Por que o debate sobre descriminalização do aborto demora a avançar no Brasil?

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Manifestação a favor da descriminalização do aborto, no Rio de Janeiro, em 11 de novembro de 2015. CHRISTOPHE SIMON / AFP

Enviado por Jackson da Viola

do RFI

Por que o debate sobre descriminalização do aborto demora a avançar no Brasil?

por Daniella Franco

A descriminalização do aborto foi tema de audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) nos dias 3 e 6 de agosto. O debate da ação ADPF 442 – proposta pelo PSOL, com assessoria técnica da Anis Instituto de Bioética – abriu espaço a ONGS feministas, entidades pró-vida, profissionais e órgãos de saúde nos últimos dias. Mas a discussão não parece ter esclarecido a sociedade sobre uma questão que ainda gera tanta polêmica e demora a evoluir no Brasil.

“Não é direito de ninguém matar um inocente. Se não quer ter filhos, não os faça”, diz um internauta na publicação sobre a audiência pública na página do STF no Facebook. “Mulheres, apenas fechem as pernas”, diz uma usuária em um post da revista Marie Claire Brasil sobre o aborto. Nas redes sociais, dezenas de memes circulam comparando a vida de fetos aos de animais abatidos em touradas ou informações sobre falsas pesquisas. Uma delas diz que, se a interrupção da gravidez for legalizada, 90% dos bebês serão abortados e a população brasileira será brevemente extinta.

O debate no Brasil sobre uma questão que na França é considerada intrínseca à liberdade pessoal e à saúde da mulher intriga a imprensa francesa. A revista Marianne avalia a discussão como “crucial”, em um momento em que “o Brasil teme um endurecimento contra o aborto com uma proibição para qualquer caso”. No entanto, a matéria lembra que a possibilidade de descriminalização do aborto no país é praticamente nula, com a oposição de 64% dos brasileiros, influenciados pelo domínio da igreja católica ou pela ascensão dos movimentos evangélicos.

Já o jornal Le Figaro lembra que, atualmente no Brasil, o aborto é autorizado apenas em gravidez ocorrida devido a estupros, que comprometa a vida da mãe ou em casos de anencefalia. “Fora desses casos, a mulher que recorre à interrupção voluntária da gestação corre o risco de ser condenada a três anos de prisão”, destaca.

Para o jornal Le Monde, a realidade do aborto no Brasil “é alarmante”. “Entre 500 mil e um milhão de interrupções de gravidez acontecem a cada ano na ilegalidade, 250 mil mulheres são hospitalizadas devido a complicações e mais de 200 morrem praticando o aborto a cada ano”, lembra o diário.

 

Na França, a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) – foi legalizada em 1975 e vale para todos os casos. A líder da causa, Simone Veil, é uma das personalidades modernas mais admiradas pelos franceses. Falecida em 2017, seus restos mortais foram levados neste ano ao Panteão, onde repousam dezenas das mais importantes figuras da História do país.

Debate anacrônico

Por que no Brasil, país ocidental, maior economia da América Latina, o debate acontece tão tarde e é crivado de preconceitos e desinformação? Para a advogada Carla Vitória, integrante da Sempreviva Organização Feminista, o conservadorismo religioso é um grande responsável pela inflexibilidade da boa parte da população sobre a questão, “que é uma das identidades do Brasil” e que, segundo a militante, vem avançando nos últimos anos.

“Existem diversos projetos de lei, defendidos por figuras políticas importantes no Congresso Nacional que visam restringir o aborto em casos em que ele é legal hoje – como o Estatuto do Nascituro e a ‘Bolsa Estupro’ – para evitar que uma mulher interrompa uma gravidez que aconteceu porque ela foi violentada”, ressalta Carla Vitória.

Outra razão apontada pela advogada é a questão econômica. “Se pegarmos o mapa do mundo, quase todos os países que chamamos de ‘sul político’ criminalizam o aborto; na América Latina, as únicas exceções são Cuba e Uruguai. Já no ‘norte político’, a situação se inverte. O controle da maternidade diz muito sobre a imposição de que as mulheres tenham mais filhos e há toda uma questão econômica atrelada a isso”, ressalta.

Heloisa Righetto é mestranda de Estudos de Gênero da Universidade de Goldmisths, em Londres, e co-fundadora da plataforma Conexão Feminista. Segundo ela, o conservadorismo da sociedade brasileira, aliado a um imobilismo, também impede que o debate sobre a questão evolua. “Muitos ativistas insistem que o aborto, se for legalizado, será opcional. Mas as pessoas que são contra já sabem disso. Elas simplesmente acham que interromper a gravidez é imoral e têm medo de confrontar essa ideia, porque sempre fomos ensinados que abortar é errado e elas não querem lidar com esse conflito”, avalia.

O machismo da sociedade brasileira também emperra a evolução das discussões sobre uma prática que, mesmo sendo ilegal, é realizada por uma a cada cinco mulheres até o final da vida reprodutiva, aos 40 anos, segundo estudo de 2016 do Anis Instituto de Bioética.

“Há a ideia de que a principal função das mulheres na sociedade é a reprodução, além da culpabilização delas por exercerem sua sexualidade livremente. A coisa mais comum nos argumentos contra a legalização do aborto é que se a mulher teve uma relação sexual consentida e engravidou, ela tem que assumir as consequências. Como se a maternidade fosse um castigo por essa mulher ter tido uma relação sexual”, diz Carla Vitória.

A militante lembra que a maior parte dos defensores da manutenção da criminalização do aborto no STF foram homens. “Aqui no Brasil temos uma população de 52% de mulheres e apenas 9% delas estão no Congresso Nacional. Ou seja, os representantes políticos da sociedade são homens, da classe média, brancos. Tudo isso interfere não apenas no discurso contra a legalização do aborto, mas no direcionamento das pesquisas sobre quem são as mulheres que abortam e quais são as condições de vida delas. Isso é investigado quando há mulheres na ciência e em espaços de poder”, salienta.

Um machismo que não deixa de atingir e ser difundido pelas próprias mulheres. Há alguns meses, a edição brasileira da revista Marie Claire vem publicando uma série de reportagens defendendo a descriminalização do aborto no Brasil. Em suas postagens, leitoras se manifestam criticando de forma controversa as próprias mulheres que interromperam ilegalmente suas gestações. “O triste é saber que mulheres querem ‘essa liberdade’ para viver na libertinagem”, diz uma internauta em uma das publicações da revista no Instagram.

Para Heloisa Righetto, essas mulheres também são vítimas da própria opressão machista que vivem diariamente. “Elas perpetuam algo que para elas é normal. É uma espécie de Síndrome de Estocolmo. Conseguir identificar e se separar daqueles que as oprimem é difícil e doloroso, porque são os homens das vidas delas que fazem parte disso. Desta forma, é perigoso taxar as mulheres como machistas porque, com isso, cria-se mais um preconceito contra elas”, avalia.

Evolução das mentalidades

Apesar da lentidão para o avanço das consciências em relação aos direitos das mulheres no Brasil, o debate serve para, ao menos, sensibilizar a população sobre a questão, avaliam as duas ativistas entrevistadas pela RFI.

“É extremamente necessário discutir o aborto no Brasil. Ele é uma realidade, é um fato social. Independentemente de as pessoas serem contra ou a favor, isso acontece, principalmente entre as mulheres pobres e negras que têm que recorrer a clínicas clandestinas e a médicos que colocam em risco a saúde, integridade física e a vida delas”, salienta Carla Vitória.

“Eu estou otimista. Falar é bom porque faz os pensamentos evoluírem”, afirma Heloisa Righetto. A co-fundadora do Conexão Feminista diz que se surpreendeu com mulheres religiosas defendendo a descriminalização do aborto no STF. “Vejo esse debate como muito positivo. Não lembro de uma discussão dessa dimensão ter acontecido no Brasil até hoje desta forma, tomando conta das redes e mobilizando tantas pessoas”, conclui.

