Para entender a ameaça do governo contra restingas e manguezais

Ricardo Salles quer “passar a boiada” e permitir que ecossistemas de riquíssima biodiversidade sejam arrasados por empreendimentos imobiliários e cultivo de camarão

Por Maíra Mathias

Por Outras Palavras

PARECER E CANETA

Primeiro, o governo diminuiu a participação da sociedade civil no Conama, o Conselho Nacional do Meio Ambiente. O principal órgão consultivo da pasta comandada por Ricardo Salles tinha 96 conselheiros. Em maio do ano passado, esse número foi reduzido a 23 com a justificativa de que a mudança traria “melhor foco”. Hoje, poderemos ver um bom exemplo do que significa esse foco. Na pauta da reunião do Conama, está a revogação de uma norma que define as áreas de preservação permanente. Estão em jogo nascentes de água, veredas, morros, dunas e chapadas, mas segundo veículos da imprensa, principalmente restingas e manguezais.

“São áreas de preservação permanente nas proximidades do litoral brasileiro que despertam interesse do setor imobiliário e de carcinicultores, os produtores de camarão”, explica a reportagem do El País, que pediu à ONG Mapbiomas para calcular o tamanho do prejuízo. São nada menos do que 1,6 milhão de hectares de restingas e manguezais que, de uma hora para outra, poderão ser atropelados pela boiada de Salles.

A norma vigente é a resolução do Conama n. 303, aprovada em 2002. Ela estabelece diversos limites de proteção: 50 metros ao redor de nascentes, cem metros para encostas e topos de morros, 300 metros para restingas, manguezais, dunas e praias onde se reproduz a fauna silvestre… Em março deste ano, a consultoria jurídica do Ministério do Meio Ambiente defendeu a revogação integral do texto. Alega que as regras caducaram depois da aprovação do Código Florestal. Só que isso não é verdade, segundo Carlos Bocuhy, do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental: “Não há nenhuma outra norma brasileira que confirma proteção às restingas como essas resoluções do Conama, que continuam a definir limites até hoje”, disse ele ao Estadão. O Ministério Público Federal já se posicionou contra, mas embora tenha uma vaga no conselho, ela não garante o direito ao voto.

Mas, calma, porque tem mais. Na pauta da reunião de hoje, está a proposta de revogação da resolução n. 302, que protege as represas da ocupação irregular. E também, atendendo a pedido da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), o fim da resolução no 284, que trata dos critérios de licenciamento ambiental para empreendimentos de irrigação. O agronegócio, que consome hoje 72% da água do Brasil, também deve ser contemplado com a aprovação de uma resolução que libera a queima de agrotóxicos e outros resíduos tóxicos em fornos de cimento. Uma resolução do Conama de 1999 proíbe isso. “Altamente tóxicos, persistentes no ambiente e bioacumulativos (ou seja, não são eliminados pelo nosso organismo), eles estão ligados a disfunções hormonais, imunológicas, neurológicas e reprodutivas. Segundo a Organização Mundial da Saúde, sua queima não-controlada, sob temperatura inadequada ou com combustão incompleta pode gerar subprodutos ainda mais tóxicos”, destaca Ana Carolina Amaral no blog Ambiência.

Todas as resoluções são normas infralegais e se enquadram direitinho no universo do “parecer e caneta” defendido por Salles na inesquecível reunião do dia 22 de abril. “Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação”, instou ele na época.

FUSÃO

Segundo o Estadão, Ricardo Salles deu início à concretização de um sonho do governo: fundir Ibama e ICMBio. O Instituto Chico Mendes de Biodiversidade foi criado em 2007, durante a gestão de Marina Silva. A autarquia cuida de 334 unidades de conservação federal existentes no país, e encabeça discussões sobre liberação de cultivos transgênicos, por exemplo. Já o Ibama é responsável por um conjunto de coisas, desde autorização para importação de agrotóxicos a fiscalização ambiental. Um grupo formado por funcionários do Ministério do Meio Ambiente e dos órgãos na mira do ministro do Ibama terá 60 dias para elaborar uma análise da fusão. Mas a proposta precisará passar pelo Congresso.

