Para economizar em testes, Mandetta gastou muito mais em UTIs e vidas

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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"Infelizmente, parece que nosso governo não se dá conta de que só dá para sair dessa pandemia fazendo rastreamento de contatos", diz Ricardo Knudsen

Publicada originalmente em 3/7/2020. Atualizada em 6/7/2020

Jornal GGN – Ricardo Knudsen, autor de um artigo em preprint sobre a testagem em massa no contexto da pandemia de coronavírus, disse em entrevista à TV GGN, na tarde de sexta-feira (3), que o Brasil errou ao tomar a decisão política de não investir em testes para detectar os vetores da doença e controlar a transmissão ainda no começo da crise sanitária.

Essa decisão política foi tomada quando Luiz Henrique Mandetta era o ministro da Saúde e seguida por diversos governos estaduais, inclusive por São Paulo, com o médico David Uip, que assessora o governador João Doria, dizendo que era um desperdício testar a população massivamente.

Quatro meses depois, o Brasil tem mais de 1,5 milhão de infectados e passou das 60 mil mortes. São Paulo, um dos epicentros, tem mais de 300 mil casos confirmados e 15,3 mil óbitos. Diversos estados já afrouxam o isolamento e ainda não há estratégia de testagem em massa.

“Hoje o Brasil faz muito pouca testagem porque, conceitualmente, não houve decisão de fazer o rastreamento de contatos para isolar os infectados que não têm sintomas e que são os principais veículos da transmissão da doença”, disse Knudsen.

O EXEMPLO A SER SEGUIDO

Países como Coreia do Sul, Taiwan, Tailândia, Nova Zelândia, Austrália e até países pobres como Tunísia e África do Sul têm conseguido controlar a pandemia não só por distanciamento social, mas também por rastreamento de contatos.

“O que aconteceu no Brasil foi que a gente decidiu que não iria fazer isso porque, na época [começo da pandemia], o [então ministro da Saúde Luiz Henrique] Mandeta e o [David] Uip [coordenador do Comitê de Contingência do coronavírus em São Paulo] alegavam que se gastava muito dinheiro em teste. Porque, naturalmente, quando você tem um positivo, você tem que testar aquele positivo e um monte de pessoas que tiveram contato com ele. Testar e isolar todos os contaminados. No Brasil, a gente falou que era desperdício de dinheiro público fazer isso e decidiu que só ia testar quem está muito doente, quem que vai para o hospital. Não vamos testar quem tem sintomas fracos ou sem sintomas, alegando que era desperdício de dinheiro público“, comentou Knudsen.

“Acontece que, fazendo isso, você estanca a epidemia, você reduz o número de casos e impede que a epidemia aumente. A gente não fez isso, a epidemia cresceu exponencialmente e hoje a gente faz um número enorme de teste só para confirmar o diagnóstico de que ele [ paciente] está muito doente.”

“Infelizmente, parece que nosso governo não se dá conta de que só dá para sair dessa pandemia fazendo rastreamento de contatos. O isolamento você faz para reduzir o número de casos para, então, começar o rastreamento.”

A ESTRUTURA DO RASTREAMENTO

Segundo o pesquisador, o custo de referência para o teste de PCR, indicado pela OMS, sairia em torno de 30 a 50 dólares.

A estrutura de rastreamento requer uma equipe que monitore o infectado e as pessoas que estiveram em contato com ele, para que sejam testadas e colocadas em quarentena.

“A Grã Bretanha contratou 25 mil rastreadores e está treinando essas pessoas. No Brasil essa discussão aparentemente nem começou. O País continua fazendo uma média de 3 testes por cada caso positivo. Países como a Coreia hoje estão fazendo 60 testes por positivo. No pico da crise, faziam 40. Alemanha fazia de 15 a 20. A Itália começou fazendo 5, e hoje está fazendo 20 testes para cada caso que confirmam. A gente não está buscando ninguém.”

SEM DESCULPAS

Uma das desculpas do Ministério da Saúde para considerar o investimento em testagem em massa um desperdício de dinheiro é o tamanho continental do Brasil e sua população numerosa. Para Ricardo Knudsen, a questão poderia ter sido coordenada para ser executada de maneira regional, já que os estados têm autonomia para lidar com a crise da covid-19.

“Um estado como São Paulo não é diferente de países como Espanha. Tem dinheiro e autonomia para fazer lockdown, para fazer isolamento em todos os níveis. O que precisaria ser feito não foi feito no começo. Se tivéssemos seguido o caminho da Coreia, em três semanas a gente sairia da pandemia. Não fizemos, tivemos que seguir o caminho europeu, mais ou menos como na Itália ou Alemanha, depois da alta, abaixar os casos para fazer o rastreamento.”

