PNE: estratégias para educação integral propõem novo paradigma às escolas brasileiras

Por Helena Singer*, em colaboração ao Centro de Referências em Educação Integral.

Em junho último, com atraso de quatro anos, e após longo período de debates em conferências nacionais e tramitações no Congresso Nacional, foi sancionado pela Presidência da República o Plano Nacional de Educação, com definição de metas e diretrizes a serem atingidas para os próximos dez anos, tal como determina a Constituição Federal. São vinte metas referentes aos diversos aspectos da educação brasileira: da educação infantil ao ensino superior, da redução da desigualdade social à inclusão escolar de todos os atores e grupos sociais, da qualidade da educação à formação dos profissionais, passando pelo polêmico capítulo do financiamento da área. A partir da sua promulgação, todos os planos estaduais e municipais de Educação deverão ser criados ou adaptados em consonância com estas diretrizes e metas.

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Uma meta bastante relevante é a que trata da educação em tempo integral. A meta 6 estabelece que na próxima década no mínimo 50% das escolas públicas ofereçam educação em tempo integral, atingindo ao menos 25% dos estudantes da educação básica (do infantil ao ensino médio). Mas, a maior relevância desta meta está em seus desdobramentos, que incorrem em aspectos como o papel do território no processo educativo, as parcerias possíveis entre equipamentos públicos e privados, a questão da intersetorialidade, o respeito à diversidade cultural brasileira e à diversidade de interesses, habilidades e estilos de aprender.

Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996 já indicava que o tempo de permanência do estudante na escola seria progressivamente ampliado, para além das quatro horas diárias, até que fosse garantido o ensino em tempo integral na etapa do fundamental. Embora já tenham se passado quase duas décadas desde então, esta determinação da LDB ainda está longe de ser alcançada. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) informam que hoje 34,7% das escolas públicas da educação básica oferecem vagas em tempo integral, atingindo apenas 13,2% dos estudantes.

O PNE apresenta nove estratégias (mais próximas de fato a diretrizes) para que a meta de 2024 seja alcançada. Estas estratégias traçam o panorama das questões envolvidas quando se trata da ampliação da jornada escolar.

A primeira estratégia define que será de no mínimo sete horas o tempo de permanência dos estudantes na escola ou sob sua responsabilidade. A primeira possibilidade, de os estudantes permanecerem sete horas na escola, incorre em dificuldades pedagógicas e estruturais. Do ponto de vista pedagógico, embora seja verdade que é preciso garantir que nossas crianças e adolescentes estejam mais horas por dia em processo educativo, não é consenso que o melhor lugar para isso seja a escola. Do ponto de vista estrutural, hoje, grande parte das escolas brasileiras funciona em mais de um turno, o que significa que para que um quarto dos estudantes fique em tempo integral na escola será necessário construir e equipar milhares de unidades de ensino. Esta necessidade é reconhecida na estratégia seguinte que preconiza a construção de escolas em regime de colaboração, prioritariamente em comunidades pobres ou vulneráveis. E a terceira estratégia a complementa, referindo-se nos mesmos moldes à instalação de quadras, laboratórios, bibliotecas, auditórios, e refeitórios nas escolas, além da produção de material didático e de formação de recursos humanos para o tempo integral.

Mas, é na alternativa de o estudante ficar “sob responsabilidade” da escola, não necessariamente em seu interior, que se encontra a possibilidade mais inovadora. Trata-se de viabilizar que os estudantes fiquem durante sete horas por dia em processos coordenados pela escola em diferentes equipamentos, desenvolvendo atividades multidisciplinares, culturais ou esportivas. Neste caso, ao invés de escola em tempo integral, estamos falando em educação integral, que se garante pela ampliação não só do tempo, mas também dos espaços e agentes educativos, indicando o caminho de um novo paradigma educacional.

A estratégia seguinte completa esta vertente com a articulação da escola com os diferentes espaços públicos, como os culturais, esportivos e comunitários, as bibliotecas e praças, os parques, museus, teatros, cinemas e planetários. Para que isso se concretize, contudo, é preciso criar condições: estrutura que possibilite a circulação dos estudantes pelos territórios, profissionais encarregados de mapear as oportunidades, parcerias intersetoriais, planejamento coletivo do corpo docente para a qualificação desta articulação do ponto de vista curricular, envolvimento dos agentes destes espaços na construção do projeto político pedagógico das escolas.

Duas parcerias estratégicas já estão previstas no plano: a primeira com as entidades privadas do serviço social vinculadas ao sistema sindical, o que pode ser entendido como as instituições que compõem o Sistema S (SESC, SENAC, SENAI, SEBRAE). Estas parcerias devem possibilitar tanto a oferta de espaços mais qualificados para práticas artísticas e esportivas, quanto soluções de continuidade entre os processos escolares e a formação para o mundo do trabalho. Para que isso ocorra, é preciso um marco legal claro que oriente o papel de estabelecimentos privados na construção da educação pública.

A segunda parceria estratégica indicada no plano é com as entidades da assistência social, que atendam a padrões mínimos de qualidade conduzidos pelo MEC. Esta articulação entre educação e assistência social representa um duplo avanço. De um lado, o reconhecimento de que os processos empreendidos nas organizações sociais, comunitárias e populares também são qualificados do ponto de vista educativo, algo que subverte visões bastante consolidadas entre técnicos e profissionais ligados às redes de ensino. De outro lado, a articulação entre educação e assistência social representa o reconhecimento de que o processo educativo não pode dissociar o aprendizado da satisfação das necessidades básicas.

As estratégias seguintes referem-se a grupos sociais específicos. Em relação às escolas do campo, comunidades indígenas e quilombolas, ressalta-se a importância de se considerar as peculiaridades locais. Ponto fundamental, já que é preciso construir estratégias coerentes com a pluralidade de contextos culturais brasileiros para garantir que todos os estudantes estejam em processo educativo durante a maior parte do dia, sem corromper visões de mundo, hábitos, relações e valores destas comunidades.

O segundo grupo específico mencionado é aquele formado pelas pessoas com deficiência ou altas habilidades. A estas, assegura-se o atendimento educacional especializado complementar. A afirmação do caráter complementar para o atendimento especializado garante a matrícula de todas as crianças e adolescentes nas escolas regulares, alinhando esta meta do PNE com as perspectivas mais atuais da inclusão escolar.

Ampliação da jornada escolar, território educativo, parceria público-privado, articulação intersetorial, multiculturalismo, inclusão escolar. Não são poucos nem simples os temas envolvidos na educação integral. Por isso, mesmo que a meta do PNE não seja sua universalização, está claro que não se trata de uma modalidade e sim, de um novo paradigma educacional.

 

Helena Singer* é socióloga e diretora da Associação Cidade Escola Aprendiz. Ajudou a fundar o Instituto de Educação Democrática Politeia e o Núcleo de Psicopatologia, Políticas Públicas de Saúde Mental e Ações Comunicativas em Saúde Pública da Universidade de São Pauo (NUPSI-USP). É autora de “República de Crianças: Sobre Experiências Escolares de Resistência” e “Discursos Desconcertados”.

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