Pelo direito à desigualdade: a PEC dos Magistrados e o poder do lobby togado – II) Impactos Orçamentários

 

Na parte I, “Republicanismo versus Corporativismo” (disponível em https://jornalggn.com.br/blog/sergiorgreis/pelo-direito-a-desigualdade-a-pec-dos-magistrados-e-o-poder-do-lobby-togado-%E2%80%93-i-republicanismo-versus-corporat), busquei definir os conceitos em questão para poder apresentar a ideia de que formas a defesa da PEC dos Magistrados constitui um esforço que se encaminha para a segunda noção. Aqui, nesta segunda parte, apresento os termos contidos na Nota Técnica feita pela Consultoria de Orçamentos do Senado para avaliar os impactos orçamentários da aprovação da medida, e busco avançar alguns dos argumentos aí contidos. Esse estudo, que também revela um conjunto de inconstitucionalidades formais da PEC, mostra argumentos essenciais e concretos para a não aprovação do normativo. Finalmente, desenvolvo algumas ideias, no final do ensaio, com o objetivo de propor o redirecionamento dos debates concernentes ao tema, considerando-se, evidentemente, a rejeição da PEC.

 

Parte II) Impactos Orçamentários

Para além de todas as questões que interessam ao debate a respeito das implicações éticas a respeito da PEC dos Magistrados, há que se falar sobre seus impactos materiais no Orçamento Público, que dimensionam concretamente toda a inviabilidade da medida. Na semana passada, foi concluída pela insuspeita Consultoria de Orçamentos do Senado (órgão de assessoria técnica da Casa), a pedido do Senador Roberto Requião (um dos congressistas que, a princípio, se manifestou contrariamente à proposta), um estudo das implicações financeiras caso a PEC venha a ser aprovada. O documento encontra-se disponível em https://www12.senado.gov.br/orcamento/documentos/loa/2014/execucao/programacao-financeira-contingenciamento/notas-tecnicas-e-estudos/nota-tecnica-no-54-de-2014

Vale dizer, primeiramente, que o estudo realizado considerou como parâmetro o substitutivo aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), e não a PEC original. Uma diferença fundamental entre ambas está na circunstância de a segunda prever a retroatividade dos efeitos financeiros da deliberação favorável à medida, enquanto que a primeira aponta para a consideração de efeitos financeiros apenas a partir da entrada em vigor da emenda. Parece uma diferença sutil, mas a aprovação da proposta original significaria a necessidade de pagamento acumulado de todos os adicionais por tempo de serviço que “deveriam” ter sido pagos caso a medida estivesse valendo desde o ingresso de cada magistrado no serviço público. Em outras palavras, um juiz que tivesse 35 anos de advocacia teria direito não apenas a receber 35% de incremento em seu salário de hoje em diante, mas sim a compensação financeira de todos os vencimentos recebidos anteriormente que desconsideraram esse adicional. Em síntese, uma insanidade inclassificável, que multiplicaria o impacto orçamentário exponencialmente – e que, felizmente, não foi considerado no substitutivo.

Primeiramente, a nota técnica faz a ponderação de que a PEC aponta para uma estratégia de produção de efeitos financeiros (conforme explicado acima) que não encontra guarida na própria Constituição Federal. Isso porque é preciso, em linhas gerais, que medidas que visem expandir os gastos com pessoal precisam estar previstas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e, ainda, que tenham previsão da dotação orçamentária correspondente para viabilizá-la. Mais gravemente, também a PEC não atende ao especificado na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF): 1) é necessário que haja a estimativa de seu impacto financeiro e orçamentário (para o próximo exercício e para os dois subsequentes); 2) é imperioso que haja a demonstração da fonte de custeio e dos recursos para viabilizar a implementação da medida. Cabe comentar que esses são atributos extremamente básicos para a composição de um normativo como esse – em especial para uma PEC, dada a sua expressiva abrangência. A ausência desses pressupostos formais é um indício singelo da falta de qualidade dos debates que ensejaram a proposta, bem como, subsequentemente, da sua inconsistência explícita. Há que se dizer, sem meias palavras, que a PEC, tal qual foi apresentada, é flagrantemente inconstitucional.