MAIS MENTIRAS

A mesma Secretaria de Comunicação (Secom) que inventou o “placar da vida” para fazer marketing com os escandalosos números brasileiros nesta pandemia voltou suas baterias para o meio ambiente. No sábado, a Secom afirmou que “mesmo com os focos de incêndio que acometem o Pantanal e outros biomas brasileiros, a área queimada em todo o território nacional é a menor dos últimos 18 anos”. Em 2020, o estrago ambiental já é maior do que no mesmo período dos anos de 2008, 2009, 2011, 2013, 2014, 2015, 2017 e 2018, apurou a Folha com base nos dados do Inpe citados pelo governo para espalhar a fake news.

UM MILHÃO HOJE

O mundo deve chegar à marca de um milhão de mortes provocadas pelo novo coronavírus hoje. Nessa madrugada, a contagem da Universidade Johns Hopkins estava dando 997.737. Só que como observa uma reportagem da Economist, esse número impressionante é só a ponta do iceberg já que, como sabemos, há o problema da subnotificação. A revista reuniu dados de mortalidade por todas as causas dos países que registram essas informações com periodicidade semanal ou mensal. Estão nesse grupo alguns da América Latina – como o Brasil –, EUA, a maior parte dos países da Europa Ocidental, Rússia e África do Sul. Chegou à conclusão que entre março e agosto, esses países registraram 580 mil mortes por covid-19, mas 900 mil mortes em excesso. “A verdadeira taxa da pandemia parece ter sido 55% maior do que a oficial.”

140 MIL MORTES

Por aqui, chegamos na sexta-feira a 140 mil mortes. Ontem à noite, o número já era 141.741. Sete estados têm registrado uma aceleração na média móvel de óbitos: Amazonas, Amapá, Bahia, Minas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Roraima.

DIA D

Do mesmo jeito que há anos as autoridades de saúde planejam esforços concentrados para vacinação ou combate a vetores como o mosquito que transmite dengue, o Ministério da Saúde sob a batuta de Pazuello está organizando um Dia D. A diferença é que o general quer conscientizar a população sobre o “tratamento precoce” da covid-19, algo que simplesmente não existe.

O repórter Mateus Vargas, do Estadão, chegou a apurar que a cúpula da pasta planejava desovar o estoque de 1,75 milhão de unidades de hidroxicloroquina nas unidades básicas de saúde. O kit-covid, composto também por azitromicina e ivermectina, seria distribuído à população brasileira. Mas depois que o documento vazou, Pazuello reuniu toda a sua equipe na última sexta e adiou o evento, que aconteceria em 3 de outubro. Também passou a negar que distribuiria as drogas que não têm qualquer comprovação de eficácia no tratamento da covid-19 e, em alguns casos, podem provocar efeitos colaterais. Secretários estaduais e municipais de saúde esperam mais detalhes do evento para se posicionar. O Dia D será anunciado pelo presidente Jair Bolsonaro em uma transmissão ao vivo no Facebook.

DE CASO PENSADO

Na sexta-feira, foi lançado o livro escrito pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. “Um paciente chamado Brasil” é um relato sobre a resposta do governo federal na pandemia escrito por alguém que participou ativamente do início dela. Deve ser lido com um grão de sal – ainda mais porque o autor tem pretensões presidenciais –, mas parece trazer alguns bastidores factíveis.

Entrevistado pela Folha, ele repete algo que já tinha dito: Bolsonaro sabia das projeções sobre as mortes, que davam conta de 180 mil cadáveres. Mas preferiu dar ouvidos a Osmar Terra e entusiastas da cloroquina, como a médica Nise Yamagushi. “Ele fez uma decisão não irracional, pensada”, garante o ex-ministro.