Os países europeus que há meses foram epicentro da pandemia de coronavírus aumentaram consideravelmente a testagem antes de flexibilizar a quarentena. “Não tem rastreamento de contato [no Brasil]. As pessoas esperam aparecer alguma mágica” para acabar com a transmissão.

O QUE FAZER

Tem o que fazer, é fazer o que deveria ter feito no passado, porque não tem outra saída. É aumentar o isolamento e esperar os casos caírem. E aí fazer o rastreamento de contatos onde estiver abrindo. Onde está baixo [o número de casos], você deveria começar imediatamente a fazer o rastreamento de contatos. Porque o problema é esse, você tem por dia muitos casos, e se cada caso gerar 20 novas pesquisas de contaminação, você tem que fazer um número enorme de testes.”

PESQUISA

O trabalho de Knudsen, feito em parceria com pesquisadores de Taiwan e Harvard, mostra que ao duplicar o número de testes no contexto de rastreamento, o número de mortes por coronavírus cai consideravelmente.

“Taiwan fez 100 testes por caso [confirmado] no período que analisei, hoje está fazendo muito mais, o que significa que dividiram número de morte por 300. Se nós tivéssemos seguido isso, não teríamos hoje 60 mil mortes, teríamos 2 mil mortes.”

“Perdemos o barco e continuamos com o barco perdido, porque continuamos sem fazer testes”, disparou.

ERROS DO BRASIL

O erro no começo da pandemia foi em todo o Brasil. “O Mandetta foi o primeiro a desdenhar da OMS, porque a OMS já em março dizia que o caminho é esse, tem que testar muito, testar, testar, testar. O Mandetta achava bobo testar 100% da população. No longo prazo, isso significa menos testes.”

Mandetta chegou a dizer que não tinha insumos para fazer a testagem em massa. Mas “a Argentina testou 3 vezes mais que nós. A Tunísia, que um país muito pobre, seguiu a Coreia e fez mais de 40 testes por caso. E hoje eles têm menos mortes.”

TESTES PER CAPITA X TESTE POR CASO CONFIRMADO

Segundo Knudsen, o que conta na pandemia de coronavírus, ao contrário do que divulgam na imprensa, não é a testagem per capita ou por milhão de pessoas. É a quantidade de testes por caso.

Na prática, e no cenário ideal, para flexibilizar a quarentena, os países bem sucedidos testaram o suficiente para descobrir que tinham 5% de positivos entre testados. É o que a OMS recomenda. “Na minha linguagem, isso seria 20 testes por caso [confirmado]. Estamos fazendo 3 testes por caso. É porque realmente estão testando só os casos muito graves” no Brasil.

QUEM PRODUZ

No Brasil, a Fiocruz teria condições de fabricar os testes. Para o pesquisador, a fundação deveria ter sido acionada e o governo federal e os estados deveriam também ter comprado testes quando ficou sabendo dos primeiros casos, antes da demanda mundial explodir.

O CUSTO DOS TESTES X O CUSTO DA DOENÇA 

O pesquisador também avaliou que investir em testes em massa teria gerado um custo muito menor do que o gasto total empenhado na construção de hospitais de campanha e aquisição de insumos enfrentar a pandemia na ponta, olhando apenas os casos que chegam aos hospitais, deixando a transmissão comunitária correr solta já que a quarentena no Brasil não foi das mais rígidas.

Tomando como base o custo dos Estados Unidos, Knudsen lembrou que o custo de uma internação por coronavírus é de, em média, 4 mil dólares, enquanto o custo do teste para covid-19 é de até 50 dólares. Na prática, Mandetta “trocou testes de 50 dólares por internações.”

Foi um erro do ex-ministro que estava à frente da Saúde quando começou a pandemia ter tomado a decisão política de não investir em testes. Deveria ter ampliado a capacidade de produção no Brasil e comprado no mercado internacional. “Porque evidentemente se tivesse começado a comprar em fevereiro, antes de explodir a pandemia no mundo, você achava [o teste]. Se a Argentina conseguiu e a África do Sul conseguiu, porque o Brasil não conseguiria?”

Na conclusão de Knudsen, “o assunto é complexo e o governo está enganando a gente” ao dizer que está aumentando a testagem fora do contexto de rastreamento e em número insuficiente.

Nota da redação: Após a publicação deste artigo, o doutor Ricardo Knudsen enviou a seguinte mensagem ao GGN:

Bom tarde Nassif,

Mais uma vez agradeço pela conversa ontem.

