Pesquisa reprova vermífugos e revela novos candidatos a terapia contra covid-19

Por Herton Escobar

Do Jornal da USP

Os primeiros resultados de uma triagem de drogas no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP trazem boas e más notícias da frente de batalha farmacêutica contra a covid-19. De um total de 65 medicamentos analisados, dois demonstraram capacidade de inibição seletiva do vírus SARS-CoV-2 in vitro. Por outro lado, dois vermífugos que vêm sendo amplamente apontados como possíveis curas para a covid-19 (ivermectina e nitazoxanida) não tiveram desempenho satisfatório.

O objetivo da pesquisa é testar o potencial de uso de drogas já disponíveis para a prevenção ou o tratamento de infecções pelo novo coronavírus, dentro de uma estratégia conhecida como “reposicionamento de fármacos”.

Redirecionar o uso de uma droga já existente para o tratamento de uma outra doença é bem mais simples do que desenvolver um medicamento novo do zero, mas não deixa de ser um caminho longo, complexo e repleto de incertezas. Os cientistas ainda precisam demonstrar que a droga é eficaz e segura para esse novo uso, mesmo que ela já seja aprovada para outras finalidades — porque as dosagens podem ser diferentes, o perfil clínico dos pacientes pode ser diferente, as interações medicamentosas podem ser diferentes, e assim por diante.

A técnica usada no ICB, chamada triagem fenotípica, é um primeiro passo nessa caminhada. Os pesquisadores infectam células com o vírus em laboratório e testam o efeito de diferentes drogas sobre elas, em diferentes dosagens, para ver o que acontece. Os resultados são avaliados por meio de imagens de microscopia e moléculas fluorescentes, que permitem visualizar o que acontece com o vírus e com as células na placa de cultura. Funciona como uma primeira peneira de qualificação, tanto para identificar substâncias promissoras, que merecem ser investigadas mais a fundo, quanto para excluir aquelas que se mostram incompetentes ou inadequadas para uso.

A substância mais promissora identificada no estudo foi o brequinar, uma molécula que não está no mercado, mas é bem conhecida da indústria farmacêutica e vem sendo testada para diversas aplicações já há algum tempo, inclusive como antitumoral e antiviral. A segunda mais eficaz foi o acetato de abiraterona, um antitumoral usado no tratamento do câncer de próstata.

Já a ivermectina e a nitazoxanida mostraram ter atividade antiviral in vitro, porém não seletiva. Em outras palavras: elas eliminaram o vírus das amostras, mas também mataram as células — um resultado que, segundo parâmetros modernos de descoberta de drogas, não as favorece como candidatas para ensaios clínicos em seres humanos, ou mesmo para testes pré-clínicos em modelos animais, segundo os pesquisadores.

“Nossos resultados sugerem que essas drogas são pouco específicas e não atendem aos critérios necessários para testes in vitro com modelos animais”, diz o biólogo Lucio Freitas Junior, coordenador da Plataforma de Triagem Fenotípica, laboratório do ICB onde a pesquisa é realizada, em colaboração com a indústria farmacêutica.

Freitas ressalta que muitas das dosagens que estão sendo divulgadas na internet para uso desses medicamentos contra a covid-19 não têm embasamento clínico e podem trazer consequências imprevisíveis para a saúde das pessoas. A bula da ivermectina, por exemplo, recomenda uma dose única para a eliminação de vermes e outros parasitas; mas há sites e vídeos na internet recomendando o uso contínuo do medicamento, em caráter profilático, como forma de evitar infecções pelo novo coronavírus, apesar de não haver nenhuma evidência clínica ou científica que justifique esse uso. Vários Estados e prefeituras estão, inclusive, distribuindo o medicamento à população como parte do chamado “kit covid”, que costuma incluir também a hidroxicloroquina — outro medicamento sem ação comprovada contra a covid-19 e que pode ter efeitos colaterais graves, se consumido de forma indiscriminada.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou uma “nota de esclarecimento” na sexta-feira, 10 de julho, pontuando que não há nenhum estudo que corrobore o uso da ivermectina contra a covid-19, e que o medicamento só deve ser usado conforme as indicações da bula. A Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, fez o mesmo alerta já no início de maio, após a publicação de um pequeno estudo australiano, indicando que a ivermectina bloqueava a replicação do SARS-CoV-2 in vitro — que foi o estopim de todo o frenesi com relação ao remédio. Em junho, a Organização Pan-Americana de Saúde também emitiu nota alertando contra o uso da ivermectina e levantando dúvidas sobre os estudos publicados sobre ela no contexto da covid-19.

Segundo o mais recente boletim da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), até o início de julho havia quatro ensaios clínicos aprovados com ivermectina no Brasil e três com a nitazoxanida. Esses estudos, realizados de forma controlada, poderão elucidar se essas drogas realmente funcionam e são seguras para uso contra a covid-19.

