Raoni Metuktire, um gigante entre predadores, por Jaqueline Morelo

Ropni Metuktire, mais conhecido como Raoni, é símbolo mundial da luta pela proteção ambiental e defesa dos direitos indígenas

Cacique Raoni | Foto: Fabio Rodrigures Pozzebom/Agência Brasil

Raoni Metuktire, um gigante entre predadores

por Jaqueline Morelo

O líder indígena Raoni divulgou um vídeo no qual faz um apelo à união de todos em defesa do planeta, e afirma que permanecerá na defesa dos povos indígenas, do meio ambiente e da Amazônia. Ele foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz de 2020 mas as redes sociais entenderam como deste ano, e começou a torcida. O Nobel da Paz de 2019 foi concedido ao primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed Ali.

Ropni Metuktire, mais conhecido como Raoni, é símbolo mundial da luta pela proteção ambiental e defesa dos direitos indígenas. O cacique, da etnia Kayapó, tem 89 anos e vive na aldeia Metuktire, na Terra Indígena Capoto/Jarina, no Mato Grosso. Sua trajetória de mais de quatro décadas em defesa da vida no planeta representa uma crítica ao modelo de desenvolvimento associado ao capitalismo predatório, e à defesa e proteção da Amazônia, ameaçada por empresários do agronegócio, madeireiros, grileiros e mineradoras que, orientados por uma ideia ultrapassada de progresso, replicam o modelo explorador de riquezas naturais e seres humanos, instalado neste território desde a invasão portuguesa, redivivo no governo Bolsonaro.

A esse modelo predador Darcy Ribeiro, cuja Fundação indicou Raoni ao prêmio de 2020, se referiu como moinhos de gastar gentes no Brasil colonial. Índios que, escravizados pelos portugueses, se transformavam em mercadorias: “para uso próprio e para a venda; índios inumeráveis, que suprissem as suas necessidades e se renovassem à medida que fossem sendo desgastados; índios que lhes abrissem roças, caçassem, pesassem, cozinhassem, produzissem tudo o que comiam, usavam ou vendiam; índios, peças de carga, que lhes carregassem toda a carga, ao longo dos mais longos e ásperos caminhos”, narrou o antropólogo em O Povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.

Assim, esgotados pelo trabalho, dizimados pelas doenças e guerras, os cerca de 5 milhões de indígenas que aqui viviam em 1500, se reduziram a 1 milhão em apenas três séculos. Diversos povos foram extintos. Atualmente, são 817 mil indígenas no país (Censo 2010 IBGE) e 225 povos.

Mas na metade do século passado, quando Raoni se encontrou com os irmãos Villas Bôas, eram somente cerca de 150 mil indígenas sobreviventes aos processos de extermínio e assimilação cultural. Na época, já como jovem líder de sua aldeia, ele os acompanhou em expedição pela região do Xingu. Com os Villas Bôas aprendeu português, mas nas conversas com líderes mundiais, entrevistas e vídeos, se expressa em kayapó, da família linguística Jê. Os Kayapó valorizam a oratória e se definem como aqueles que falam bem, bonito (Kaben mei).

Naquela expedição, os irmãos Villas Bôas puderam conhecer toda a riqueza cultural das populações do Xingu, o que se revelou fundamental para que passassem a respeitar e valorizar os povos indígenas. Dessa filosofia resultou um modelo de política indigenista que procura garantir a sobrevivência dos povos por meio da criação de parques e reservas protegidos de invasões, nos quais os grupos se protegem também do isolamento uns dos outros, tão propício aos fazendeiros interessados em exterminá-los.

Esse modelo tem sido atacado pelo presidente Bolsonaro, que nega a contribuição desses povos à preservação das florestas e da biodiversidade, ao defender que os indígenas têm que ser integrados rapidamente: “Nosso projeto para o índio é fazê-lo igual a nós”, afirmou, não deixando dúvidas sobre o real objetivo deste governo, o extermínio desses povos – seja por morte matada, seja pela sua incorporação como força de trabalho de reserva do sistema neoliberal.