“No que se refere à cloroquina, Mandetta é taxativo: Bolsonaro nunca se interessou pela sua capacidade de curar ninguém. Queria que, com a caixinha de cloroquina no bolso, os brasileiros voltassem a trabalhar, morresse quem morresse”, escreve Celso Rocha de Barros. Ele também chama atenção para uma avaliação do ex-ministro, que a essa altura do campeonato ainda acredita que Bolsonaro pode ser domado. “Já é outro animal”: é a frase que ficou famosa em um perfil de Paulo Guedes escrito pela jornalista Malu Gaspar ainda na campanha. Não é preciso nem lembrar quem está sendo dobrado nessa história… Mas o fato é que Mandetta lamenta o fato de o DEM não ter endossado Bolsonaro em 2018 por acreditar que o partido teria tido um efeito moderador. “(…)à luz do que Mandetta conta no livro, parece que o DEM teve razão em não bancar Bolsonaro em 2018: ele não parece aceitar moderação nenhuma. Permanece, entretanto, o fato de que nem a direita tradicional nem os militares nem Guedes nem Moro se mobilizaram com o ânimo necessário para forçar Bolsonaro a agir como um adulto responsável durante a maior crise sanitária do Brasil em cem anos, ou para puni-lo por não tê-lo feito”, analisa Barros.

ANTIABORTO E ANTIVACINA

O Movimento Legislação e Vida, composto por lideranças antiaborto, enviou uma carta a Eduardo Pazuello. Defende a alteração da lei que prevê a obrigatoriedade da vacinação no país. Na página do Facebook, o tal movimento tem menos de mil seguidores e divulga mentiras, como a de que o uso de máscaras tem sido desencorajado no mundo inteiro. Também promove debates sobre imunização misturadas com plataformas olavistas como o “globalismo”. Outro tópico de discussão é o movimento monárquico no Brasil… Segundo Monica Bergamo, que teve acesso à carta, 17 membros pedem a criação de uma Comissão Nacional de Bioética para “auxiliar o governo federal em suas decisões” sobre os testes de vacinas contra o novo coronavírus.

SEM SAÚDE, COM LOBBY

Uma interessante reportagem da BBC conta por que os Estados Unidos se tornaram a única potência a não criar um esquema abrangente de seguro de saúde, como existe na Alemanha ou na França, tampouco um sistema público, como existe no Reino Unido. Não foi por falta de proposta: desde 1915, políticos progressistas tentavam emplacar esquemas de seguro para algumas categorias de trabalhadores. Com o fim da Segunda Guerra, o presidente Harry Truman chegou a enviar ao Congresso uma proposta que tornaria o seguro obrigatório para quem estava no mercado formal de trabalho e suas famílias, algo que eles calculava que poderia beneficiar 110 milhões de pessoas. Mas o lobby dos médicos não deixou o plano prosperar em 1946 e também da segunda vez em que foi apresentado, quando havia maioria democrata no Congresso, em 1949. Nesse ano, a Associação Médica Americana contratou uma empresa de relações públicas que disseminou a ideia de que o segura nacional de saúde era uma ideia defendida por Lênin como “chave para o arco do Estado socialista”.

“A verdade é que Lênin nunca disse isso, o que não significa que essa citação tenha sido amplamente usada”, explica Jonathan Oberlander, professor de medicina social da Universidade da Carolina do Norte, na matéria. “Portanto, grande parte da campanha – que foi a campanha de lobby mais cara da época – se concentrou na ideia de transformar o debate sobre saúde em socialismo“. Como resultado, a coalizão conservadora, formada entre republicanos e democratas do Sul do país, barrou este e outros projetos. Até hoje, qualquer tentativa de racionalizar a oferta de serviços de saúde, descrito por Oberlander como um “não sistema” e uma “manta de retalhos” é associada por republicanos e uma parcela da população a ideias radicais de esquerda.

SEGUNDO ROUND

Na semana que vem, começa a Assembleia Mundial da Saúde. Parece disco arranhado, mas é que excepcionalmente este ano o evento foi dividido. Em maio, aconteceram discussões sobre a pandemia. Agora, todos os outros temas entram na pauta.

Segundo o Guardian, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson vai anunciar um incremente de 30% na contribuição à OMS. A ideia é chegar a 340 milhões de libras nos próximos quatro anos – ou R$ 2,4 bi. A soma fará do Reino Unido o maior doador da Organização entre os países-membros.

ATÉ QUARTA

Quem quiser apresentar trabalhos no 4º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde tem até quarta-feira para submeter os resumos à comissão científica. O evento da Abrasco acontecerá em março do ano que vem, de forma virtual, com o tema “O SUS e o projeto civilizatório: cenário, alternativas e propostas”. As inscrições para acompanhar o congresso como participante vão até 9 de outubro.

Redação

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