Não há prazo para a ministra Rosa Weber, sorteada para ser a relatora da ação, apresentar seu parecer sobre a audiência pública. O relatório do debate será encaminhado por ela aos outros ministros do STF, e não tem data para votação. A decisão dos magistrados não tem poder de decisão, mas pode ser um primeiro passo em direção de uma futura descriminalização.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

26 Comentários

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  1. Liberdade individual

    Hoje tem manifestação na Argentina e aqui também pela liberização do aborto naquele Pais. Estamos apoiando as argentinas e esperamos o dia em que o Congresso tera a coragem suficiente para colocar essa questão em pauta e votação, pois se depender da sociedade brasileira, isso não sera feito tão cedo por tudo o que foi dito no artigo.

      1. A maioria dos brasileiros é

        A maioria dos brasileiros é contra. Eu acho que há espaço pra mudança. Mas tratar a todos que discordam como “idiotas” é um péssimo passo para conseguir avanços.

  2. A mais importante de todas as questões

    Todas as questões discutidas sobre a legalização do aborto são importantes, mas há uma única que importa sim  muito mai que todas as outras:

    O Feto é um ser humano vivo. O feto não é parte da mãe, não é parte do corpo da mãe, não é como um braço, ou um rim. O feto, ainda que dentro do corpo da mãe, ainda que formado a partir de matéria da mãe e dependente temporariamente da mãe, o feto é outra pessoa, outro indivíduo.

    Discuto isso, sem recorrer a religião. è apenas um fato. O feto é outro ser humano diferente da mãe.

    Qual tipo de problema ou necessidade pode justificar uma pessoa matar outra? Qual tipo de valor é igual ou maior à vida?

    Exceto se a mãe corre risco de vida (pois aí é a vida dela contra a vida dele, e são valores iguais), não há nehum outro problema ou valor que se iguale ao direito à vida. Abro uma exceção ao aborto em caso de estupro, pois se trata de um horror tão grande, que entendo e respeito que nenhuma mulher tenha que carregar uam gestação fruto disso.

    Abortar é literalmente matar outro ser humano vivo e diferente de quem aborta.

    Miséria, pobreza, dignidade, dificuldades, constrangimentos, nenhum destes problemas e valores está no mesmo nível do valor de uma vida. E as próprias mulheres que abortam concordam comigo, pois elas próprias não estão dispostas a tirar SUA PRÓPRIA vida por este mesmo problema causado por miséria, pobreza, dignidade ou constrangimentos (mas estão dispostas a tirar a vida de um outro…)

    E antes que digam que mães ricas abortam, mães pobres morrem em clínicas imundas: solução aqui é atacar a ilegalidade, caçar todas as clínicas, castigar igualmente as ricas e não só as pobres.

    Aborto é matar outro ser humano, ainda por cima,  inocente. Me mostrem algo que justifique tal crime.

    1. porque talvez esse assunto

      porque talvez esse assunto deva ser discutido e conduzido por mulheres, que sabem muito bem o que é uma gravidez. e muitas também sabem o que é um aborto.

      esse é o único caso em que apóio o estado mínimo: não cabe ao Estado dizer à mulher o que fazer com seu próprio corpo.

      1. só que o corpo a ser morto não é o corpo da mulher

        O corpo a ser morto não é corpo da mulher: e´o do bebê, o qual é outro indivíduo diferente da mulher. A mulher não cogita matar seu próprio corpo, só o corpo do bebê preso em seu ventre. Simples assim.

        Porque não pergntam ao bebê o que ele quer seja feito com seu corpo? Responderão pra mim: “seu ignorante, o feto nesta idade não consegue pensar nem responder”, ao que eu respondo: se o feto conseguisse discernir, epnsar e responder, acaso permitiria que o matassem?

    2. Nao se trata de pessoas, mas de embrioes SEM VIDA CEREBRAL

      O critério de vida para um ser humano é vida cerebral, tanto que quem ainda respira, tem o coraçao batendo, etc., mas nao tem mais vida cerebral é considerado legalmente morto e pode doar órgaos. Embrioes ainda nao têm o cérebro formado, nao sao pessoas. O que está sob debate é a permissao do aborto até 12 semanas.

      1. Esse argumento não é bom. As

        Esse argumento não é bom. As pessoas com morte cerebral são declaradas mortas pois não há possibilidade de reversão do quadro. É o inverso do que acontece com um feto. 

        1. Mas nao é uma pessoa ainda, só um projeto

          E que nao vive independentemente do corpo da mae. Nao há por que a vida da mae ser ameaçada, seja física seja psicologicamente, por um monte de células que ainda nao é um ser sentiente.

          1. Sim. Não sou contra a
            Sim. Não sou contra a descriminalização, mas tenho várias ressalvas. E me preocupam alguns argumentos que podem ser facas de dois gumes. Esse do “não vive independente do corpo da mãe” é péssimo pois pode ser usado pra justificar aborto em qualquer idade gestacional.

          2. Nao é verdade. Após 6 meses o nascituro sobrevive em incubadeira

            E além do mais ninguém está defendendo o aborto com esse tempo de gravidez, a nao ser nos casos já permitidos (aborto, risco de vida p/ a mae e anencefalia do feto). O que se defende é o aborto ATÉ 12 SEMANAS DE GESTAÇAO. Nao misture o que nao é pertinente para nao ajudar a confusao…

          3. “…por um monte de células…”

            Você descreveria seu próprio filho em seu ventre como mero “monte de celulas”?

            Veja bem, um ponto central na discussão sobre o aborto é “a partir de que momento, as células passam a ser um ser humano, pois um monte de células não tem personalidade, dignidade e direitos, mas um ser humano tem personalidade, dignidade e direitos”.

            Agora, alguém sabe COM CERTEZA ABSOLUTA E INQUESTIONÁVEL quando o embrião se torna Humano? aos 6 meses? Aos 3 meses? N a concepção? Quando a criança se torna auto suficiente? Percebem que esta é uma resposta que a ciênica nunca definiu definitvamente? Só há teorias e conjecturas? Aliás, o que é ser humano? é ter consciência? basta ter sentimentos e sensações? Basta estar respirando sozinho e autonomamente?

            Há um ramo científico e filosófico que acredita que a Humanidade começa quando se forma a capacidade de raciocínio, mas se trata apenas de uma vertente, não dos senhores da verdade absoluta. Portanto podem estar errados, tanto quanto certos.

            Agora vem o x da questão: se não temos certeza de quando surge a vida, e de quando exatamente surge um ser humano, como podemos decidir arbitrariamente quem é humano e quem é monte de celulas? Teu critério vale mais que o meu? porque baseado em que? Tem cienteistas renomados que defendem tal teoria? Pois também tem cientistas renoamdos que defendem aminha teoria? E isto tudo só mostra como não temos certeza de nada.

            E, não tendo certeza de nada, arriscaremos matar seres humanos? Na dúvida, ele não é humano? Se não temos certeza, posso livremente escolher? Ora, se há possibilidade de vida, e se não temos certeza, temos que proteger o valor maior, e sermos cautelosos.

            Ora, se a prefeitura precisar demolir a porcaria de um prédio abandonado, mas houver suspeita de que haja bichos silvestres lá dentro, a lei e o ibama obrigarão a prefeitura a , primeiro, ter certeza de que não vão matar nenhum bicho silvestre, averiguando e investigando tudo. Não permitirão sair demolindo o prédio, na dúvida se matarão bichos silvestres. Isto é a lei vigente.

            E você quer me fazer crer que seres humanos em gestação são menos valiosos que porcarias de bichos silvestres? Que nocaso deles, a dúvida sobre haver vida em risco ou não é algo menor a ser desprezado?

