Políticas colocam em debate direitos femininos

O Brasil mantém taxas preocupantes de mortalidade materna no mundo, segundo a UNICEF (Fundação das Nações Unidas para a Infância), o índice é de pelo menos 68 mortes de mulheres a cada 100 mil partos, sendo a meta das Nações Unidas de 35 para cada 100 mil, até 2015.

O Ministério da Saúde avalia que o falecimento de parturientes (mulheres na fase final da gestação ou que acabaram de dar a luz) poderia ser evitado em 92% dos casos. As principais causas de óbitos são as doenças hipertensivas (23%), infecções generalizadas (10%), hemorragias (8%) e complicações de aborto (8%).

Esses problemas estão diretamente ligados a qualidade na atenção à saúde, a exemplo de um médico que não soube tomar a pressão da paciente, ou pela falta de adesão ao pré-natal, por parte da gestante.

“As hemorragias muitas vezes também estão relacionadas ao problema da pressão assim como pelo alto nível de cesáreas desnecessárias. Por outro lado, boa parte das infecções também diz respeito ao número de cesáreas”, explica Télia Negrão, integrante da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e do conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-Americanas e do Caribe (RSMLAC).

Para mudar esse cenário, o Ministério da Saúde lançou, em março de 2011, o programa Rede Cegonha, por meio do qual promete realizar uma grande força tarefa para melhorar tanto o acesso quanto o atendimento no pré-natal, propõe, ainda, a construção de centros de parto normal e casas da gestante, bebê e puérpera, em pontos estratégicos do país, além de custear o transporte para que as grávidas não abandonem os exames até o final da gravidez.

O programa veio seguido da Medida Provisória 557/2011, assinada no dia 26 de dezembro, que institui o Sistema Nacional de Cadastro, Vigilância e Acompanhamento da Gestante e Puérpera para Prevenção da Mortalidade Materna, que serão agregados ao já existente Sisprenatal, organizado pelo DATASUS. Com a MP as unidades de saúde, tanto públicas quanto privadas, passam a ser obrigadas a informar todos os procedimentos feitos para atender gestantes em risco. Consolidadas as informações, o governo espera melhorar suas ações nesse campo.

Apesar de, aparentemente, coerente, a Rede Cegonha tem sido amplamente criticada por organizações feministas que entendem que o Brasil até reduzirá o nível da mortalidade materna. Mas, sem tratar diretamente das questões de direitos humanos, isso é do aborto, continuará apresentando números alarmantes de óbitos entre mulheres gestantes.

Possível mudança de foco

O próprio Ministério da Saúde estima que ocorram mais de um milhão de abortos induzidos por ano no Brasil. A interrupção da gravidez, em 1996, chegou a ser a principal causa de morte entre o grupo de gestantes e parturientes na Região Metropolitana de Recife.

“Se a mortalidade materna tem um conjunto de causas, o conjunto de causas deve ser abordado. Mas não é isso que o Ministério faz”, pondera Télia. Sua objeção se pauta no conteúdo dos textos da MP 5587/11 e da portaria nº 1.459, que formalizou a Rede Cegonha, onde não são citadas as principais causas da mortalidade materna, os direitos sexuais e reprodutivos, bem como a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao abortamento. Centralizando-se, assim, as discussões no acesso e qualidade de serviços de atendimento à gestante e parturiente.

O Ministério, por outro lado, se coloca como pragmático nessa questão. “Criamos uma medida para sanar os problemas ligados a mortalidade da gestante, apenas isso. Não estamos revogando nenhuma norma ou direitos já estabelecidos anteriormente”, explica Fausto Pereira dos Santos, assessor especial do Ministro da Saúde, reafirmando que os principais motivos de óbito materno estão concentrados na falta de pré-natal e assistência deficiente.

A intenção por trás dessas medidas é atender as Metas do Milênio, e o único objetivo que o país corre o risco de não atender, até 2012, no campo da saúde, é justamente a mortalidade materna.

“É claro que o aborto é uma questão importante, e está sendo tratado de forma específica. Estamos expandido o atendimento ao aborto legal [previstos no Código Penal em casos de violência sexual ou risco de morte da mãe], e continuamos com as intervenções [médicas] pós abortamento, seja ele legal ou ilegal”, defende.

