Quanto vale uma aposentadoria capitalizada: o exemplo do Chile

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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A surpresa chegou aos 60 anos, quando os aposentados retiraram menos de 20% do salário. O buraco da pobreza só não foi maior por um subsídio criado em 2008

Foto: Patricia Faermann

Jornal GGN – A promessa era de “liberdade econômica” aos futuros aposentados do país, aonde cada um conseguiria administrar a sua própria economia dos anos trabalhados e alcançar sonhados 70%, 80% ou até mesmo 100% do último salário. A realidade do Chile após quatro décadas da reforma da Previdência foi de mais da metade da população recebendo o equivalente a 70 dólares, ou R$ 260. Estariam na linha da miséria, não fosse o chamado “Pilar Solidário”, adotado somente em 2008, durante o primeiro governo de Michelle Bachelet.

A quantia que a metade dos aposentados chilenos conseguiu “economizar” –termo utilizado no país para falar de aposentadoria desde que se capitalizou o sistema– representa menos de 16% do salário mínimo atual. Estes valores não eram esperados pelos trabalhadores quando foi implementada a mudança. As empresas responsáveis pelo controle destes recursos, as Administradoras de Fundos de Pensões (AFPs), prometiam uma aposentadoria acima dos 70%, a chamada taxa de reposição, conforme vimos na reportagem anterior deste especial, “Ditadura e desinformação: as promessas aos trabalhadores para capitalizar a Previdência no Chile”.

As promessas não se cumpriram e os sinais do fracasso começaram a ser vistos somente 15 anos depois, com os primeiros aposentados da transição entre a Previdência solidária para a capitalização individual. Tratava-se de uma aposta do grupo de economistas que foram estudar na Universidade de Chicago, assim como Paulo Guedes, os Chicago Boys na ditadura Pinochet (1973-1990). 40 depois o país pode contar a história viva do que finalmente ocorreu.

“Para se ter uma ideia, no ano de 2008, no Chile, recém começamos a ter um contingente de cerca de 600 mil aposentados pelo novo sistema, dos quais a maioria tinha cotizações no sistema antigo com transição ao novo. Hoje, por outro lado, temos as primeiras gerações dos que estão se aposentando integralmente pelas AFPs. E os resultados são desastrosos”, contou o economista Marco Kremerman, ao GGN.

Kremerman comanda, ao lado de uma equipe de pesquisadores, dezenas de investigações e estudos de políticas trabalhistas e previdenciárias no país, pela Fundação Sol. Á reportagem, ele mostrou os números: o primeiro deles, a promessa de que um idoso poderia recolher 80% de sua última renda se reduziu a menos de 20%.

Para que a primeira expectativa fosse atingida, anunciavam duas condições: que os trabalhadores precisariam arrecadar 10% de seus salários por um período superior a 30 anos e as Administradoras de Fundos de Pensão conseguissem uma rentabilidade de, pelo menos, 5% ao ano com esses recursos. Mas os lucros foram superiores e a rentabilidade histórica alcançada até hoje foi de 8%.

Questionamos se essa meta de 80% de taxa de reposição chegou a apresentar, em algum momento, qualquer viabilidade. “Todas as projeções que os neoliberais fizeram para a reforma previdenciária foram de péssima qualidade técnica. Jamais existiu um sistema de contas individuais que possa entregar uma pensão de 80%, considerando que o salário médio vai aumentando gradualmente. Impossível, mesmo arrecadando regularmente e menos ainda para aqueles que contribuem a metade de sua vida laboral, como é a realidade chilena e da América Latina”, respondeu o especialista.

“O sistema não funciona, é um desastre. Hoje, a metade dos aposentados recebem uma taxa de reposição abaixo dos 20%. Acabam se aposentando com 15%, 10% do salário.”

E quanto vale isso? Dados divulgados pela Fundação Sol revelam que no ano passado se aposentaram 124 mil pessoas integralmente pelo sistema capitalizado. Destes, a metade conseguiu uma pensão inferior a $ 48 mil pesos chilenos, que são R$ 260 reais, ou 16% do salário mínimo.

jubilados chile

Os dados deste ano não se diferem, apesar de ser uma geração maior de novos aposentados: metade dos 708 mil recebeu cerca de $ 150 mil pesos chilenos, que equivale a R$ 845, menos da metade do salário mínimo no país. A justificativa dos defensores do sistema sobre o “pouco tempo de contribuição” tampouco se sustenta: os que arrecadaram por um período entre 30 e 35 anos, metade também não conseguiu atingir um salário mínimo.

É o caso dos aposentados que hoje são representantes de associações que exigem a mudança do sistema, consultados pelo GGN. Ex-servidores públicos, Cristina Tapia, 68 anos, Juan Lira, 67 anos, Ana Obreque Rivas, 70 anos, e Yasmir Fariña Morales, 65 anos, contaram que arrecadaram pelo menos 35 anos cada um e obtiveram entre 20 e 30% do último salário, muito abaixo do que esperavam. “A situação é degradante”, disseram.