            Monte de células… monte de células… ainda bem que não saí de sua barriga…

            Eu já foi monte de células um dia. Voce também ja´foi um punhado  de células descartável. Quer dizer, qeu, um dia, eu não tive valor e poderiam ter me matado e descartado como camisinha usada. Tinha um certo país, liderado por um certo cara que também gostava de separar pessoas entre dignas e protegidas e descartáveis e sem valor. Era a alemanha nazista de um tal de hitler. Conheces?

          4. O critério é claro: nao tem vida cerebral; nao é só “nao pensa”

            Ate pelo menos a vigésima semana – e só se está defendendo o direito incondicional ao aborto até as 12 semanas – o embriao/feto nao vê, nao ouve, nao sente prazer nem dor, nao é um ser humano, é no máximo uma possibilidade de vir a ser. Se vc acha diferente por motivos religiosos, nao faça (bom, vc nao poderia mesmo, aí é fácil falar…), mas nao tente impor suas crenças aos demais, este é um país laico.

            E os contrários só fazem esse escândalo todo quando o descarte de embrioes é por aborto, no fundo a grita é contra a sexualidade das mulheres. Em qualquer clínica de fertilizaçao in vitro sao fecundados mais embrioes do que os que podem ser implantados. Os restantes sao descartados. Vc quer tb proibir a fertilizaçao in vitro? Vc é bem capaz, mas… tenha senso de ridículo.

          5. comentários finais e tchau

            Não estou tentando impor minhas crenças: estou relembrando que minhas crenças e suas são particulares e só podem ser impostas a nós mesmos. Se vc aborta um outro ser vivo diferente de voce baseada em suas crenças pessoais de que ele não é indivíduo, logo é voce que está tentando impor suas crenças sobre outros…

            Eu não estpu tentando impor minhas crenças nem sobre as suas nem sobre as de ninguém: estou isto sim reconhecendo que são todas crenças e apenas crenças ( e não fatos consumados) e portanto nenhuma pode ser usada como definitiva. O aborto é criminoso pois, se nenhuma crença é certa e garantida, logo, o correto é sermos cautelosos e não atacarmos algo talvez seja sim um ser  vivo. 

            Ora, dizer que se não enxerga,não vê, não ouve, não sente prazer nem dor, logo não é humano e pde ser descartado e morto, eu já vi muitos casos de pessoas em estado vegetativo extremo, mas que eram tidos como vivos, protegidos pela lei, e, se alguém tentasse matá-los, seria processado por homicídio de incapaz. Viu como este negócio de tentar achar critéris pra definir o que é humano e o que não é se trata de algo completamente incerto, duvidoso, e,a cima de tudo, perigoso e que pode levar a barbaridades ? O feto pode ser ums er vivo ou não, pode ser um indivíduo ou não. na dúvida, por cautela, proteja o bem maior: a vida.

            Ninguém sabe exatamente quando a vida atuornoma começa, ninguém pode afirmar categoricamente quando os tais montes de células viram um ser humano. E a fase transitória entre mero amontoado de celuals e quando há um indivíduo humano? nessa fase emq eu se está no meio do caminho, se é meio humano? se pode matar pela metade? Talvez a condição nem um nem outro não permita matar, só torturar até um certo limite (…).

            Se não sabemos quando surge um ser humano, e pode sim já haver ali um ser humano, então sejamos cautelosos e respeitemos o direito à vida como bem maior, principal e inalienável.

            Olhe anarquista, já vi muitos comentário seus, e geralmente gosto e concordo muito, mas este assunto pra mim é simplesmente algo que enerva de tão absurdo!  Nãos e coloca o direito particular e os interesses particulares de uma pessoas sobre o direito a vida de outro! E, se há possibilidade real de haver vida, se proteja a vida antes de tudo, pois tudo mais é menor.

          6. Isso é blablablá e contém INVERDADES também

            Um embriao de 12 semanas NAO É UM SER VIVO, é apenas uma promessa; menos ainda um ser humano vivo. Sao suas crenças sim que vc está tentando impor sobre quem nao as tem e nao precisa segui-las. Nao é verdade que tudo seja “menor” que a simples promessa de vida de um embriao: A VIDA DA GESTANTE, uma mulher já adulta e criada, É MUITO MAIS IMPORTANTE. Esse papo de quando a vida começa é papo para boi dormir, papo religioso.

            E nao é verdade que alguém em vida vegetativa extrema seja considerado vivo: só se, mesmo em como, ainda tiver vida cerebral. Se nao pode doar órgaos ou ter os aparelhos desligados. Isso já é considerado pela lei.

          7. Errado. Um embrião é um ser
            Errado. Um embrião é um ser vivo desde muito antes das 12 semanas. Você pode defender a descriminalização do aborto sem ter que apelar para argumentos assim.

            Há um ônus em se defender a descriminalização do aborto. E ele é aceitar que alguns seres vivos serão mortos, mas que isso seria um “mal menor” diante da possibilidade de morte/dano psicologico para as mulheres. E isso nada tem de fundamentalismo religioso.

          8. Isso é PETIÇAO DE PRINCÍPIO (erro lógico básico)

            Vc primeiro decreta que o embriao é um ser vivo — o que ele NAO É — e depois diz a defender a descriminalizaçao do aborto é aceitar a morte de alguns seres vivos… Só seria um ser vivo exatamente para o fundamentalismo religioso. E claro que a “morte” de um embriao é um mal muito menor (se é que é mal…) do que a possibilidade de morte dano para a gestante.

  3. Mergulho nas trevas

    Fui casado com uma médica gineco-obstetra (1982-1994). Realizou dezenas de abortos humanitários. Humanitários porque pro bono, ou seja, jamais cobrou nada por nenhum deles. Questão de princípios. Aborto é questão de saúde pública. Ponto. 

    E como se davam esses abortos humanitários? Na segurança e assepsia dos hospitais e santas casas, anestesista, enfermagem e eventualmente médico auxiliar. Na guia de internação, o médico(a)  informava tratar-se de “cureta de prova”, motivada por sangramento. E ainda escrevia “não pagante”, ou seja, totalmente às expensas do Estado. Ainda não havia o SUS.

    Todos ali dentro do centro cirúrgico sabiam do que se tratava, porém havia um pacto de reserva e silêncio. Nenhum comentário ou questionamento. O médico era soberano. Era uma prática da época. Outros tempos. Freiras limitavam-se a fornecer amparo espiritual a moribundos e evangélicos eram minoria no país, ainda não tinham botado a cabeça de fora. Não se metiam no que não lhes era da conta. 

    DE lá para cá, o que mudou? Tudo. Médicos, atualmente, não se arriscam mais, não é de hoje, a realizar abortos humanitários, se pelam de medo. Correm o sério risco de chegar no hospital de carro e sair de camburão. E algemados. Denunciados por um enfermeiro (a) evangélico ou fundamentalista católico, ligando pelo celular, do corredor do hospital, para o pastor ou o padre fanático. E ainda vão aparecer no Datena. 

    Quarenta anos depois, o país piorou, mergulhou nas trevas do obscurantismo. Uma sociedade medieval nos costumes e na legislação. Cada vez mais. 

    Aborto não é da conta das igrejas, qualquer uma, muito menos do Judiciário, mas exclusividade do LEGISLATIVO. E DIREITO INALIENÁVEL DA MULHER. Mas o país está de cabeça pra baixo. Judicializado na Política e politizado na Justiça. 

    PS.: Lembram-se da Mônica Serra e o famoso e inacreditável “…Dilma vai matar as criancinhas” da campanha de 2010? Aguardem o mesmo para a campanha deste ano, o mesmo para o Haddad e a Manu. Só que vai circular pelo WhattsApp. Milhares de memes da dupla Haddad/Manu “matando” fetos a porretadas. 

