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Sobre moluscos, conchas e beleza

 

Voltamos ao mundo dos moluscos que fez Piaget pensar sobre os homens… Deles a primeira coisa que vi foram as conchas. Eu vi, simplesmente, sem nada saber sobre suas origens. Ignorava que existissem moluscos. Não sabia que elas, as conchas, tinham sido feitas para serem casas daqueles animais de corpo mole que, sem elas, seriam devorados pelos predadores. Meus olhos apenas viram. Viram e se espantaram. O espanto: os gregos sabiam que é no espanto que o pensamento começa. O espanto é quando um objeto se coloca diante de nós como um enigma a ser decifrado: “Decifra-me ou te devoro!” Conchas são objetos espantosos. Enigmas. As conchas me fizeram pensar.

https://www.youtube.com/watch?v=ExL6g-SAht0

 

 

 

 EXPRESSÃO CORPORAL – RESSIGNIFICANDO MENSAGENS: “A COBRA VAI FUMAR”

 

OS NOSSOS DESENHISTAS DO FUTURO: RECRIAÇÃO GRÁFICA

 

 

Foi um espanto estético. Foi a beleza que exigiu que eu a decifrasse. Conchas são objetos assombrosos, construídos segundo rigorosas relações matemáticas. É possível transformar conchas em equações. Os moluscos não eram apenas engenheiros competentes na construção de casas. Eram também artistas, arquitetos. Suas casas tinham de ser belas. Será que a natureza tem uma alma de artista? Coisa estranha essa, com certeza alucinação de poeta, imaginar que a natureza seja uma casa onde mora um artista! Não para Bachelard, que não se envergonhava em falar sobre “imaginação da matéria”. Haverá uma analogia entre a natureza e o espírito humano? Serão os homens apenas a natureza tomando consciência de si ? Antes que a Pietà existisse como escultura existiu como realidade virtual na alma de Michelangelo. Antes que as conchas existissem como objetos assombrosos, elas existem como realidades virtuais na “alma” dos moluscos…

 

O espanto ante as conchas me faz pensar. Pensei que a vida não produz apenas objetos úteis, ferramentas adequadas à sobrevivência. A vida não deseja apenas sobreviver. Ela não se satisfaz com a utilidade. Ela constrói os seus objetos segundo as normas da beleza. A vida deseja alegria. Assim acontece conosco: precisamos sobreviver e para isso cultivamos repolhos, nabos e batatas e estabelecemos a ciência do cultivo de repolhos, nabos e batatas – ciência que se transmite de geração em geração, nas escolas. É esse é um dos sentidos da ciência: receitas para a construção de ferramentas para a sobrevivência. Mas, por razões que se encontram além das razões científicas, talvez por obra do artista invisível que mora em nós, gastamos nosso tempo e nossas forças na produção de coisas inúteis, tais como violetas, orquídeas e rosas, coisas que não servem para nada e só dão trabalho… Nosso corpo não se alimenta só de pão. Ele tem fome de beleza. Creio que Jesus Cristo não se importaria e até mesmo sorriria se eu fizesse uma paráfrase da sua resposta ao Diabo, que o tentava com a solução prática: “Não só de repolhos, nabos e batatas viverá o homem, mas também de violetas, orquídeas e rosas…”

Uma menina perguntou a Mário Quintana se era verdade que os machados públicos iriam cortar um maravilhoso pé de figueira que havia numa praça. Isso o levou de volta aos seus tempos de menino – no quintal de sua casa havia uma paineira enorme que, quando florescia, era uma glória. Até que um dia foi posta abaixo, simplesmente “porque prejudicava o desenvolvimento das árvores frutíferas. Ora, as árvores frutíferas! Bem sabes, meninazinha, que os nossos olhos também precisam de alimento…”

 

Penso que, desde que o objetivo da educação é permitir que vivamos melhor, nossas escolas deveriam tomar a natureza como sua mestra. Assim, já que tanto falam em Piaget, imaginei que poderiam adotar as conchas como símbolos – afinal de contas, foi no estudo dos moluscos que o seu pensamento sobre educação se iniciou… – posto que nelas se encontra, em resumo, toda uma filosofia: foi o espanto diante das conchas que me fez filosofar… E quando, perguntados por pais e alunos sobre as razões de serem as conchas os símbolos da escola, os professores teriam uma ocasião para lhes dar a primeira aula de filosofia da educação: “O objetivo da educação é ensinar as novas gerações a construir casas. É preciso que as casas sejam sólidas, por causa da sobrevivência. Para isso as escolas ensinam a ciência. Mas não basta que nossas casas sejam sólidas. É preciso que sejam belas. A vida deseja alegria. Para isso as escolas ensinam as artes. É preciso educar os sentidos.”