O trabalho da Consultoria do Senado, por toda a sua complexidade, explicita o quão difícil, em tese, é elaborar uma Proposta de Emenda Constitucional que tenha tantas reverberações – já que envolve a estipulação de impactos orçamentários para o STF, o STJ, para todos os tribunais superiores (do Trabalho, Militar, Eleitoral), para todos os tribunais regionais, para todos os tribunais estaduais, para o Ministério Público Federal, para o Ministério Público do Trabalho, para o Ministério Público Militar e para os Tribunais de Contas (eventualmente beneficiados por vinculação remuneratória constitucional). Nesse sentido, não é possível classificar como nada menos do que absolutamente temerária a possibilidade de aprovação da PEC (algo plausível diante da deliberação a ela favorável por tamanha maioria na CCJ). Se há todo um conjunto de questões éticas – subjetivas, mas concretas – a respeito da PEC em si – que já ensejariam um tratamento cuidadoso dela –, que dizer de todos os vícios formais que a compõem, em especial a ausência da noção do custo, para o país, de sua aprovação? Como se é possível conjecturar a deliberação favorável a respeito do tema que for (sem importar o quão meritório ou progressista ele seja) sem que haja uma estipulação bastante razoável de seu custo para a sociedade?

A primeira dificuldade encontrada pela Consultoria é exatamente a circunstância de nem todos esses órgãos publicarem as informações que serviriam de base para os cálculos. Em muitos casos, quando o fazem, são apresentadas ou informações em formatos não-amigáveis ou fechados, ou dados incompletos. Uma lacuna importante, por exemplo, é a apresentação pelos órgãos das parcelas auferidas pelos aposentados e dependentes – que, de acordo com a PEC, também seriam beneficiados com o ATS. Além disso, há – conforme relatado na Nota Técnica – dificuldade de estipulação do número médio de anos de advocacia de cada magistrado, exatamente o determinante do benefício em questão.

O que a Consultoria fez foi, de forma geral, obter o gasto total do órgão/ramo da Justiça com o quadro ativo; depois, com base nas informações sobre magistrados ativos e respectivos subsídios, foi calculado o percentual da despesa com magistrados ativos sobre a despesa total com ativos; finalmente, a despesa com magistrados inativos foi estimada multiplicando o percentual acima obtido pela despesa total com o quadro inativo. A determinação do tempo médio de anos de advocacia, por sua vez, teve de ser estipulada a partir de uma pesquisa de 2006 feita pela Associação de Magistrados Brasileiros. Nela, consta que a idade média de ingresso dos juízes na Magistratura é de 33,4 anos, e a idade média atual desse corpo funcional é de 49 anos. Levando-se em conta que, para a aprovação no concurso público correspondente é necessário que o candidato comprove pelo menos 3 anos de experiência advocatícia, então a Consultoria do Senado adotou a hipótese, para efeito de cálculo, de tempo médio de experiência para fins de ATS da ordem de 20 anos (o que significaria um incremento de 20% nos vencimentos de cada beneficiado).

Para o caso dos integrantes dos Tribunais Superiores, por sua vez, estimou-se o tempo médio de 30 anos de experiência, já que o ingresso nesse nível ocorre, de forma geral, por parte dos juízes mais experientes. No caso dos aposentados, adotou-se como parâmetro o referencial de 35 anos de experiência, ao passo em que, no caso dos pensionistas, trabalhou-se com um indicativo médio de 30 anos. Para o Ministério Público, foram aplicadas as mesmas estimativas; para o Tribunal de Contas, optou-se por analisar os dados das autoridades integrantes do TCU – cujo tempo médio de atividade jurídica, no caso dos ativos, é de pouco mais de 10 anos, e de pouco mais de 11, para os aposentados.