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=0bHet5jZtrs%5D

     

  4. Fácil: A Igreja precisa de

    Fácil: A Igreja precisa de mais seguidores e os escravocratas precisam de mais escravos, um feto abortado é um seguidor e um escravo a menos. E deixar a mulher decidir se ela quer levar a gravidez adiante é “perigoso” porque dá para ela o poder de decidir quem deixa descendentes. E os escravocratas acreditam que esse poder é exclusividade deles.

    E não adianta pedir coerência dessa escória escravocrata e religiosa, lembrando-os que o feto indesejado no futuro vai se tornar um filho indesejado e depois uma pessoa indesejada. Imaginam inferno pessoal pior do que nascer e crescer rejeitado pela própria mãe?

  5. O procedimento
    EDIÇÃO 141 | JUNHO_2018

    questões femininas

    O PROCEDIMENTO

    Como Rebeca Mendes se tornou um símbolo da luta pela descriminalização do aborto

    MÔNICA MANIR  “As pessoas ainda me perguntam o que senti depois do aborto. Falaram barbaridades – que eu ia ficar deprimida e com peso na consciência, que o espírito da criança ia me perseguir. Mas a verdade é que me senti aliviada”“As pessoas ainda me perguntam o que senti depois do aborto. Falaram barbaridades – que eu ia ficar deprimida e com peso na consciência, que o espírito da criança ia me perseguir. Mas a verdade é que me senti aliviada” FOTO: FLAVIA VALSANI_2018 

    Rebeca Mendes pegou a bolsa do chão e, risonha, subiu ao palco. Dentro de alguns minutos, iria compor uma das 302 mesas do Festival Path, em São Paulo. O evento anual – que, desde 2013, se propõe a discutir inovação e diversidade por meio de shows, palestras, filmes e exposições – ocorreu no mês passado, durante um fim de semana. Entre os trinta espaços do bairro de Pinheiros ocupados pelo festival, destacava-se o Instituto Tomie Ohtake, justamente onde aconteceria o debate vespertino de que Mendes iria participar. Alisando a barriga com oito meses de gestação, a mediadora Maíra Liguori, diretora da ONG feminista Think Olga, comunicou à plateia que chegara o momento de tirar “a capa de nebulosidade” que ainda encobre um dos temas mais caros às mulheres do país: o direito de manter ou não uma gravidez. Olhou carinhosamente para a jovem debatedora e afirmou: “Se um dia houver uma lei que descriminalize o aborto no Brasil, teremos que chamá-la de Lei Rebeca Mendes.”

    A moça sorriu, pronunciou um simpático “Magina!” e acomodou o microfone no colo enquanto deixava o pensamento voar. Thomas, seu filho mais velho, certamente gostaria dos iogurtes que a mãe ganhara na entrada do instituto e que guardou no fundo da bolsa. Não, ninguém pode dizer o que uma mulher deve fazer com o próprio corpo. Felipe, o caçula, estava com febre e dor de garganta. Será que o pai do menino lhe ministrara as gotas de ibuprofeno?

    É entre esses dois polos – o direito de interromper uma gestação saudável e as atribuições da maternidade – que trafega a paulistana de 31 anos. Desde novembro de 2017, quando requisitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) a prerrogativa de abortar legalmente e com segurança, Rebeca Mendes Silva Leite vem expondo por todo o Brasil os percalços de assumir tal posição. Nas palestras e reportagens de que participa, ninguém lhe pede informações estatísticas. Não lhe perguntam quantas mulheres abortam clandestinamente no Brasil, quantas morrem por causa do procedimento e quantas sobrevivem com prejuízos físicos ou emocionais. Em geral, o que seus interlocutores desejam saber é de onde a moça tirou coragem para colocar em pauta um assunto proibido até na mais íntima das rodas femininas.

    O script se repetiu no Tomie Ohtake. A debatedora recordou as ofensas que sofreu pelas redes sociais e a reação dos filhos à notícia de que não teriam um irmãozinho. Também explicou por que e como acabou fazendo o aborto na Colômbia. Ao final, ovacionada por uma plateia jovem, de homens e mulheres, ajeitou a bolsa no ombro, examinou a quilométrica programação do festival e apontou uma mesa que cogitava acompanhar: “O mundo dividido: A importância da tolerância e da convivência.” Pensou melhor e desistiu de vê-la. Preferiu aproveitar o resto da tarde para espairecer.

    Seis meses antes daquele fim de semana, na noite de 13 de novembro de 2017, Rebeca Mendes encarava o teste de gravidez sobre a pia do banheiro. Em poucos segundos, confirmaria se o atraso na menstruação era o que temia ser. “Mãe!”, chamou Felipe. Foi o tempo de responder não lembra o quê ao menino e lá estava a cruz no visor do exame. O teste se mostrara tão rápido quanto o Super-Homem, o Homem-Aranha e toda a constelação de heróis que povoa a porta da geladeira e as paredes da casa dela. Cruz azul. Positivo. Mendes engravidara pela terceira vez.

    Em dez dias, ela entraria com o pedido no STF e se tornaria a primeira brasileira a requerer um aborto legal mesmo sem se enquadrar numa das três condições que o Código Penal estabelece para autorizar o procedimento. A moça não corria o risco de morrer em virtude da gravidez, sua gestação não derivava de um estupro e, àquela altura, ainda não era possível saber se o feto sofria de anencefalia – má-formação congênita do cérebro. No entanto, o fato de a gestante sentir um abismo sob os pés ao constatar o resultado do exame lhe pareceu razão mais que suficiente para acionar a Justiça. “Essa gravidez não podia vir em pior hora”, lamentou.

    A “pior hora” já durava certo tempo. A mãe de Thomas, 9 anos, e Felipe, 7, fazia malabarismos para equilibrar o orçamento doméstico com duas fontes de renda mensais: a pensão do ex-marido, pai dos meninos, que variava de 700 a 1 mil reais, e o salário de 1 200 reais, fruto de um trabalho provisório no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. Só o aluguel da modesta casa em que a família vivia abocanhava 600 reais. Restavam, ainda, os gastos com alimentação, luz, água, roupas, transporte, remédios… Não bastasse, o emprego temporário findaria em três meses.

    De olho num futuro melhor, Mendes cursava o quinto semestre de direito numa faculdade particular, graças a uma bolsa integral do Prouni, o Programa Universidade para Todos. Diferentemente de quando trabalhava com telemarketing ou faxina, o serviço no IBGE, como pesquisadora do Índice de Preços ao Consumidor, lhe possibilitava uma carga horária flexível, ainda que puxada. Ela conseguia levar os garotos à escola pública, por volta das 13 horas, e buscá-los no fim da tarde. Depois de deixar as crianças em casa, ia para a faculdade. Os meninos acabavam passando algum tempo sozinhos, tanto pela manhã quanto à noite.

    O celular de Mendes estava programado para vibrar a cada quinze minutos. Mal sentia o tremor do aparelho, a jovem mandava um alô à duplinha. Queria saber o que jogavam no videogame, se tinham comido e por que, afinal, ainda não haviam tomado banho. “O lema de quem se diz pai dos meus filhos é ‘Eu já pago pensão, cuida você’, então fica tudo comigo”, costumava reclamar.

    De qualquer maneira, assim que atestou o resultado do exame naquela segunda-feira de novembro, ela saiu em direção à casa do ex, a uns 100 metros da sua. Ambos moravam em Ermelino Matarazzo, distrito pobre da Zona Leste paulistana, notório por abrigar o Parque Ecológico do Tietê e pela carência de empregos. Segundo a prefeitura, 97% da população local não trabalha ali, o que transforma a região numa espécie de cidade-dormitório.