Revendo o vídeo, notei que cometi pequenos erros ou imprecisões, nada que mude as conclusões principais. Mas se vc for escrever considerando o que declarei, seria melhor corrigir. Penso que foram dois problemas, como segue:

 1 – Eu informei corretamente que duplicando o número de testes divide-se por cerca de 3 vezes o número de mortes. Depois, ao exemplificar, eu me distraí e disse que se aumentarmos o número de testes em 10 vezes, o número de mortes seria dividido por 30. O correto seria manter a proporção anterior, ou seja, se multiplicarmos por 20 o número de testes, dividimos por 30 o número de mortes. Ou ainda, se multiplicarmos o número de testes por 10, dividimos por 15 o número de mortes. Ou seja, a proporção média é 2/3 = 1,5.

Note que, como a regressão linear pega uma média do efeito de testagem sobre as mortes, em uma data precisa, análises pontuais podem diferir bastante, como exemplifico a seguir.

Os gráficos abaixo mostram dados recentes de Testes/Caso e Mortes/Milhão de habitantes para alguns países que selecionei (dados do site Our World in Data). Para o Brasil, o site considera ridículos 1,1 Teste/Caso, não devem ter considerado a rede privada. Logo consideremos que façamos 3 Testes/Caso, e temos 285 Mortes/Milhão. Comparando-se com o Paraguai, que faz 32 testes por caso e tem 2,7 Mortes/Milhão, “conclui-se” que multiplicando-se por 10 a testagem/caso, divide-se por 100 o número de mortes! O melhor é discutir com a média, como na análise de regressão do artigo.

Curiosidade triste: Argentina e África do Sul não estão conseguindo manter o nível de testagem, já caíram a menos da metade do que faziam no início da pandemia. Isso provavelmente explica as mortes mais altas, mas que ainda estão entre 10% e 20% das mortes no Brasil.

 

Imagem incorporada

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2 – Outra coisa mal explicada, que parece errada, foi que, ao comentar os custos de testagem e hospitalizações, eu disse que a Coréia tinha 5 Casos/Milhão de habitantes, enquanto o Reino Unido teria cerca de 700 Casos/Milhão, portanto razão de 140 vezes. Esses, porém, são os dados para Mortes/Milhão, não de Casos/Milhão, que seria o mais correto. Mas a proporção entre Casos e a proporção entre Mortes não deveriam ser muito diferentes, embora pareça assim. Ocorre que há subestimação do número de casos em países que testam pouco, como o Reino Unido. Explico abaixo.

Os dados de casos para os dois países estão no gráfico ao fim da mensagem. Foram cerca de 4.600 Casos/Milhão em UK e 250 Casos/Milhão na Coréia, razão aparente de 18 vezes. Mas como a Coréia testa muito mais, estima-se que detectariam perto da totalidade dos casos. Já países como o Reino Unido só detectariam entre 10% e 20% dos casos. Isso fica claro nas letalidades aparentes (mortos/casos) dos dois países: 15% em UK, 2,4% na Coréia do Sul. Logo, para comparar, deveríamos multiplicar o número de casos em UK por 6,6 vezes (=15,5/2,4), assumindo que as letalidades reais devam ser quase iguais. Com isso, a razão de casos entre Coréia do Sul e UK chegaria a 120 vezes, praticamente igual à razão de mortes. Logo, as conclusões comparando custos seriam as mesmas, considerando-se número de casos reais ou mortes. Comparando-se razão de mortes, sempre estamos mais próximos da realidade, por isso eu me acostumei a usar a taxa de mortes, sempre que possível.

É só o que percebi, qquer dúvida estou à disposição.

Abraço,

Ricardo

 Imagem incorporada

 

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

2 Comentários

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  1. Mandetta também é um negacionista anticiência. Só brigou com Bolsonaro por discordância, correta, a respeito da importância do distanciamento espacial de pessoas. Mas Mandetta além do falado aqui, de ser desfavorável às testagens, foi politicamente contra o SUS, contra o +Médicos

  2. Se tiver como levantar a quantidade de internados em enfermarias, em UTIs com respiradores e UTIs com ventiladores dá para criar tabelas ou fazer projeções dos valores gastos com estas internações comparando com os custos de testagem. Acho que isto a mídia corporativa ainda não calculou. É a melhor forma de mostrar a falácia do “saúde X economia”. Com o atraso e prolongamento da situação crítica, muitos CNPJ e CPFs serão penalizados por esta irresponsável gestão. Creio que o declínio de Bolsonaro está mais ligado a este prolongamento da crise sanitária, afetando em mais mortes, sofrimentos e despesas financeiras.

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