A partir desse conjunto de estimativas e referenciais, a Consultoria do Senado chegou ao cálculo do impacto global da PEC em impressionantes R$ 3,17 bilhões por ano, sendo que R$ 1,84 bilhões dizem respeito aos dispêndios eventualmente a serem realizados para remunerar os servidores ativos, e R$ 1,33 bilhões, para os inativos (aposentados e pensionistas). Cabe notar uma questão relevante: como em, provavelmente, todas as despesas de custeio, os dispêndios crescem ano a ano, já que 1) o benefício é vinculado ao tempo de exercício (necessariamente crescente, a partir de alíquotas), 2) atinge também os aposentados (cada vez mais numerosos, inclusive por questões demográficas), 3) há sempre a expectativa de incrementos salariais, desenvolvidos a partir de iniciativa do próprio STF e escalonados para o restante da Magistratura e 4), o benefício virá a ser garantido aos novos ingressantes, conforme são admitidos nos concursos.

Não é precipitado conjecturar, então, que esse é o valor mínimo a ser despendido para atender ao disposto na PEC, com a ponderação de que poderá vir a aumentar sensivelmente em um intervalo temporal curto, mesmo sem aumento nominal das remunerações – o que, sabemos, vai certamente ocorrer, considerando-se a observação do teto constitucional federal com base na remuneração dos Ministros do STF (a própria Nota Técnica atesta que, com os incrementos remuneratórios já aprovados para o próximo exercício, o impacto orçamentário global subirá para pelo menos R$ 3,33 bilhões). Aliás, vale aqui a observação curiosa de que, na eventualidade de a PEC ser aprovada, teremos a bizarra circunstância de a determinação de o teto constitucional passar a ser delimitado por quem a ele não mais estará sujeito, dada a já explicada artimanha da criação de um regime supra-constitucional para os beneficiários da PEC. Nada menos que escatológico.

Conforme o observado na Nota Técnica, foram discriminados os estudos para cada Estado, sendo que houve um nível maior de acurácia para os casos de São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais, já que foram as unidades da federação, de acordo com a Consultoria, com maior riqueza de dados à disposição (ainda que com expressivas lacunas) e que foram classificadas, pelo Conselho Nacional de Justiça, como de “grande porte”, conferindo-lhes, em tese, certa representatividade. Para as demais, foi feita uma extrapolação das informações.

Um aspecto extremamente importante do estudo é a consideração de que, para vários Estados, há um risco expressivo de que a aprovação da medida venha a significar o estouro dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal com gastos com pessoal – que precisa ser inferior a 6% do total de Receitas Correntes Líquidas, no caso do Judiciário, e de 2% para o Ministério Público, para que o Poder e/ou a unidade da federação não venham a sofrer uma série de restrições administrativas absolutamente significativas, como: 1) a contratação de operações de crédito; 2) o recebimento de garantias de outro ente; 3) a recepção de transferências voluntárias (como a realização de convênios), bem como 4) a necessidade de extinção de cargos e funções (ou a possibilidade de redução da jornada de trabalho), para que o percentual destinado a despesas com pessoal volte a ficar abaixo desses limites no prazo de dois quadrimestres. No caso de superação do “limite prudencial” (5,7% do total de Receitas Correntes Líquidas), também já ocorrem restrições significativas, como 1) a proibição de contratar e 2) de aumentar os vencimentos dos servidores.

A tabela abaixo, produzida a partir de dados da Secretaria do Tesouro Nacional e do Conselho Nacional de Justiça, nos mostra qual é a situação real, nos últimos três anos, do ponto de vista das despesas com pessoal, por poder (em âmbito federal), quando comparadas, percentualmente, com relação às Receitas Correntes Líquidas:

Diferentemente do comentado em documentos que buscam defender a PEC, a situação do Judiciário do ponto de vista do seu dispêndio com pessoal não está confortável, não é de 3%, nem está, exatamente, em declínio expressivo. Quando relacionamos esses percentuais com os percentuais do limite prudencial, observamos como o Judiciário é, de fato, o Poder com maior comprometimento relativo do gasto com relação ao máximo que se pode despender sem que ocorram limitações administrativas sensíveis. O gráfico abaixo ilustra o argumento:

