Psicopatologia da vida cotidiana – Sigmund Freud (1901): Um exercício

Tudo está tão abertamente assustador!

Um tour pelos comentários de notícias e postagens na internet e em redes sociais  coloca aqueles que sonham com um mínimo de humanidade em desespero. De forma exacerbada e descarada as pessoas expõem seus ódios raciais, xenófobos, homofóbicos e de classe. Isso não se dá apenas no mundo virtual, diariamente as pessoas atacam umas as outras. É a expressão cotidiana do avanço da crise política e econômica mundial. Poucas reflexões sobre as causas e apego a soluções imediatistas, daquelas que elegem um inimigo comum e partem para o ataque.

A falta de racionalidade e de caminhos anima em nós  aquilo que ao longo da vida suprimimos em nome de uma convivência minimamente salutar. Percebemos que o ideal de humanidade, sequer começou a se desenhar, mesmo quando as possibilidades de sanar as necessidades materiais de todos os seres humanos é uma realidade, mas isso não nos faz olhar com indignação para a exploração e voltamos nosso ódio ao explorado  (ENCONTRO… 2006). Nossa luta contra a natureza tanto planetária quanto humana nos cega e favorece a busca por seres supremos, divinos ou não (FREUD, 1996)  é uma batalha árdua e sem muitas perspectivas. Talvez, compreender melhor os desafios colocados por esse sistema de exclusão em que vivemos e nossa constituição psíquica possa nos auxiliar nessa lida.

As crises do sistema tornaram possível a ascensão de regimes totalitários, mas também possibilitou o desenvolvimento de teorias que nos dão esperanças ou meios para compreender e saber posicionar-se diante do real. Teóricos como Marx e Freud contribuíram para esse descortinar da sociedade e de nós mesmos. Também eles não estão livres de ofensas descontextualizadas, com exposições da vida privada para desqualificar suas contribuições. Muitas vezes acabamos influenciados por esse tipo de análise e não aprendemos com eles, precisamos tirar a marra para fazer uma leitura que possibilite uma reinterpretação e ação.

Assim, creio que, a psicanálise nos propicia elementos para compreender melhor como agimos cotidianamente e possibilite uma reflexão para o devir. Sem seguir a orientação de Freud (2011, p. 166) sobre a não exposição da vida pessoal, resolvi fazer um exercício com base na leitura de Psicopatologia da vida cotidiana.

Esta obra de Freud proporciona aos seus leitores um contato com situações que são comuns a todas as pessoas e podem ser observadas e analisadas tendo em conta as metodologias criadas por ele nesses primeiros anos de desenvolvimento da teoria psicanalítica.  Nela, ele oferece  a continuidade do descortinamento do inconsciente iniciado no estudo dos sintomas da histeria, com casos mais específicos, estendendo ao coletivo da humanidade a partir da interpretação dos sonhos. Afinal, todos nós sonhamos e temos esquecimentos e atos falhos no cotidiano.

Em “Psicopatologia da vida cotidiana” no primeiro capítulo intitulado “O esquecimento dos nomes próprios” ele desenvolve um estudo relacionado aos esquecimentos, algo comum a todos: esquecer o nome de alguém, esquecer uma palavra ou trocar por outra em determinados momentos. Ele priorizou seus próprios esquecimentos para o desenvolvimento da análise, a omissão pela estrutura psíquica de determinados conteúdos podem expor desejos não aceitos pela sociedade, assim julgou prudente preservar os estudos feitos com seus pacientes.

A leitura do texto me instigou a fazer alguns exercícios e experimentar o método utilizado por Freud para chegar o mais próximo possível do que está oculto, assim apresento aqui um desses exercícios.

 

O exercício:

Estava a escrever um texto sobre  reforma da Previdência, queria fazer uma pesquisa sobre a aposentadoria em sites oficiais da França, para isso tentei recordar a palavra em francês, porém nada vinha a minha cabeça e não quis buscar em um dicionário.

 Decidi seguir o método utilizado por Freud para compreender essas ausências de memória: a partir da primeira coisa que vem a sua mente busca-se os motivos pelos quais ela surgiu, com isso tornar-se-á possível compreender quais os mecanismos utilizados pela sua mente para trazer à tona aquilo que está oculto, porém cheio de desejo de se fazer presente.  

 A primeira palavra que me veio à mente foi PORTRAIT.