No caso da nitazoxanida (mais conhecida no Brasil pelo seu nome comercial, Annita), a esperança com relação ao remédio tem como base um ensaio conduzido pelo Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), em colaboração com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), segundo o qual o vermífugo reduziu em 94% a carga viral do SARS-CoV-2 em células in vitro. Com base nisso, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) — ao qual o LNBio é vinculado — lançou em abril um estudo clínico para testar o uso da nitazoxanida na prevenção e tratamento da covid-19. A meta é recrutar 500 pacientes com sintomas leves e outros 500, com sintomas graves.

Publicação

Os resultados do ICB foram publicados na última sexta-feira, 10 de julho, no site da bioRxiv, uma plataforma aberta para a divulgação de trabalhos científicos que ainda não passaram pelo processo de revisão por pares (chamados preprints) — mas os autores ainda pretendem submetê-los a uma revista científica. A opção inicial pelo preprint, segundo Freitas, deve-se à urgência da pandemia e à intenção de “colocar esse conhecimento à disposição da comunidade científica o mais rápido possível”.

O estudo tem 10 autores, incluindo colaboradores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e de outras duas unidades da USP: Instituto de Biociências (IB) e Instituto de Física de São Carlos (IFSC).

O fato de uma substância funcionar contra o vírus num experimento in vitro (numa cultura de células) não significa que ela vá funcionar da mesma forma in vivo (no corpo humano), nem que ela seja segura para uso fora das dosagens e prescrições clínicas já aprovadas. Desde já, portanto, os pesquisadores alertam que não é recomendado nem há motivo para que as pessoas utilizem qualquer um dos medicamentos mencionados no estudo com o intuito de se proteger da covid-19. Além de não oferecer proteção, os remédios podem causar danos à saúde, quando usados sem necessidade e sem supervisão médica.

Uma das drogas incluídas na testagem foi a cloroquina, inicialmente apontada por alguns estudos (e alguns políticos) como uma cura pronta para a covid-19. De fato, nos ensaios in vitro, ela se mostra altamente eficaz e seletiva contra o SARS-CoV-2, mas estudos clínicos demonstram que ela não é efetiva contra a doença no organismo humano, além de carregar o risco de efeitos colaterais graves para alguns pacientes.

Metodologia

Os experimentos feitos no ICB levam em conta não só o efeito da droga sobre o vírus, mas também sobre as células que ele infecta e necessita para se replicar. O fármaco ideal é aquele que se mostra agressivo contra o vírus, porém gentil com as células do organismo infectado (combinando efetividade e seletividade, na linguagem dos cientistas). Algo que parece óbvio, mas não é. Muitos estudos desse tipo medem apenas a capacidade da substância de reduzir a quantidade de vírus na amostra, sem levar em conta que essa diminuição pode ocorrer por dois motivos: porque a droga está atacando o vírus, ou porque ela está matando as células — o que não é desejável.

“Se o vírus depende da célula, e você afeta a célula, é claro que vai afetar o vírus. Mas não adianta matar o vírus se você mata o hospedeiro junto”, explica Freitas. “Seletividade é essencial.”

As células usadas no estudo são de uma linhagem padronizada de células de rim de macaco, conhecidas como Vero E6, que são o padrão-ouro para esse tipo de pesquisa no mundo todo; e as partículas virais são de uma linhagem de SARS-CoV-2 isolada dos primeiros pacientes brasileiros com covid-19 pelo pesquisador Edison Durigon, professor de virologia do ICB e coautor do trabalho. Sete das 65 substâncias testadas foram compradas da empresa farmacêutica Sigma-Aldrich, e as outras 59 foram doadas pelo laboratório Eurofarma. Centenas de outras moléculas ainda deverão ser testadas por essa mesma metodologia — validada padronizada por essa primeira triagem — no próximos meses.

Segundo Freitas, o fato de as células usadas no estudo não serem humanas não representa um problema. O objetivo da triagem é verificar como cada droga funciona nesse ambiente simples, padronizado e altamente controlado do meio de cultura. A regra básica é: se funciona na simplicidade do in vitro, pode ser que funcione na complexidade do in vivo; mas se não funciona numa cultura de células, dificilmente vai funcionar num organismo vivo. “É uma metodologia excludente, que mostra principalmente aquilo que não é promissor”, afirma Freitas.

Os pesquisadores ainda fizeram uma análise computacional de redes gênicas e interações moleculares para tentar prever como as substâncias identificadas como promissoras podem estar atuando contra a covid-19. Essa análise é feita com a ajuda de um software, chamado Ingenuity Pathway Analysis (IPA), que busca informações de toda a literatura científica para tentar estabelecer relações entre as moléculas da droga e moléculas do vírus, ou do organismo hospedeiro. E, assim, apontar caminhos para os próximos passos da pesquisa. “Com base nesses testes in vitro tentamos predizer como a droga pode vir a funcionar num ensaio clínico ou pré-clínico”, explica a pesquisadora Ludmila Ferreira, da UFMG, responsável por essa parte do estudo.

“Quando você trabalha com reposicionamento de fármacos você tem que manter a cabeça aberta, porque podem aparecer coisas totalmente inesperadas”, afirma Freitas.

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