    A estudante e Vanderlei Silva Junior, de 28 anos, se encontraram na rua. Ela não fez rodeio. Contou logo o resultado do teste, e o rapaz se alarmou. “Parecia que era ele quem iria parir”, recordou Mendes. Formado em direito, Junior ganha a vida como oficial da Defensoria Pública num fórum de São Paulo. Embora separados, os dois tiveram uma recaída, mas não usaram camisinha na ocasião, porque a estudante menstruara fazia pouco tempo. Ela havia suspendido as injeções trimestrais de contraceptivo em função de um ganho de peso indesejado. Pretendia substituí-las imediatamente por um dispositivo intrauterino, o DIU. Mas a ginecologista que a atendeu no posto de saúde recomendou, primeiro, um ultrassom transvaginal. Só depois desse exame é que Mendes poderia adotar o novo método anticoncepcional. Enquanto aguardava uma data para o ultrassom, acabou engravidando.

    “Assim que recebi a notícia, falei que a escolha de abortar era totalmente da Rebeca, o corpo é dela”, disse Junior na sala do sobrado onde morava, o notebook sobre as pernas em posição de lótus. Ele ostentava um topete parecido com o de Elvis Presley e um bigode grosso. “Rebeca pode achar que não, mas sempre apoio o que ela decide.” O casal, que não tem religião, permaneceu junto por sete anos, entre idas e vindas. Embora fosse praticamente vizinho dos filhos, o rapaz já havia passado meses sem visitá-los.

    Na própria segunda-feira, Junior e a ex começaram a pesquisar na internet as opções para interromper a gestação. Caíram no Aborto na Nuvem, site que vendia comprimidos de misoprostol. Mais conhecido como Cytotec, um de seus nomes comerciais, o medicamento foi aprovado pelo governo dos Estados Unidos na década de 80 para tratar gastrite e úlceras estomacais. Por provocar contrações uterinas, também passou a ser usado em clínicas e hospitais com o objetivo de induzir o parto ou o aborto nos casos previstos em lei.

    No Brasil, não é possível achá-lo em farmácias. Pelo menos, não deveria ser. Desde 1998, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) limita a oferta de remédios com o princípio ativo do misoprostol a instituições de saúde credenciadas. Ocorre que o potencial abortivo da substância caiu nos ouvidos do povo, e o Cytotec, há tempos, é vendido clandestinamente no país. Num artigo publicado em 2012 na revista Ciência & Saúde Coletiva, a antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília, e o médico Alberto Madeiro, professor da Universidade Estadual do Piauí, destrincharam algumas características desse comércio.

    Ao avaliar dez casos de venda ou uso irregular do misoprostol que chegaram ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios entre 2004 e 2010, os pesquisadores concluíram que quem consumia o produto era, na maioria, mulheres de 23 a 35 anos. Elas utilizavam o medicamento por conta própria ou com a orientação dos vendedores, que se dividiam em duas categorias: os balconistas de farmácia e os fornecedores que atuavam via internet. As ações judiciais e os inquéritos avaliados pelos professores não revelavam como os negociantes conseguiam a droga.

    Entre os citados nos processos, havia duas mulheres que morreram ao tentar interromper a gravidez combinando o Cytotec com práticas invasivas, como a introdução de uma mangueira plástica na vagina. Ambas teriam demorado a buscar auxílio médico por medo de que as denunciassem à polícia.

    Em março de 2017, a Anvisa proibiu o Aborto na Nuvem de vender misoprostol. Mesmo assim, em novembro daquele ano, Mendes e Junior o encontraram ativo e oferecendo a cartela com seis comprimidos por cerca de 650 reais. Pedia-se apenas o registro de um celular para que a gestante fizesse uma consulta online com um médico. Se confirmasse a gravidez, o doutor enviaria um o.k. por SMS, de “forma rápida, segura e discreta”. A interessada poderia, então, adquirir o medicamento, que seria remetido para o endereço desejado.

    Um segundo site, o Cytotecaborto.org, comercializa até hoje o misoprostol, mas o contato é via WhatsApp (com DDD do Rio Grande do Sul). A plataforma alerta que “99% dos vendedores são golpistas”: ou não entregam o produto, ou mandam um falso. Proclamando-se “vendedor de verdade”, o site prescreve a dosagem do medicamento conforme o tempo de gestação: de uma a quatro semanas, quatro comprimidos; de cinco a sete semanas, seis comprimidos; e por aí vai até, no máximo, dezesseis comprimidos. “Quanto mais unidades, mais certo descer”, garante. Metade da dose deve ser colocada embaixo da língua e metade introduzida na vagina com o dedo, o mais próximo possível do útero. Após o sangramento, a mulher precisaria beber 30 mililitros de água inglesa três vezes ao dia, por uma semana. O remédio fitoterápico, comumente receitado para abrir o apetite e facilitar a digestão, ajudaria a “limpar o organismo”.

    Um terceiro site, o Brasil Saúde, esclarece que o misoprostol se destina ao tratamento de gastrite ou úlceras. “Se você vai usar para outros fins, é por sua conta e risco”, adverte, reiterando que não se responsabiliza pela má administração da substância. Em seguida, fornece a posologia da droga, conforme as semanas de gravidez. A cartela com quatro comprimidos sai por 400 reais.

    Ao longo do mês passado, piauí enviou mensagens para os três sites na tentativa de obter mais informações sobre o funcionamento deles. Nenhum respondeu.

    “Desisti do Cytotec porque fiquei com medo de sangrar até morrer”, relembrou Mendes. Na cabeça dela, também martelava uma aula que tivera meses antes na faculdade, a respeito das punições que incorrem sobre as mulheres e os médicos que praticam um aborto ilegal. O artigo 124 do Código Penal prevê detenção de um a três anos àquela que realizar o procedimento em si mesma ou consentir que outrem o faça. O artigo seguinte, 125, se estende ao agente que causar o aborto sem o consentimento da gestante. Pena: reclusão de três a dez anos. Já o 126 estabelece prisão de um a quatro anos para quem provocá-lo com o aval da grávida.

    Confusa e aflita, a estudante recebeu de bom grado uma mensagem enviada por um colega de Junior. O texto mencionava a campanha Eu Vou Contar, que estimula mulheres a relatarem no Facebook suas experiências com o aborto. Lançado em setembro de 2017 pelo Think Olga e pela ONG Anis – Instituto de Bioética, o movimento toma o cuidado de só divulgar casos que aconteceram há mais de oito anos. “Se uma mulher interrompeu a gravidez em 2009, por exemplo, e as autoridades nunca a investigaram, não poderão condená-la agora, já que esse tipo de crime prescreve em oito anos”, explica a advogada Sinara Gumieri, da Anis.

    Foi com uma das fundadoras da ONG – a antropóloga Debora Diniz, coautora da pesquisa sobre o comércio clandestino de Cytotec – que Mendes acabou entrando em contato. À época, a ativista tirava um sabático nos Estados Unidos. Ela e a estudante passaram a trocar mensagens, que culminaram na vinda de Diniz a São Paulo alguns dias depois.

    Quando a avistou pessoalmente no Conjunto Nacional da avenida Paulista, Mendes se surpreendeu com o tipo mignon da pesquisadora. “Imaginei que fosse uma mulher bem maior”, relembrou. De fato, a fala resoluta da antropóloga destoa de seu corpo miúdo. Nascida em Alagoas, criada no Rio de Janeiro e radicada no Distrito Federal, ela recebeu 93 prêmios nacionais e internacionais por pesquisas, livros e documentários. Um desses livros, Zika: do Sertão Nordestino à Ameaça Global, acaba de sair em inglês. Na obra, a autora descreve a evolução da epidemia que irrompeu no Brasil em 2015. Também discorre sobre a microcefalia que acometeu bebês infectados pelo zika vírus durante a gestação. Os personagens do estudo são médicos, cientistas e mães que viviam no miolo do Nordeste quando os casos explodiram.