Os defensores da PEC dos Magistrados, então, apresentam um paroxismo como argumento para a aprovação da medida. Ao mesmo tempo em que dissertam sobre a necessidade da medida para manterem os quadros vigentes, apontam que ela servirá para atrair novos juízes, considerando-se a existência de milhares de vagas não preenchidas para esse cargo. Diante do expressivo impacto orçamentário a partir da implementação do normativo, parece que os magistrados terão de escolher que bandeira defender: ou a aprovação desse adicional por tempo de serviço, ou a contratação, via concurso público, de novos profissionais para a área. Se já parece inviável, no curto prazo, manter a saúde financeira desse Poder a partir da aprovação da PEC, a sua deliberação favorável combinada com o incremento do número de juízes admitidos certamente redundará em um caos administrativo, levando-se em conta os patamares salariais vigentes e a sua natural expectativa de crescimento – isso quando o país enfrenta dificuldades mais severas de elevação da sua arrecadação, dada a crise internacional.

Com efeito, no artigo publicado em Junho, já havia levantado essa perigosa hipótese. O estudo da Consultoria do Senado a corrobora, indicando que Bahia e Espírito Santo, por já estarem muito próximos do chamado “limite prudencial”, certamente o superarão a partir da deliberação em favor da PEC. Outros Estados, como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Sergipe e Paraíba também poderão vir a ficar extremamente próximos desse teto já no curto prazo. É possível conjecturar que também venha a ser o caso de Santa Catarina, que hoje já despende algo como 5,24% das suas Receitas Correntes Líquidas com pessoal do Poder Judiciário.

Essa tabela, do DIEESE (dados do 4º trimestre/2013, disponível em http://www.dieese.org.br/boletimredeservidores/2013/boletimRedeServidoresJudiciarioDezembro2013.pdf), nos mostra de forma cristalina a já dramática situação orçamentária de diversos Estados da federação com relação ao dispêndio do Judiciário com pessoal analisado do ponto de vista da LRF:

Vale lembrar, mais uma vez, que o limite prudencial é de 5,7%. O documento produzido pelo DIEESE é fundamental para nos mostrar a tendência expressiva de alta no comprometimento das despesas do Poder Judiciário dos Estados com pessoal. É possível notar, por exemplo, que dos 27 integrantes da Federação, apenas 5 tiveram diminuição do dispêndio dessa modalidade entre 2012 e 2013, sendo que todas essas variações negativas são muito pouco relevantes, estatisticamente falando. No caso da Bahia e do Espírito Santo, a situação já é tão calamitosa que, em tese, o incremento absoluto de gasto com pessoal do Judiciário para cada Estado é de, respectivamente, apenas R$ 3 milhões e R$ 8 milhões, ou um aumento de 0,24% e de 1,49% na folha global de pagamentos. Ou seja, realmente não há a menor dúvida de que a aprovação da PEC resultará na paralisação administrativa do Poder Judiciário desses Estados.

 A partir do raciocínio adotado na Nota Técnica da Consultoria do Senado, é possível avançar um pouco na conjectura sobre a questão para Estados como o Rio de Janeiro e Minas Gerais. Hoje, o Poder Judiciário de cada Estado compromete, respectivamente, 5,38% e 5,33% da Receita Corrente Líquida. No caso do RJ, verificamos que o dispêndio liquidado com o grupo “pessoal e encargos gerais” do Judiciário para o período Janeiro-Abril 2014 foi 18,77% superior ao identificado para o mesmo período de 2013 (uma marca muito expressiva). Caso sejamos conservadores e estimemos um aumento das despesas anual da ordem de 5%, já teremos, para 2014, tendo-se em vista uma elevação da Receita Corrente Líquida da ordem de 0,61% (conforme as estimativas atuais – o realizado em 2013 foi de R$ 47,064 bi, e o estimado para 2014 é de R$ 47,354 bi), o comprometimento de 5,55% da RCL com gastos com pessoal do Judiciário. Mantidas as mesmas proporções para o próximo exercício, a partir da aprovação da PEC alcançaríamos o percentual de 5,78% – acima, portanto, do “limite prudencial”, já em 2015.

