Psicanalistas, artistas e psicoterapeutas vão às ruas, por Paulo Cesar Endo

Esses são também performers que encenam no universo compartilhado a oposição ao ataque aos espaços do livre convívio

do Psicanalistas pela Democracia 

Psicanalistas, artistas e psicoterapeutas vão às ruas, às praças, às periferias e às ocupações para encontrar o espírito que produz e instaura a palavra coletiva, livre e imaginativa

Por Paulo Cesar Endo

Nos 3 anos dos Psicanalistas pela Democracia tivemos momentos especiais de troca de experiências e congraçamento. Os coletivos Armazém de Histórias (A Carroça), os Psicanalistas na Praça de Porto Alegre, os Psicanalistas na Praça Roosevelt, A Roda Terapêutica das Pretas e o Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos (NETT) de São Paulo compuseram as rodas de conversa que propusemos. Esses trabalhos e outros contribuem no exercício cotidiano da palavra como forma que percute, ressoa, retumba nos espaços públicos e coletivos. Juntos propõe questões de natureza inédita para a psicanálise, para a metapsicologia e para os psicanalistas e instituições psicanalíticas brasileiras, mas também para a arte, o artista, a universidade e os saberes circulantes. Boa parte desses coletivos surgiram a partir de 2016, momento crucial da história política brasileira que desembocou na semeadura de práticas discricionárias, autoritárias e fascistas representadas pelo atual governo e antecedidas pelo governo ilegítimo de Michel Temer.

A coincidência não é sem razão. Eles tentaram, de modo implícito ou explícito, responder às fraturas psíquicas e subjetivas decorrentes da degradação do espaço público e da experiência comum. São trabalhadores da psicanálise, artistas, psicólogos mas são também performers que encenam no universo compartilhado a oposição ao ataque aos espaços do livre convívio, a partir da escuta que ali se instala, e ela é quieta, discreta e propositiva.

No caso do projeto A carroça – histórias ambulantes de Porto Alegre arte, performance, psicologia e psicanálise interagem produzindo um universo imaginativo raro, repleto de figuras que se exercem na praça, apoiados na construção do hábito das trocas linguageiras que vez ou outra revelam atos, ações, atitudes e performances pela cidade. Assim não só A Carroça instalada na praça tornou-se, há 13 anos, o palco de intercâmbio de histórias, palavras e provocação às possibilidades da escuta e da construção de histórias que os sujeitos cedem, doam e revelam, mas também a rua é o lugar em que longas caminhadas acontecem pela cidade revelando uma ocupação da cidade a partir de um modo de transitar por ela diferente, dissuasivo e heterodoxo. Como ir de um lugar ao outro, mas de um modo inteiramente diverso e com “as próprias pernas”?

O trabalho das/os Psicanalistas na Praça, que também ocorre em Porto Alegre revela em sua pesquisa de criação a busca por um lugar público de escuta para dali exercerem aproximações, estranhamentos e constatarem partições inerentes ao espaço público e a instalação de um coletivo de psicanálise.  Ao darem-se a escuta percebem-se também provocados à uma escuta megafônica: a escuta da praça e seus entornos, de seus barulhos, de seus habitantes, de seus “donos”. Uma escuta que cinge o próprio universo de escutar alguém, precedido pela escuta de alguéns e dos ecos que ressoam na praça e seus barulhos. Na praça (square) onde o conceito do público é permanentemente restringido pela força centrípeta do privado.

Basta ir num sábado pela manhã na praça Roosevelt para admirar e estranhar as cadeirinhas de praia frente a frente ocupadas por duas pessoas que conversam. Essa cena por si só perfaz uma performance que induz a pergunta sobre o que conversam aquelas pessoas em situação aberta, pública e gratuita? O que fazem? São amigos? Que serviço oferecem? São médicos? Vagabundos? Gente que não tem o que fazer? O quão perturbador pode ser a visão de duas pessoas em situação de fala e escuta, ao mesmo tempo aberta e íntima,  visível e invisível a qualquer transeunte? A praça é um lugar para troca de intimidades? A intimidade possível pode ser pública?

Quem os vê conversando tem, contudo, a impressão de que estão ali a muito tempo e jamais deveriam sair dali. Eles acabam de criar, por sua presença, um vazio de praçaacessível quando imaginamos o sábado de manhã sem as coloridas cadeiras de praia ocupadas. Talvez, sem o saber, eles virtualizam no tempo e espaço de uma São Paulo caótica o provir que se instala, no exato momento em que uma demanda de escuta se oferece, lá mesmo onde o barulho ensurdecedor é, paradoxalmente, o que protegerá e impedirá essa escuta de acontecer. Esse barulho é, ao mesmo tempo, sua moldura e a mancha que pode obturar a paisagem que ela inventa.

Ouvimos com atenção também, no último dia 30,  o trabalho do Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos. A ousadia de se instalar numa ocupação do MTST exigiu lento processo de criação/invenção de uma escuta possível para a qual não há, a priori, qualquer demanda. O psicanalista quer escutar e, ouvindo, deseja interpelar um sujeito que resiste ante aquilo que o assola, o ataca e quer, sorrateiramente, inviabilizar sua existência física e psíquica.  O NETT tem início junto aos “SEM”. Mas o “sem” aqui não é falta, mas trauma; não é angústia, mas dor. Sem teto, sem terra, sem ter o ponto de partida que inaugura a experiência da mobilidade, do ir e vir, negado aos que não tem para onde voltar.

Os que resistem ao destino do eterno deambular inventam seus lugares contra o vazio, produzido pela acumulação predatória, mas querem ao mesmo tempo apenas um lugar para estar consigo e com os que amam, longe o suficiente do degredo. Por isso talvez a primeira pergunta aos membros do NETT tenha sido como instaurar um lugar possível de falas que ressoam ao serem escutadas? Como perfurar as urgências revoltas que aturdem a vida dos ocupantes para, juntos, revelar tudo o que é ausente de palavra e perdura no corpo ocupante que sonha em ter um lugar que lhe é permanentemente retirado?

Para a Roda Terapêutica das Pretas há algo que se cala no universo branconormativo. Sua experiência deflagra as tantas falas que não puderam ser escutadas, as histórias não lavradas, as gerações moucas de psicoterapeutas e psicanalistas que jamais se perguntaram com determinação e sinceridade porque praticamente não há negros nas fileiras da psicanálise? Porque os autores negros são negligenciados nos estudos sobre a clínica e a teoria psicanalíticas? E porque quando uma escuta terapêutica se abre à fala negra centenas de pessoas se mobilizam para ter acesso a ela?

Esse coletivos já se tornaram importantes e necessários nesses últimos anos por inventarem um modo próprio de colocarem questões há muito ocultas, não apenas para a psicanálise e para a psicologia, mas por desbravarem fisicamente lugares que permaneciam em espera para que outra espera-a da escuta- viesse a despertá-las.

Eles erguem sua voz a partir do que escutam e inventam o íntimo a partir do que é suscitado na experiência pública, coletiva e instauradora.

Psicanalistas pela Democracia agradece a esses coletivos por aceitarem nosso convite no momento em que 3 anos completos não são mais do que a tenra infância das lutas que ainda teremos de travar para alcançar um país profunda e sinceramente, diverso e menos, muito menos, assimétrico nas praças, nas ruas, nas instituições e em nós.

Atravessemos juntos o canal revolto que nos levará a 2020!!!

Redação

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