    A antropóloga instigou Mendes a escrever ali mesmo, no Conjunto Nacional, uma carta para a ministra do STF Rosa Weber. “Há tempos, venho pensando em como fazer com que as vozes dos que sofrem violações de direitos cheguem à máquina judiciária não apenas pela via processual”, explicou Diniz. “Na carta, Rebeca se expressa nos termos dela, sem a mediação do linguajar jurídico, o que me parece extremamente democrático.”

    Rosa Weber é a relatora da ação que propõe a descriminalização do aborto em qualquer situação, até doze semanas de gravidez. O PSOL e a Anis ajuizaram o processo em março de 2017. Desde então, 38 entidades manifestaram o desejo de ser ouvidas sobre o tema pelo STF: 27 a favor da proposta e 11 contra. A votação em plenário ainda não foi marcada.

    Na carta, redigida à mão em duas folhas pautadas, Mendes contava o que sentiu quando soube da gestação, aludia à iminente perda do emprego e lamentava o provável abandono da faculdade caso levasse a gravidez adiante. Dizia, ainda, que cogitara usar o Cytotec, mas que logo descartou a hipótese.

    Do Conjunto Nacional, a estudante e a antropóloga seguiram para Ermelino Matarazzo. Lá a pesquisadora gravou um vídeo em que Mendes, sentada no corredor de sua casa, lia a carta. Diniz também tirou uma foto em preto e branco da gestante com os filhos de costas para a câmera, um encaixado no peito da mãe, outro próximo do ventre dela. Colocados nas redes sociais pela Anis, o vídeo e a fotografia viralizaram.

    Em paralelo, a ONG e o PSOL entraram com uma ação no STF, pedindo que o tribunal concedesse de imediato, em favor de Mendes e de todas as mulheres, o direito de interromper a gestação. Solicitaram igualmente a permissão para que profissionais de saúde realizassem a intervenção. “A cada semana de espera, quase 10 mil novas mulheres enfrentarão o mesmo dilema trágico, e Rebeca terá sua saúde deteriorada e menores chances de um procedimento seguro, necessário à sua vida e à de sua família”, detalhavam os requerentes. O número que mencionavam foi apresentado na Pesquisa Nacional de Aborto, divulgada pela Anis em 2016.

    “Procedimento” é uma palavra-chave não só na Justiça, mas nas entrevistas que a estudante passou a dar depois de se expor. “O termo ‘aborto’ choca as pessoas”, justificou Mendes, enquanto limpava com alvejante a mesa em que as crianças haviam acabado de comer pastel. Ela e os filhos moram no térreo de um sobrado, onde dividem dois quartos, sala, cozinha, banheiro e um quintal de cimento transpassado por varais repletos de cuequinhas e camisetas. A cachorra Tequila, muito elétrica, acabara de ser amarrada junto a uma casinha de madeira. O térreo ainda abriga dois gatos – Snow e Fantasminha –, além de uma gata prenhe.

    Sem entrar em detalhes, a estudante contou que seu pai morreu na prisão quando ela estava com 7 anos. Também disse que mal vê a mãe e o irmão caçula. Em contrapartida, não desgruda de Susana Helen Alves, comadre e “amiga-irmã”. “Para mim, é difícil ficar longe da Rebeca por causa dos meninos. Sou muito ligada a eles. Muito, muito, muito”, enfatizou a moça de 27 anos, que não tem filhos e sonha em “conquistar uma família”. Cuidadora de idosos, Alves não concorda com o aborto fora dos limites estabelecidos pelo Código Penal. Mesmo assim, respeita a escolha da amiga e a defende como uma leoa. “Rebeca é mãe, pai, tia, tio, avó, avô – e um pessoal que desconhece a história dela ainda ousa atacá-la nas redes sociais? ‘Você é assassina, não quer dar o direito de uma criança nascer!’ Fala sério, né?”

    A Anis havia alertado Mendes que a ação no STF poderia despertar reações negativas, mas a estudante não imaginou que seriam tantas. “Me lembro de todos os ‘Vagabunda’ que li, dos ‘Ah, você deveria saber se cuidar porque faz faculdade’.” Ela tampouco se esquece das inúmeras pessoas que, pelas redes, se ofereceram para cuidar do bebê caso a gravidez prosseguisse.

    “Filho não é um pacote que se entrega displicentemente para alguém”, ponderou Thomaz Gollop, professor-associado de ginecologia na Faculdade de Medicina de Jundiaí e defensor do Estado laico, sobretudo nos debates sobre aborto de fetos anencéfalos. “Estima-se que, anualmente, 500 mil brasileiras abortem de maneira insegura. Então, acho bastante responsável que Rebeca tenha procurado ajuda para realizar o procedimento sem grandes riscos.” A pedido da Anis, foi na clínica do médico que a moça confirmou estar grávida de seis semanas e um dia.

    Também por intermédio da ONG, a estudante se consultou com a psiquiatra Wilza Vieira Villela, que reconheceu num laudo o intenso sofrimento emocional da paciente, com possível evolução para um quadro de depressão moderada ou grave. “Somos favoráveis que se faculte à sra. Rebeca Mendes Silva o direito de interromper a atual gestação, protegendo assim a sua saúde mental, a dos filhos, e ainda evitando que nasça uma criança marcada pela rejeição materna e paterna e pelos graves prejuízos emocionais que tal situação acarreta”, concluiu a psiquiatra no documento.

    Em casa, Thomas e Felipe tentavam entender o comportamento estranho da mãe. Perguntaram se ela estava doente, se tinha perdido o emprego, se havia acontecido alguma coisa na faculdade. Diante das negativas, lhe mostraram a embalagem do teste de gravidez. “A gente encontrou essa caixinha aqui. Você está grávida?” Mendes respondeu que sim, mas que não queria estar e que ia arrumar um jeito de resolver o problema. “Como você vai fazer isso?”, indagou Thomas. “A mamãe vai fazer o que chamam de aborto. Vai tomar um remedinho e deixar de ficar grávida, o.k.?” “O.k.”, concordaram os meninos – e voltaram a jogar o videogame Plants vs. Zombies.

    No fim de novembro, a estudante já amargava os primeiros enjoos. O café, de que gostava muito, não descia mais. Havia sido assim, com o Miojo, na gestação de Felipe. Mas agora ela se sentia pior: o estômago virado se associava ao choro convulsivo.

    Embora esperançosas de que Rosa Weber aprovaria o procedimento, Mendes, a Anis e outras ONGs feministas se preocupavam com o calendário. A Justiça não caminha na mesma velocidade da divisão celular. Anais médicos indicam que abortos praticados nas primeiras semanas de gravidez são mais seguros. Esperar aumentaria os riscos. “Por isso, desde o início, tínhamos um plano B”, contou Debora Diniz.

    A alternativa seria interromper a gestação num país que autorizasse o aborto dentro das condições desejadas pela estudante. “Via de regra, o Brasil só pode processar alguém por um ato que definiu como crime se o delito for praticado aqui”, esclareceu a advogada Sinara Gumieri. A França logo pareceu uma boa opção. Lá, é possível realizar a interruption volontaire de grossesse (IVG), sem justificativa, com no máximo doze semanas de gravidez ou catorze semanas após a última menstruação.

    Na América Latina, apenas Uruguai, Guiana Francesa, Cuba e Porto Rico liberam o procedimento segundo os moldes franceses. Já Nicarágua, El Salvador, Haiti, Honduras, República Dominicana e Suriname o proíbem em qualquer circunstância. Antígua e Barbuda, Venezuela, Paraguai e Guatemala, por sua vez, o permitem somente quando a gestação oferece risco à mulher. Nos demais, somam-se ao perigo de morte materna outras variantes, como estupro, incesto e má-formação fetal.