 No caso de Minas Gerais, é preciso considerar que a previsão da Receita Corrente Líquida para 2013 ficou 4,6% acima do efetivamente realizado (R$ 45,129 bi versus R$ 43,141 bi). A previsão, para 2014, também é consideravelmente otimista: R$ 48,562 bi (um incremento de 7,61% sobre a previsão não realizada de 2013). Além disso, nos últimos 12 meses a RCL realizada foi de R$ 44,814 bi, apenas 3,88% a mais do realizado no período Janeiro-Dezembro de 2013. Levamos em conta, então, essas discrepâncias e admitimos o resultado real observado até agora para o incremento da RCL. Se compararmos o gasto até agora com pessoal do Judiciário com o mesmo período do ano passado (há dados, em Minas, para o período Janeiro-Junho), notamos também um incremento bem significativo: 14,33%. Sendo, mais uma vez, conservadores, consideramos um aumento de 5%. Nessas condições, em 2014, o comprometimento com gastos com pessoal do Judiciário chegaria a 5,36% da RCL. A partir da aprovação da PEC, e mantendo as mesmas condições, verificaríamos que em 2015 esse percentual chegaria a 5,69%, a um centésimo do limite prudencial. Em 2016, finalmente, a Lei de Responsabilidade Fiscal seria plenamente desrespeitada: as despesas com pessoal do Poder Judiciário alcançariam a considerável marca de 5,76% das Receitas Correntes Líquidas, resultando em vários impedimentos administrativos significativos para aquele Poder.

A tabela abaixo apresenta a síntese dessas hipóteses:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Se a destinação, em si, de bilhões de reais para a remuneração de um conjunto de alguns milhares de servidores já extremamente bem pagos – tanto no contexto da realidade brasileira, como internacionalmente, conforme pode ser atestado por meio de várias notícias e matérias publicadas recentemente (é o caso desta, http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,julgando-de-barriga-cheia-imp-,958750, que mostra que o salário inicial de um juiz no Brasil equivale a quase o triplo do auferido por um magistrado na Alemanha e na França; desta, http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/the-new-york-times/2013/02/28/pais-dos-supersalarios-brasil-tem-juiz-que-recebe-em-um-mes-o-que-colega-de-pais-rico-ganha-em-um-ano.htm, que indica a superioridade dos vencimentos de juízes brasileiros quando comparados com seus pares nova-iorquinos, mesmo aqueles situados no topo da carreira; e desta, http://www.mundovestibular.com.br/articles/5934/1/As-Profissoes-Mais-Bem-Pagas/Paacutegina1.html, que cita uma pesquisa feita pela FGV de 2009 na qual se atesta que juízes e desembargadores fazem parte dos cargos mais bem pagos do país) – constitui uma decisão extremamente polêmica (ainda mais em um dos dez países mais desiguais do mundo, como é o caso do Brasil), que dizer, então, quando uma deliberação como essa poderá vir a acarretar a paralisia administrativa de várias das unidades da federação?

Talvez o conjunto de riscos assinalados não cause espécie aos defensores vocais da PEC possivelmente por acreditarem que, por terem o domínio da interpretação teleológica das normas – dada sua privilegiada posição político-jurídica –, poderão vir a contornar as restrições a partir de toda sorte de instrumentos e tecnologias protelatórias. Possivelmente, compreendam que os 6% expressos na LRF como limite máximo e excepcional de gasto com remunerações constituam, na realidade, um ponto de partida, um mínimo de direito, uma fatia que precise ser plenamente despendida. Um quinhão ou um naco a serem “meritocraticamente” destinados a quem enfrentou um duro concurso público. O fato é que mesmo que as tergiversações e subterfúgios venham a ter sucesso – ou seja, que a emenda seja aprovada, que sua constitucionalidade não seja questionada e que as ações de inconstitucionalidade sejam indeferidas, ou mesmo que haja sucesso no contorno das restrições orçamentárias notadas –, o cobertor ficará curto para alguém (ns). O orçamento não crescerá por geração espontânea para compensar, para outras áreas da sociedade, a fatia que for destinada à Magistratura. E é essa a mais clarividente implicação antirrepublicana da medida: o sucesso em ser parte da “honra ao mérito” e relegar à própria sorte quem dela não participar. Nada mais abstrato, distante e utópico do que a República levando-se em conta esse raciocínio.

