquecido que ela já tinha sido presa, e por mais tempo que meu pai.

A prisão é igual em todos os regimes e sistema políticos, um local de abandono. A de Pedro e Paulo era conhecida como túmulo da liberdade, mas todas as prisões são túmulos da liberdade. A prisão sequer deveria existir em qualquer sistema que se apresente como sistema de uma sociedade humana. Um regime político almejando ser mais justo e solidário, herdando a prisão como instrumento, fatalmente fracassará.

Terminada a visita ao museu prisão, cansados pela idade e porque qualquer visita a um lugar que é ou já foi um local de privação de liberdade verdadeiramente cansa, desgasta, é triste, possui uma energia ruim, meus pais voltaram para o hotel.

Foi aí que iniciei minha caminhada da Fortaleza ao Palácio de Inverno. Nesse dia, nesse mesmo local, há cem anos, John REED disse que “fazia um frio úmido e irritante” (2017, p. 113). Pois o mesmo frio estava fazendo, com ventos fortes, intercalados, mas, para quem é de Manaus, como eu, nenhum frio é irritante.

Atravessando a ponte Trotsky, fui pela encosta do Rio Neva, imaginando as barricadas dos soldados operários, aqueles palácios suntuosos todos tomados por trabalhadores em reuniões, em assembléias, em debates sobre a futura Rússia, as fogueiras nas ruas sem iluminação, alguns tiros ao longe, a angústia e a incerteza da época.

Naquele dia, naquelas mesmas ruas, John Reed encontrou um manifesto. Eu o podia ler, jogado, molhado, próximo ao belo calçadão que margeia o rio: “… O povo pegou em armas para lutar pela proposta imediata de uma paz democrática, pela abolição da grande propriedade agrária, pelo controle da produção pelos trabalhadores, pela criação de um Governo Soviético. A causa do povo, encarnada nesses princípios, triunfou definitivamente” (REED, 2017, p. 137).

No Museu Hermitage, acontecia uma exposição sobre a revolução. Uma das notas informativas dizia terem os funcionários do museu se recusado a trabalhar logo após a tomada do poder pelos bolcheviques. A irritação era maior inclusive contra Stálin, que teria mandado devolver algumas peças ao povo ucraniano, pilhadas no período czarista.

Passando o museu e o Palácio de Inverno, onde eu ia pegar um taxi, resolvi subir a Avenida Nevski a pé, na verdade, fazendo o caminho oposto de John Reed naquele dia, há cem anos. Na cidade, tirando a exposição do Hermitage, além de outra que começaria no fim da tarde na Fortaleza de Pedro e Paulo, e as flores na estátua de Lenin, nenhum sinal de que a revolução estava fazendo cem anos.

Os movimentos políticos, passeatas dos partidos de esquerda, parece, ocorreram em Moscou, mas eu queria estar ali, no local onde tudo aconteceu. Mesmo no dia da revolução, após a barricada que havia justamente na Avenida Nevski, “os armazéns e os restaurantes continuavam abertos. Os teatros, bastante concorridos. Anunciava-se até uma exposição de pintura…” (REED, 2017, p. 153). A classe média ia e vinha como se nada estivesse acontecendo. A revolução foi do trabalhador, do soldado operário e do camponês.

A Avenida Nevski continuava a mesma, então, com seus restaurantes e shoppings movimentados. Lojas de souvenires vendem bustos de todos, do período czarista até o revolucionário, do Czar à Putin, passando por Lenin, Stálin e Trotsky. O culto à personalidade atravessa gerações, é cultural ou mercadoria turística, não tive tempo de investigar.

Aliás, pouco posso falar também da revolução, das suas perspectivas, consequências e história. Há muitos especialistas, há muitos especialistas em quase tudo hoje em dia, especialistas que mais matam o debate, a crítica, do que estimulam, loucos para encontrar um erro ou um equívoco técnico em alguma afirmação.

Como a prisão, herdada do período czarista, monumento do sistema capitalista, que continuou na experiência socialista soviética, como uma nódoa, os especialistas, a maior parte deles, permaneceram igualmente anexados ao poder, ditando regras, diminuindo a influência do próprio trabalhador, o verdadeiro sujeito, ator, autor da revolução.

Frase mais infeliz impossível, alguns desses intelectuais chegaram a classificar a si mesmos de “proletariado intelectual” (ALI, 2017, p. 62), para permanecer influenciando ou, em outras palavras, usufruindo do poder, mas, ao mesmo tempo, mantendo preconceitos incrustrados em seus dogmas e teorias.

Se tem algo que pode ter contribuído para atrapalhar aquele sonho de uma sociedade mais justa, solidária e humana, é o esquecimento da palavra de ordem, do sentido, da profundeza e da correção da palavra de ordem da época: Todo poder aos sovietes!

 

Referências:

ALI, Tariq. Los dilemas de Lenin. Madrid: Alianza Editorial, 2017.

REED, John. Os 10 dias que abalaram o mundo. Porto Alegre: L&PM, 2017.

Luís Carlos Valois é colunista do Diário Online Causa Operária e do Semanário Nacional Causa Operária. Juiz de direito, mestre e doutor em direito penal e criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, membro da Associação de Juízes para a Democracia – AJD e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. os….

    1964 não acaba nunca, para alguns.  E para alguns fanáticos, o Muro de Berlim ainda não caiu. De podre. (P.S. Que homenagem !!! Luis Carlos? Lacaio de Getúlio. Trocou a mulher, incinerada em Fornos Nazistas, por uma mamata num carguinho público de um Ditador. O Brasil é de muito facil explicação. 

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