Aposentados do setor público relataram o cenário vivido – Foto: Patricia Faermann/GGN

Para as mulheres, a situação é ainda mais precária: as que contribuíram 10% de seu salário, durante 30 a 35 anos, receberam um estimado de $ 211 mil pesos chilenos. O salário mínimo no país é $ 301 mil pesos chilenos.

Aura Reyes Rios não espera com ansiedade chegar aos seus 60 anos, em 2020. Mulher, empregada doméstica informal, trabalhou desde a infância sem conseguir contribuir mais de 10 anos com o sistema. “Iria me aposentar no próximo ano e fui ver mais ou menos quanto eu receberia, mas como eu tenho tão pouco dinheiro economizado, minha aposentadoria seria de $ 12 mil pesos chilenos”, contou.

Aura Reyes Rios – Foto: Patricia Faermann/GGN

Ela receberia R$ 65 reais antes de ser criado o Pilar Solidário, em 2008, em uma reforma que tentou diminuir o buraco da Previdência no país, mas que não ousou modificar a lógica das contas individuais. “O governo ajuda com um dinheiro que se chama estatal, e ai me subiria a $ 107 mil pesos, mas ainda me descontam disso a saúde e eu ficaria com $ 98 mil pesos [aproximadamente R$ 540]. Mas duraria só 3 anos, porque eu não tenho mais dinheiro na AFP”, disse.

Em 2006, fez parte do Conselho Assessor de governo para instalar esse Pilar o economista Andras Uthoff, doutor pela Universidade de Berkeley, que também foi conselheiro da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e diretor da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe). O GGN perguntou a Uthoff qual foi o cenário encontrado no país.

“Chegamos ao diagnóstico que metade dos trabalhadores tinha ficado sem nenhuma pensão em 2006, porque nāo tiveram condições de economizar no sistema. Então, 50% da população tinha aposentadoria, e não sabíamos em que nível. Quando nos demos conta que estávamos deixando a metade dos aposentados sem nada, tivemos que os reincorporar ao Estado, criando o Pilar Solidário. Hoje, há uma cobertura suficiente, mas as pensões continuam muito ruins, porque 80% dos aposentados com este subsídio estão abaixo do salário mínimo, e 44% abaixo da linha da pobreza”, apresentou o especialista.

O Pilar Solidário não modificou o caráter capitalizado do sistema, apenas reduziu a extensão da ausência de Seguridade Social, e foi concedido uma quantia que hoje chega a $ 110 mil pesos chilenos, o correspondente a R$ 605 reais, pelo governo chileno aos aposentados que integram os 60% mais pobres do país. “E com isso não se vive no Chile”, acrescentou Uthoff.

“Foi uma reforma de caráter assistencial, não estrutural. Ou seja, não muda o atual sistema, mas coloca uma ajuda para as pessoas que nunca cotizaram ou que retiraram uma pensão muito baixa, e só pode aceder a este benefício quem comprova que é parte dos mais pobres do país. Ou seja, não existe a lógica do direito universal”, analisou Marco Kremerman.

 

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No especial de hoje, disponibilizamos o estudo “A pobreza do modelo chileno, a insuficiência dos salários e aposentadorias“, assinado por Kremerman e pelo economista Gonzalo Durán, da Fundação Sol, publicado em 2018:

IBV13-2

 

Também disponibilizamos o prólogo do livro “Mitos e verdades das AFP”, da jornalista Alejandra Matus, editora Aguillar, que desbrava os principais conceitos relacionados ao sistema de aposentadoria chileno, e pode ser adquirido aqui:

Mitos y Verdades AFP

 

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Essa reportagem faz parte de uma campanha coletiva do GGN, pelo Catarse, sobre o sistema previdenciário no Chile. Acompanhe abaixo as demais publicações deste especial:

Especial: como a aliança entre liberais e militares na ditadura chilena mudou a Previdência

O falso milagre econômico: Chile, um exemplo do fracasso das capitalizações

Reuniões secretas revelam conflitos para Pinochet capitalizar a aposentadoria no Chile

Ditadura e desinformação: as promessas aos trabalhadores para capitalizar a Previdência no Chile

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

4 Comentários

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  1. Estou a caminho da minha aposentadoría,obviamente será na justiça que irei consegui-la.
    Mas,me coloco no lugar dos chilenos e amanhã tal vez seja meu caso, a aí como é que fica se não conseguir e tiver que trabalhar até os 65 anos????? (ou mais,ainda não sei)E se quando receber for uma miséria ??
    ALGUÉM VAI PAGAR POR ISSO,NÃO TENHO DÚVIDAS.
    SE ACHAREM QUE VAI FICAR POR ISSO ,ESTÃO ERRADOS,ALGUÉM VAI SANGRAR.
    EU PROMETO,EU VOU MAIS LEVO UM FILHA DA PUTA JUNTO.

    1. Caro Carpoa, ledo engano da tua parte sobre a segurança que obténs aposentando neste momento, na Grécia, meu caro, aumentaram a contribuição dos aposentados para valores bem mais altos e com isto os velhos gregos começaram a dar tiros na cabeça. Eu sou aposentado e não me iludo com o futuro.

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