Pensei em seu significado e primeiro associei a pinturas. Como gosto muito de Van Gogh algumas pinceladas encontraram espaço nesse vazio. A pintura denominada Noite estrelada fez essa entrada em meu inconsciente. Ora o que são as estrelas mitologicamente falando? São nossos guias espirituais? Nossos ancestrais? É a transmutação das pessoas que amamos quando morrem?

Com certeza não era Van Gogh. Não era isso no Isso.

A próxima lembrança que tive foi de “duas estrelas”! Lembrei-me de meus avós de coração. Logo recordei de dois quadros que ficavam na parede da sala de onde morávamos: lá estava eu, um bebê em uma foto pintada a mão ao lado do quadro, também pintado, de Getúlio Vargas. Ninguém precisava me dizer nada. A posição naquela parede me dava algumas certezas, afinal deveria ser muito amada.

Para meus avós, Getúlio Vargas tinha sido o melhor presidente do Brasil, contavam que em sua época a vida tinha melhorado para as pessoas mais pobres e que os trabalhadores ficaram mais seguros, pois ele tinha criado a Carteira de Trabalho. Então, lembrei-me de uma aula de história que tive quando minha avó ainda era viva, nela, a versão não era tão boa. Disseram que ele se aliou aos fascistas, para  mim era o mesmo que dizer que ele odiava negros. Os quadros continuavam lá, mas nunca disse para minha avó o que tinha aprendido na escola, ficava pensando no quão isso iria lhe fazer mal. Uma família de negros que exalta seu opressor, “as classes oprimidas podem estar emocionalmente ligadas a seus senhores; apesar de sua hostilidade para com eles, podem ver neles os seus ideais.” (FREUD,1996).

Depois dessa reflexão me veio a palavra perdida: RETRAITE que significa aposentadoria. Agora, ao escrever, penso na sonoridade e na própria escrita: se pensada próximo a retrato estamos de volta aos quadros na parede; se pensarmos em retratação, também voltamos aos quadros e ao fato de não ter dialogado sobre quem foi Getúlio Vargas. Sobre o que pensava em relação a exaltação de heróis e o que passei a pensar. Como teria sido essa conversa? O que teria eu aprendido?

Essa reflexão sobre heróis nos remete aos dias atuais em que são exaltadas personalidades com discursos  completamente antagônicos, mas que abrangem os desejos de parte da população; em ideais democráticos que não comungam com o sistema vigente; no autoritarismo permitido e ovacionado do poder judiciário. Então nos encontramos agarrados a crenças que anunciam de antemão nossa derrota enquanto espécie.

Não é possível que os rumos da história sejam mudados por uma pessoa, podemos viver desgraçadamente ou amortecidamente com os passos dados por um indivíduo que assuma o poder, mas dentro da lógica estabelecida, nada mudará de fato. Heróis são usados como mata-borrão, ou, de forma mais atual, deletam a luta popular.

Referências:

ENCONTRO com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá. Direção de Silvio Tendler. Produção de Ana Rosa Tendler. Roteiro: Claudio Bojunga; Daniel Tendler; Silvio Tendler. [s.i]: Caliban, 2006. (89 min.), son., color. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM>. Acesso em: 26 abr. 2018.

FREUD, Sigmund. Psicopatologia da vida cotidiana(1901). Rio de Janeiro: Imago, 1990. (Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud vol. 6). Disponível em: http://conexoesclinicas.com.br/wp-content/uploads/2015/01/freud-sigmund-obras-completas-imago-vol-06-1901.pdf. Acesso em: 17 mar. 2018.

FREUD, S. (1927) O futuro de uma ilusão. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Disponível em http://conexoesclinicas.com.br/wp-content/uploads/2015/01/freud-sigmund-obras-completas-imago-vol-21-1927-1931.pdf acesso em 30 abr. 2018.

FREUD, Sigmund. O Eu e o Id, “autobiografia” e outros textos: (1923-1925). São Paulo: Companhia da Letras, 2011. (Obras completas vol. 16). Tradução de Paulo César de Souza.

 

 

 

ENCONTRO com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá. Direção de Silvio Tendler. Produção de Ana Rosa Tendler. Roteiro: Claudio Bojunga; Daniel Tendler; Silvio Tendler. [s.i]: Caliban, 2006. (89 min.), son., color. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM>. Acesso em: 26 abr. 2018.

Redação

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