    Enquanto aguardava a decisão de Rosa Weber, Mendes providenciou um passaporte e tomou vacina contra a febre amarela, condição exigida por alguns países da lista. A amiga Susana Alves ajudou nos preparativos. “Esvaziei uma maleta grande, joguei em cima da cama e falei: ‘Não gasta com isso. Leve a minha.’” Uma colega da faculdade emprestou um casaco de frio.

    Em 28 de novembro, a ministra do STF negou o pedido da estudante. Alegou que o Supremo só poderia se posicionar sobre o assunto em termos abstratos e não em termos concretos. Ao saber do resultado, Mendes desabafou na BBC Brasil: “Eu me senti desamparada.” Considerando a trajetória de Weber em votos relativos a questões bioéticas, como o aborto de anencéfalos, a moça e a Anis nutriam a esperança de um “sim”. Advogadas da ONG tentaram, então, um habeas corpus preventivo na Justiça de São Paulo, reivindicando o mesmo: que a gestante e um profissional de saúde pudessem fazer o procedimento no Brasil sem a ameaça de processo criminal.

    Simultaneamente, o Consorcio Latinoamericano contra el Aborto Inseguro convidou a estudante para dar uma palestra na Colômbia, em dezembro. Sediado no Peru, o Clacai agrega mais de 150 organizações, incluindo a Anis. Susana Chávez, secretária executiva da entidade, explicou que o caso da brasileira lhe chamou muita atenção: “Era uma mulher decidida a recorrer à Corte para demandar um direito.” Com o convite, o consórcio pretendia mostrar à jovem que sua luta fazia sentido.

    Em 2006, a sentença C-355 despenalizou o aborto na Colômbia em três circunstâncias: quando a má-formação do feto inviabiliza sua vida fora do útero, quando a gravidez resulta de uma relação sexual não consentida e quando há perigo à saúde da mãe. A partir de então, a Justiça passou a aprovar outras sentenças sobre o assunto. Em 2007, permitiu que mulheres com deficiência mental ou física interrompam a gravidez, arvorando-se exclusivamente em sua própria vontade. No ano seguinte, estipulou que não existe limite de idade gestacional para o procedimento em situações previstas por lei. Assim, uma gestante com 28 ou trinta semanas de gravidez tem a prerrogativa de solicitar a retirada do filho.

    Em 2010, o país declarou o aborto um direito reprodutivo e, em 2016, determinou que a “objeção de consciência do médico” não pode impedir a intervenção. Caso um profissional se julgue impossibilitado de realizá-la por razões morais ou religiosas, precisa indicar à paciente um colega que o substitua.

    É interessante notar que a expressão “saúde da mulher” possui significado bem amplo na Colômbia. “Compreende não apenas o bem-estar físico, mas também o psicológico ou emocional, em que influem os contextos socioeconômico e cultural”, definiu Luz Janeth Forero, gerente de projetos e investigações da ONG Profamilia. “Uma colombiana que deseje abortar porque se sente ansiosa ou deprimida com a gravidez necessita apenas dizer isso para o médico ou psicólogo que a atender. Nenhum deles poderá lhe pedir um laudo psiquiátrico ou algo do gênero.”

    A sala de Forero se localiza no 2º andar da clínica principal da Profamilia. A instituição ocupa um conjunto de edifícios no Centro de Bogotá, todos pintados de verde e branco. Foi fundada há 52 anos por Fernando Tamayo Ogliastri, ginecologista que fez residência e pós-graduação na Universidade Harvard. Ele tinha um consultório particular na capital da Colômbia e atendia mulheres de elite, mas não lhe passava despercebida a extensa prole das empregadas que trabalhavam na casa de suas pacientes – uma média de sete filhos por família pobre. Sob o apoio discreto de políticos e empresários, preocupados com o crescimento populacional de 3% ao ano, Ogliastri criou a ONG e implantou projetos que ajudaram a reduzir sensivelmente as taxas de natalidade no país.

    Essa “revolução silenciosa” acabou ganhando notoriedade fora da Colômbia. Malcolm Potts, professor emérito da Faculdade de Saúde Pública na Universidade da Califórnia, em Berkeley, cita a experiência de Ogliastri como modelo de planejamento familiar ao alcance dos mais necessitados, apesar da pressão contrária de muitos cristãos. Cerca de 80% dos 48,7 milhões de colombianos se declaram católicos. As igrejas evangélicas também exercem grande influência sobre a população. Seis mil delas se espalham pelo país e arrebanham aproximadamente 10 milhões de fiéis.

    As iniciativas da Profamilia tornaram-se possíveis graças a parcerias com entidades como a International Planned Parenthood Federation (IPPF), a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) e as Open Society Foundations (OSF). A ONG atua em 29 clínicas de 25 cidades, onde trabalham uns 3 mil funcionários, 70% profissionais de saúde e 30% de outras áreas – economia, psicologia, antropologia e pedagogia. A credibilidade da Profamilia é tanta, afirmou a diretora executiva Marta Helena Royo, que há quem a confunda com um órgão público. “O governo não se importa porque, de certa maneira, terceirizou o planejamento familiar para nós.”

    Em 2003, a instituição começou o programa Fertilidade, destinado a casais que querem, mas não conseguem ter filhos. O foco da ONG, no entanto, é fazer chegar à população uma gama de métodos contraceptivos, além de informações sobre direitos sexuais e reprodutivos. Só no ano passado, a Profamilia monitorou 10 514 abortos. Às gestantes com menos de nove semanas de gravidez, indicou o uso de misoprostol. “Se desejar, a mulher pode levar a droga e realizar o procedimento em casa. É muito mais tranquilo”, disse a médica Yiny Torres Valencia. As gestantes com nove semanas ou mais de gravidez passam por cirurgia nas clínicas ligadas à entidade.

    “Várias delas chegam aqui bem cientes do processo porque entraram no nosso site e conversaram com um profissional via chat”, explicou Torres. Entre 1º de janeiro e 6 de fevereiro deste ano, 58 673 visitantes do portal consultaram o tema “aborto”, e a página da instituição no Facebook somou quase 55 mil curtidas. A divulgação de informações pela internet estaria fazendo diferença no fluxo de trabalho da médica. Em 2016, ela atendia três a quatro pacientes por mês; agora são três a quatro por hora.

    Lotada, a sala de espera da clínica em Bogotá abrigava mulheres acompanhadas dos parceiros, de amigas ou de familiares. Mas uma adolescente parecia sozinha. “Na Colômbia, menores de idade podem abortar sem que um adulto autorize”, contou Torres. Quando as garotas têm menos de 14 anos, presume-se que houve delito sexual. Mesmo assim, a sentença T-209, de 2008, prevê que não se condicione o procedimento a uma denúncia formal da menina.

    Acontece que, segundo pesquisa da própria ONG, apenas 26,5% dos colombianos sabem que menores de 14 anos podem abortar sem o aval dos pais. O desconhecimento se estende a outras situações. Somente 5,1% ouviram falar que um feto anencéfalo justificaria interromper a gravidez legalmente, e 25,8% pensam que o aborto no país é ilegal em qualquer circunstância. Não à toa, cerca de 400 mil procedimentos clandestinos ainda ocorrem todos os anos no país, de acordo com o Instituto Guttmacher, dos Estados Unidos. Seu relatório mais recente, publicado em março, mostra que a América Latina e o Caribe ocupam o topo do ranking mundial de abortos – 44 em cada mil mulheres com idade reprodutiva. O levantamento abarca o período de 2010 a 2014 e se refere tanto às intervenções legais quanto às ilegais cujas complicações levaram as gestantes ao sistema de saúde.

    A clandestinidade na Colômbia envolve a compra do Cytotec em sites pouco confiáveis – que contrabandeiam o produto do Equador, do Brasil e da Venezuela – ou a cirurgia com aventureiros sem formação médica. Fidel Antonio Morales, coordenador nacional do programa de aborto na Profamilia, afirmou que, ao redor dos prédios da instituição em Bogotá, aproximadamente vinte casas oferecem o serviço clandestino, fingindo-se parte do complexo. Estão pintadas de verde e branco, como os edifícios da ONG, e cobram até 300 mil pesos (aproximadamente 380 reais) para extrair o feto. Já na Profamilia, o procedimento é coberto por convênio ou sai de graça, se a mulher comprovar não ter condições de custeá-lo.