Bolsonaro não é o primeiro a defender o desaparecimento desses povos. Ao longo do tempo, diversas políticas de “integração” foram adotas pelo Estado brasileiro. Justamente por isso, nas últimas quatro décadas Raoni tem sido uma voz altiva em defesa dos direitos dos povos indígenas. Carismático e obstinado, ganhou visibilidade internacional em 1977, ao protagonizar o documentário que leva seu nome, dirigido pelo belga Jean-Pierre Dutilleux e pelo brasileiro Luiz Carlos Saldanha, mas se tornou mais conhecido pelos brasileiros na Assembleia Constituinte de 1987-1988 quando, empunhando a bandeira do Brasil, fez um discurso histórico pelos direitos indígenas: “Nós somos donos disso aqui, o Brasil é nosso”, declarou.

Logo depois, se tornou amigo do cantor Sting, com quem visitou 17 países em defesa da causa indígena. Denunciou ao mundo as consequências das obras da usina hidrelétrica Belo Monte, no rio Xingu. Apesar de não conseguir evitar a construção da barragem, o projeto original foi remodelado, e foi bem sucedido com a criação da ONG Rainforest Foundation e sua filial brasileira Fundação Mata Virgem. Junto com outras lideranças indígenas, cacique Raoni obteve recursos que viabilizaram a demarcação das terras de indígenas Kayapó e de outras etnias, entre os estados de Mato Grosso e Pará.

Hoje, quando as preocupações do mundo se voltam para a Amazônia, este incansável defensor da vida no planeta, com seu cocar de penas amarelas e botoque no lábio, enfrenta a postura belicosa do presidente Bolsonaro que, após atacá-lo em outras ocasiões, afirmou em tom hostil, na Assembleia Geral da ONU, mês passado: “Acabou o monopólio do senhor Raoni”. Vã tentativa de diminuir a estatura de um gigante.

Bolsonaro, que se apequena cada dia mais aos olhos da comunidade internacional, acredita existir uma única maneira “certa” de estar no mundo. Defende uma ideia atrasada de progresso e, como mandatário de interesses predatórios, já avisou que não pretende demarcar terras indígenas. Também tem afirmado que “o que importa são os recursos (minerais) que estão debaixo da terra”, demonstrando que pretende abrir as áreas da Amazônia para a mineração. Além disso, não tem interesse em investigar os casos de invasões de terras indígenas, que crescem em ritmo acelerado: 160 casos registrados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) somente nos nove primeiros meses do ano — em 2018 foram 109 e em 2017, 96.

Para agravar ainda mais a situação, tem promovido o desmonte da política ambiental, fato denunciado em declaração conjunta de 58 organizações da sociedade civil brasileira, entregue por Raoni ao presidente da França, Emmanuel Macron, no dia 26 de setembro. Na carta, as organizações afirmam que o presidente fez “o desmonte sistemático e deliberado da capacidade operacional do Ibama e de outros órgãos federais responsáveis pela fiscalização de atos ilegais de grilagem de terras públicas, derrubadas e queimadas, e exploração madeireira e mineral”, além de dar declarações que sinalizam impunidade a crimes ambientais.

Em resposta a esse desmonte, Raoni publicou no jornal inglês The Guardian carta dirigida ao presidente, na qual vaticina: “O que você está fazendo mudará o mundo inteiro e destruirá nossa casa – e destruirá sua casa também. Se a terra morrer, se nossa Terra morrer, nenhum de nós será capaz de viver, e todos nós também morreremos. Você destrói nossas terras, envenena o planeta e semeia a morte, porque está perdido. E logo será tarde demais para mudar.”

*Jaqueline Morelo é jornalista, cientista social e mestre em Ciência Política. 

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador