Outubro de 1917: Arte e Revolução (I), por Walnice Nogueira Galvão

Outubro de 1917: Arte e Revolução (I)

por Walnice Nogueira Galvão

As relações entre arte e revolução concernem tanto à teoria quanto à prática. Intensamente discutidas quando da Revolução Russa de 1917, beneficiaram-se da ocorrência de um dos mais férteis períodos artísticos, literários e culturais que já se viram na História. Na Rússia, a renovação radical das artes visuais, da literatura, da música, do cinema, do teatro principalmente etc., antecede e se sucede ao ano de 1917. Até hoje o balanço dessa fase mostra um resultado espantoso.

Após a Revolução, a discussão centralizou-se nos destinatários das artes, ou seja, o povo. Aos poucos, prevaleceu a tendência que acreditava serem impopulares coisas como vanguardismo, abstracionismo, formalismo etc., e concluiu-se que o povo apreciava mesmo era o realismo. E foi decretado  o “Realismo Socialista”. Essa conclusão autoritária podia ter consequências  desastrosas, mesmo a partir da maior boa-vontade.  Os estilos decorrentes seriam hegemônicos  por longo tempo e passariam por adaptações a outras circunstâncias sociopolíticas.

Foi o que ocorreu na Revolução Cultural de Mao Tsé-tung.  A expressão artística maior do país era e é a Ópera de Pequim, uma combinação imemorial de teatro, música, canto, dança, mímica, artes marciais, malabarismo, acrobacia. Com rígidos protocolos e entrechos convencionais, fala de épocas lendárias, com reis, rainhas, intrigas palacianas, animais antropomórficos, feiticeiros.

Por focalizar um regime ultrapassado e mais do que iníquo, a Revolução Cultural decidiu que a Ópera devia passar a representar o povo, com personagens em que o povo se reconhecesse e com estórias semelhantes às suas. Há registro de que oito espetáculos inéditos foram encenados e depois transformados em filmes nesta nova linha. Enquanto isso, as montagens preexistentes, proibidas, corriam o risco de desaparecer, com perda de um patrimônio da humanidade de valor incalculável.

Tive oportunidade de assistir um desses oito filmes, contrabandeado pelo cineclube de uma universidade norte-americana. O filme tinha o título de O Oriente é Vermelho. Aspiração e plataforma, slogan do regime, trazia o mesmo título da canção que o primeiro satélite espacial chinês emitia sem cessar, para irritação dos adversários. No melhor estilo da Ópera de Pequim, o filme contava a história da Revolução Chinesa sintetizada em meia dúzia de quadros fortemente simbólicos e alegóricos. Era de uma beleza plástica incomparável, apesar de sua modernidade.

Nada mais transpirou a respeito do conjunto de oito filmes na linha da modernização imposta pela Revolução Cultural e aplicada pela Viúva Chang, conforme contam suas biografias.  A grande notícia é que hoje O Oriente é vermelho  pode ser visto no YouTube. Mas é sempre a velha questão, colocada pelos russos soviéticos e objeto de infindáveis polêmicas, do “Realismo Socialista”.

Após o término da Revolução Cultural, a Ópera de Pequim voltou a apresentar exclusivamente os entrechos ancestrais, seja em São Paulo, em Paris ou em sua sede, conforme pude verificar. A modernidade e os problemas do povo ficaram de fora, o patrimônio da humanidade está preservado: pena que as duas vertentes não pudessem coexistir.

Anos depois pude  ver em Paris outro filme que tinha desaparecido em meio a controvérsias e acusações. Trata-se  do documentário de 6 horas de Michelangelo Antonioni, China  – ou melhor, três filmes de 2 horas cada, exibidos em sequência, em versão restaurada e remasterizada. Testemunho insubstituível sobre a China durante a Revolução Cultural,  foi renegado e atacado pelos chineses, descontentes com o resultado. Mas é um documento maravilhoso e único. Penetra nas fábricas, nas lavouras do campo, nos jardins de infância, nas escolas para adultos, nos lares. Assistimos a uma operação cesariana em que a parturiente é anestesiada apenas por acupuntura… E assim por diante.

Se tiverem oportunidade de ver, não percam. Afora isso, retrata a China antes do extraordinário desenvolvimento econômico e tecnológico das últimas décadas – portanto é um testemunho sobre uma China que não existe mais.

 
Walnice Nogueira Galvão

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