    Reportagem com câmera escondida, realizada pelo portal de notícias Conexión Capital em outubro passado, jogou luz nesse mercado paralelo. Uma pessoa de jaleco dizendo-se médica identificou no útero da repórter um “bebê muito pequeno”, que seria “facilmente retirado em cinco minutos”. A jornalista, no entanto, não estava grávida.

    Com a viagem e a estadia pagas pelo Consorcio Latinoamericano contra el Aborto, Rebeca Mendes chegou a Bogotá no dia 5 de dezembro, acompanhada de uma intérprete. A estudante nunca havia voado de avião, mas seu enjoo não foi às alturas, como temia. Ela deixou as crianças com o pai e pediu à comadre que ficasse na cobertura. Via Twitter, acompanhava a repercussão da campanha #PelaVidadeRebeca, que reunia diversas manifestações de solidariedade, como a das Católicas pelo Direito de Decidir. A ONG está presente em doze países, inclusive a Colômbia.

    A viagem previa visitas à Profamilia e ao coletivo feminista La Mesa por la Vida y la Salud de las Mujeres. Uma das coordenadoras do grupo, a cientista social Juliana Martínez, costuma associar a descriminalização parcial do aborto no país ao longo conflito armado entre Estado, traficantes, paramilitares e grupos de esquerda, a exemplo das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e do Exército de Libertação Nacional (ELN). A disputa, que começou nos anos 60 e só terminou recentemente, provocou cerca de 260 mil mortes.

    “Os movimentos de mulheres se fortaleceram nesse período. As colombianas passaram cinco décadas pedindo que seus filhos e maridos voltassem da guerra e reclamando da impunidade contra a violência sexual, que era muito alta”, explicou a cientista social no escritório do La Mesa.

    O que seria um tour pela história do direito reprodutivo na Colômbia virou uma tábua de salvação. Depois de conhecer o trabalho da Profamilia, Mendes se sentiu confiante para interromper a gestação ali mesmo, na clínica da ONG. O próprio Fidel Morales, coordenador do programa de aborto, a examinou. Sem pedir o laudo da psiquiatra Wilza Villela, concluiu que a saúde mental da estudante estava abalada e que, por isso, ela poderia retirar o feto dentro da lei.

    Toda consulta na Profamilia sobre interrupção de gravidez envolve uma conversa a respeito de contraceptivos. A ideia é evitar recidivas de aborto. Entre as opções que lhe apresentaram, a jovem escolheu um implante subcutâneo com validade de cinco anos, cuja eficácia é de 99,8%. Em seguida, assinou um termo consentindo o procedimento e passou por um ultrassom, que confirmou as nove semanas de gestação e a necessidade de cirurgia. Marcaram a intervenção para a manhã seguinte.

    Num recinto com outras vinte mulheres, acomodada numa poltrona grande e reclinável, Mendes tomou dois comprimidos de anti-inflamatório e outros dois de misoprostol. Aguardou quinze minutos e foi para a sala de cirurgia, onde primeiro implantaram o contraceptivo – dois bastonetes de progesterona – sob a pele do braço esquerdo. Depois, com o auxílio de um espéculo, o médico abriu o colo do útero da estudante, anestesiou-o em quatro pontos e aspirou um de cada vez. Ela sentiu uma cólica leve.

    Após um breve resguardo, deixou a clínica andando, com algumas recomendações na bolsa: não usar absorvente interno nem tomar banho de piscina ou banheira; procurar ajuda caso o sangramento decorrente da cirurgia exigisse mais que dois absorventes externos ou se houvesse febre acima de 38,5ºC nos próximos dois dias.

    A jovem tirou a tarde para dormir. À noite, ela e a intérprete decidiram comer nos arredores do hotel. Mendes repetiu o Big Mac com Coca-Cola do almoço: “Não conheço a comida colombiana. Melhor não arriscar…” No dia 10 de dezembro, pegou o avião de volta, carregando um enorme alce de pelúcia, que os meninos, em casa, batizaram de Gabriel.

    “As pessoas ainda me perguntam o que senti depois do procedimento”, contou a estudante em abril, na Zona Leste de São Paulo, diante da faculdade onde cursa direito. “Falaram barbaridades – que eu ia ficar deprimida e com peso na consciência, que o espírito da criança ia me perseguir. Mas a verdade é que me senti aliviada. Voltei a ser a Rebeca de sempre.”

    Desempregada, já que o trabalho provisório no IBGE terminara, ela aguardava a resposta de algumas empresas para as quais enviara currículos. “Se não pintar nada e eu tiver que vender trufa na porta da faculdade, tudo bem.” Neste semestre, a jovem acrescentou uma disciplina à carga horária costumeira, pois pegou dependência em medicina legal. Sua matéria preferida no primeiro ano foi direito constitucional. Hoje, no terceiro, Mendes está fascinada pelo tributário – tanto que começou a fazer uma nova graduação, à distância, em ciências contábeis.

    O celular da estudante agora armazena contatos antes inimagináveis. Um deles pertence a um grupo feminista que planeja montar uma rede de apoio a ativistas chamada Rebeca. Outro é do jornal carioca O Globo – que, em março, a apontou como finalista do prêmio Faz a Diferença, no Copacabana Palace. Ela havia concorrido na categoria Sociedade/Diversidade, mas perdeu para o casal de atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank.

    Desde que retornou ao Brasil, mulheres a procuram querendo saber como abortar. “Fico com o pé atrás de ajudá-las. Alguém pode me acusar de vender remédio ou indicar clínicas. No máximo, passo o endereço da Anis se a interessada estiver no início da gravidez.” Depois da jovem, quatro brasileiras viajaram para Bogotá a fim de fazer aborto na Profamilia. A ONG também recebeu gestantes do Chile, onde a intervenção é permitida apenas em casos de estupro e anormalidade fetal. Mas boa parte das estrangeiras que recorreu à instituição nos últimos meses provinha da Venezuela. Elas atravessaram a fronteira na região de Cúcuta, fugindo do colapso econômico e da violência que imperam no país sob o governo de Nicolás Maduro.

    Antes de se despedir, Rebeca Mendes passou num supermercado para comprar frios e biscoitos de polvilho doce. “Se não levar nada, os meninos brigam comigo.” Três semanas depois, avisou que a cachorra Tequila havia fugido e que a gata prenhe dera à luz seis filhotes. “Jurei que não ia adotar nenhum e acabei ficando com dois…”, contou, rindo.

    MÔNICA MANIR

    Mônica Manir é jornalista.

     

  6. Controvérsias
    Assisti todo o debate e conclui algumas coisas:
    1) É um assunto polêmico, mas deve-se debater exaustivamente. É democrático.
    2) A questão da saúde pública das mulheres está ficando em segundo plano. A prevenção, a proteção é ignorada.
    3) Os dados são conflitantes, não confiáveis. Não sei se por erro de coleta ou desonestidade intelectual.
    4) Deve-se examinar judicialmente os artigos 124 e 126 separadamente.
    5) O STF não devia se manifestar antes do legislativo, a não ser num caso concreto. Como o histórico Wade&Roes.
    6) Outras áreas do direito estão avançando, mas essa está ficando para trás.

  7. Quando o assunto é aborto,

    Quando o assunto é aborto, sempre trago a questão de que é necessário ter formas de evitar o aborto eugênico. Em vários países da Europa, praticamente 100% dos bebês com Síndrome de Down são abortados pois o exame é obrigatório no pré-natal. Isso é uma questão ética relevante.

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