Télia rebate lembrando que não haveria a necessidade da criação de nenhuma medida provisória ou programa se o governo tivesse cumprido as leis e normativas já existentes. E acredita que o país, nos últimos anos, tem se esquivado de debater o problema aborto, depois de anos de avanço nas políticas de saúde da mulher.

“Temos muitos registros de violação dos direitos das mulheres que buscam anticoncepcionais de emergência e não os obtém nos postos de saúde em função de profissionais da saúde, que por considerarem que é uma pílula abortiva, não entregam o medicamento. E ainda existem levantamentos, do próprio Ministério da Saúde, em mais de 700 unidades de serviço em todo o Brasil, mostrando que apenas 10% desses estabelecimentos cumprem toda a norma técnica de atenção humanizada ao abortamento”, provoca.

Os movimentos feministas temem que a implantação da Rede Cegonha resulte na mudança total de foco na Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), ou seja, da concepção dos direitos da mulher para uma visão materno-infantil. Por sua vez, Santos responde que o Ministério em nenhum momento propõe novas concepções.

“Na verdade, a PAISM engloba a mulher enquanto gestante também, assim como nos demais estados de saúde, em relação aos direitos reprodutivos e sexuais. Portanto, do ponto de vista político, de intervenção concreta, não realizamos nenhum desvio no foco que é a atenção integral à saúde da mulher”, conclui.

Até 2014, o Ministério da Saúde investirá cerca de R$ 9,4 bilhões na estratégia da Rede Cegonha. O valor, na visão de movimentos sociais, comprova a mudança de foco do atual governo, uma vez que em 2011 os recursos específicos para financiar pesquisas, capacitação de profissionais para atendimento às vítimas de violência sexual e em situação de abortamento, entre outros, no âmbito da Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher foram de R$ 11,25 milhões.

Histórico recente das conquistas e perdas feministas no campo da saúde, segundo Télia Negrão

Durante a Conferência Internacional da ONU sobre População e Desenvolvimento, realizada em setembro de 1994, no Cairo (Egito), houve uma revisão da ideia que se tinha sobre a saúde e direitos das mulheres, saindo de uma visão materno-infantil centrada no controle dos corpos das mulheres (controle demográfico), para o reconhecimento da saúde sexual e reprodutiva como parte dos direitos humanos e da saúde integral das mulheres. Inspirado por essa linha, o governo sanciona, em 1996, a Lei nº 9.263, que regulamentava o planejamento familiar no Brasil.

Em 2003, a médica pediatra Maria José Oliveira de Araujo passa a coordenar a Área Técnica de Saúde da Mulher, do Ministério da Saúde, ocorrem os maiores avanços, continua Télia. Em sua gestão foram elaboradas normativas técnicas de atenção humanizada ao abortamento, “junto com os movimentos de mulheres e com a comissão intersetorial de saúde da mulher do Conselho Nacional de Saúde”, destaca.

Em 2005, o governo assume a iniciativa de discutir a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação ou em qualquer momento, em caso de risco de vida da mulher ou má formação do feto, e cria a Comissão Tripartite para debater o tema, formada por representantes do governo federal, entidades empresariais e sindicatos.

Em 2007, na visão das feministas, inicia-se a fragilização dos direitos da mulher na saúde, a partir de ofensivas dos setores conservadores e criação do Estatuto do Nascituro que reconhece o feto como ente de direitos civis desde o momento de sua concepção e “veda ao estado ou a particulares causar dano ao nascituro em razão de ato cometido por qualquer de seus genitores”. A proposta foi aprovada em maio de 2010 na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, mas espera parecer na Comissão de Finanças e Tributação da mesma casa, porque propõe que o Estado assuma os custos da criação da criança em casos quando a mãe não consegue reconhecer o pai.

Em 2010 o movimento entende, novamente, um novo retrocesso quando o então ministro José Gomes Temporão cria o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, e passa a responsabilidade de sua gestão ao Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Cruz), tirando essa obrigação da Área Técnica de Saúde da Mulher. Em resposta, o ministro declarou, na época, que a nova portaria era clara e estabelecia que o IFF atuasse apenas como órgão auxiliar a Área Técnica.

Anos 2011/2012. Os movimentos feministas sabem, com a eleição de Dilma, que o tema da Saúde da Mulher será tratado de uma perspectiva materno-infantil.

Saiba mais, na matéria Prós e contras do programa Rede Cegonha


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