 

Hume, ao final do seu livro Investigação sobre o entendimento humano, propõe duas perguntas, somente duas, que, se feitas, produziriam uma assepsia geral do conhecimento. De forma semelhante, e inspirado pela sabedoria dos moluscos e suas conchas, quero propor duas perguntas a serem feitas a tudo aquilo que se ensina nas escolas. Primeira: isso que estou ensinando, é uma ferramenta? Tem um uso prático? Aumenta o poder do meu aluno sobre o mundo que o cerca? De que forma ele pode usar isso que estou ensinando como ferramenta para construir a sua concha, a sua “casa”? Segunda: isso que estou ensinando contribui para que o meu aluno se torne mais sensível à beleza? Educa a sua sensibilidade? Aumenta suas possibilidades de alegria e espanto? Concluo com as palavras de Hume: se a resposta for negativa, então, “que seja lançado ao fogo” – porque nada tem a ver com a sabedoria da vida. Não passa de tolice e perda de tempo…

Rubem Alves

http://www.rubemalves.com.br/sobremoluscosconchasebeleza.htm

RECRIAÇÃO DE PERSONAGENS EM MASSINHA: crônica “O médico e o monstro”.

 

 

 

 

DEDICADO AO RUI DAHER, sempre bastante interessado pelas atividades do Clubinho e muito atencioso com tudo o que escrevo.

 

Redação

6 Comentários

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  1. Muitos são os entusiastas do Clubinho da Leitura

    Há pessoas que se tornaram “visitantes” para comentar uma coisa ou outra por aqui.

    Ainda há os que sempre perguntam o que estamos fazendo, por isso tomei a iniciativa de relatar no meu blog os acontecimentos.

    Recebi alguns retornos interessantes de pessoas que valorizam esse trabalho, até no sentido de reeditá-lo em suas cidades, bairros.

    Fico contente com isso, porque sua divulgação está na mesma proposta de se atirar garrafas ao mar, assoprar penas ao vento… ocorrendo isso estará ótimo. 

     

    AGRADECIMENTO

     

    Aprendi a agradecer ao sol por ter-se aberto em dia.

    Aprendi a agradecer à lua por coroar a noite.

    Aprendi a agradecer aos campos por me trazerem esse cheiro de mato.

    Aprendi a agradecer aos poetas por me perfumarem de versos.

     

    Odonir Oliveira

  2. Voltei, Odonir

    Muito feliz com a dedicatória. Leio e sinto um sabor de humanidade nos seus textos e na experiência do Clubinho. Faz-me quase pensar que erro ao achar que a humanidade não deu certo e a natureza sim. Talvez, alguns humanos se salvem construindo casas/conchas para abrigar impotentes moluscos. 

    Ontem, por exemplo, palestra preparada para às 19 horas num centro comunitário rural, em Bernardino de Campos. Contaria a eles como gastar menos e produzir sem o uso de químicos e agrotóxicos. Eram 120 pssoas entre camponeses, mulheres, filhos e cachorros, sim, eles também circulavam entre as cadeiras brancas de plástico. A energia acabou às 4 da tarde e não voltou mais.

    Pânico? Nada. Lampiões de gás, velas, faroletes, farois de carros, gelo buscado na cidade para manter a cerveja gelada, churrasqueiro iluminado pelo fogo. Falei tudo o que precisava, conversei com todos, ouvi dezenas de piadas rurais, brinquei com uma cachaça acondicionada em garrafa pet – por que não? -, todos comeram. Havia uma casa construída sobre nós, ainda que mais senzala do que casa-grande, como o abraço que te dedico.

  3. Eu gosto

    Agora, sim, vi o post do Clubinho da Leitura. Conchas/casas. A natureza nos ensinando que para tudo a que se ter beleza, como diria o poetinha. Eh sempre do espanto diante da vida que se cria um pensamento, não é mesmo. Parabéns mais uma vez pelo trabalho, pela reflexão, pela iniciativa com as crianças e a reflexão que passa também pelos desenhos, os quais achei muito interessantes.

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