Retomando o comentado na parte I deste artigo, não há como não encarar o tema sem percebê-lo a partir da clivagem “corporativismo x republicanismo”. A partir da observação dos impactos orçamentários, trazidos acima, percebemos a seriedade contida nas implicações da aprovação dessa medida, que continua a tramitar ao largo dessas preocupações. Como pode um setor da sociedade – ou, para não ser injusto, um conjunto de associações de classe que diz representar esse setor – querer se colocar tão acima dos demais ao ponto de comprometer a própria saúde financeira do país? A que ponto chegamos, quando pensamos no significado empírico da alienação social justamente do segmento que – em razão de sua “experiência, conhecimento e expertise” – deveria ter o olhar mais profundamente justo e republicano do Brasil? Como podem alguns desses senhores falar em “justiça” a partir de uma leitura e de uma perspectiva que dizem respeito exclusivamente aos seus interesses? Que espécie de abnegação é essa, contida na missão de “julgar e distribuir justiça”, que não se dá por satisfeita com remunerações iniciais equivalentes a 30 salários mínimos (sendo que um terço dos brasileiros aufere menos do que isso, ao mês)?

A PEC como oportunidade de discussão sobre outras questões

Há muito o que se rever, de fato, a partir do significado imensamente antirrepublicano contido na PEC dos Magistrados. A partir de tantos vícios constitutivos, que nos dizem tanto a respeito das fragilidades éticas dos propositores da medida, de congressistas que não se furtam a referendá-la em nome de toda sorte de suporte legal ou eleitoral posterior, de agentes públicos e de integrantes da sociedade civil, talvez caberia repensarmos, mais amplamente, sobre a necessidade de pluralizarmos o Poder Judiciário, permitindo com que mais vozes dissonantes possam ter tonitruância. Talvez, também, seria válido refletirmos sobre como aperfeiçoar o processo legislativo, dado o estupor causado a partir da percepção da existência de riscos reais de aprovação de uma medida que sequer seguiu os trâmites formais mais elementares.

Claro, essa é uma oportunidade, também, para questionarmos, sim, o modelo de “carreira” existente para os juízes, procuradores, promotores e demais integrantes do Poder Judiciário. Conforme apontado no final da primeira parte deste ensaio, porque não convidar a sociedade civil, a burocracia especializada e as comunidades epistêmicas das mais variadas áreas para pensarem estratégias capazes de dar uma configuração que forneça aos beneficiários a alegada motivação para atuarem – de forma ainda muito melhor do que fazem, pois essa é uma necessidade premente e quase atemporal – e para a sociedade o ganho de justiça necessário para que venha, de fato, a confiar nessa instituição tão desacreditada? Por que não pensar em uma reforma republicana capaz de abrir o Judiciário e tornar seus agentes efetivamente mais permeáveis à realidade social, ao direito achado na rua, como diria Boaventura de Sousa Santos?

Eventualmente, talvez o raciocínio o mais mundano, mas ainda muito importante, seria tratarmos, em si, da lógica da estrutura remuneratória desses corpos funcionais – que hoje já está tão equivocada e, com a aprovação da PEC, se tornaria ainda mais. Se a Lei de Acesso a Informação finalmente permitiu com que descobríssemos o quanto tantos magistrados conseguem auferir acima do teto constitucional – mesmo após a instituição do subsídio (que, em tese, evitaria toda sorte de penduricalhos que poderiam ser classificados como não limitáveis pela Constituição e que daria maior transparência às remunerações, mas que é contornado por figuras como  o auxílio-moradia, o auxílio-paletó, o auxílio-saúde, a ajuda de custo, a licença-prêmio, etc., etc. e etc.) – que podemos fazer para que esse fenômeno, que já significa uma dilapidação tão expressiva do patrimônio público, possa vir a ser refreado? Não seria extremamente válido repensarmos – em vez de aperfeiçoar as técnicas de burlagem do teto constitucional (escancarada pela PEC dos Magistrados) – toda a questão das formas remuneratórias no serviço público, e como fazer para criarmos maneiras para que o teto constitucional venha a realmente constituir um topo rígido e balizador daquilo que deveria ser visto como o máximo que um servidor público deveria ganhar – dada a sua responsabilidade, sua legitimidade, sua perícia ou outros critérios republicanos e socialmente definidos?

Isso porque, se há um domínio em que há alguma possibilidade de dignificação do ponto de vista salarial é o espaço estatal, que não precisa corresponder à lógica “meritocrática” das chamadas leis de mercado, stricto sensu. Se, talvez, seja inviável implodir no curto prazo com a ideia da constituição de elites burocráticas, tem o Estado, sim, condição inclusive de influenciar nos mecanismos do setor privado quando valoriza, relativa ou absolutamente, determinados segmentos do seu próprio corpo funcional. Nesse sentido, a Administração Pública passa um sentido muito claro ao adotar como práxis uma política “anti-anticíclica”, reservando parcelas do patrimônio para beneficiar setores que já ocupam patamares extremamente privilegiados e que, faticamente, não possuem qualquer óbice à sua existência digna, financeiramente falando – pelo contrário. Como componentes desse sentido perverso estão a mitificação de uma noção vazia de meritocracia – baseada na noção de quem deve julgar não são os mais justos dentre os mais justos, mas os melhores dentre os melhores –, e a naturalização da desigualdade a partir desse falso discurso, referendado na profissionalização dos concursos públicos. Não é preciso ser exatamente sagaz para se perceber o quanto o domínio de uma técnica ocorrido a partir da transmissão intergeracional de capital cultural mediada pelo acesso privilegiado permitido a partir de uma posição de classe não expressa um sucesso meritocrático nem, muito menos, a realização da justiça social. Alcança-se, na verdade, o negativo disso no completamento desse processo de admissão de quadros com base nesses valores para se ocupar um posto que tem como razão de ser exatamente a implementação desse desígnio tão caro às sociedades humanas, particularmente na brasileira. Que contradição no seio da burocracia.

Ou realmente dá para argumentar, sem constrangimentos, que é efetivamente justo que um juiz venha a receber um soldo de R$ 100 mil (conforme este link http://associacaotj.blogspot.com.br/2014/07/pagamentos-milionarios-tjsc-20142.html, mas é possível verificar facilmente que essa é uma situação disseminada não apenas na realidade catarinense, mas em todo o país, em âmbito estadual e, até mesmo, federal)? O que motiva essa justeza? “Conhecimento”? Então os professores doutores também deveriam receber uma remuneração equivalente? “Abnegação”? É possível estender a concessão para médicos plantonistas? “Heroísmo”? Logo, é válido conferir aos policiais e bombeiros o mesmo padrão remuneratório?

É evidente, enfim, que nenhum desses argumentos que se baseiam em qualidades “imateriais” – mais uma vez, de origem aristocrática – pode ser utilizado seriamente para referendar a desigualdade, sob a pena de caírem no ridículo. A melhor contra-argumentação que poderia ser dada, na verdade, seria aquela que, “republicanamente”, defenderia, de fato, que todas as carreiras teriam, sim, direito a esse nível de subsídio. É o que, ardilosamente, é feito por alguns dos defensores dessa PEC – conquistando a simpatia de outros segmentos da burocracia e até mesmo de Senadores vistos como progressistas. O “laissez-faire” retórico, aparentemente pueril – e evidentemente antirrepublicano, já que nem é preciso se estender na explicação de que não há possibilidade orçamentária de extensão dessa lógica remuneratória nem para a totalidade dos próprios juízes, que dizer do resto –, esconde, na verdade, a segurança do poder do lobby. Pode-se gozar de grande alienação com relação aos profundos problemas sociais, mas não a respeito do próprio poder. A operação é simples: “se eu conseguir para o meu segmento, fiquem à vontade para tentar para os seus – é provável que não consigam, mas é ‘legítimo’. Mas não venham obter vantagens antes do que eu, pois isso é inconstitucional”. Aí consta, na verdade, mais um claro sintoma antirrepublicano, em especial pela propugnação da ideia da validade da espoliação coletiva do erário como uma saída “justa”. É um argumento sedutor. O lobby é poderoso e sabe de sua posição privilegiada. Enfrentá-lo é custoso, mas o silêncio, a inércia, a ignorância e a omissão terão preço incalculável para a sociedade brasileira. Não podemos permitir que seja referendado o vilipêndio contido na PEC dos Magistrados.

Redação

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