Reabilitando Bertha Lutz, por Walnice Nogueira Galvão

Delegada do Brasil, Bertha Lutz participou das reuniões que criaram a Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, em São Francisco, ao fim da Segunda Guerra.

Reabilitando Bertha Lutz

por Walnice Nogueira Galvão

Dois diretores brasileiros, Guto Barra e Tatiana Issa, tiveram a boa ideia de filmar  Bertha Lutz – A mulher na Carta da ONU (2020). As câmeras seguem duas pesquisadoras na faixa dos 20 anos, uma argelina e outra norueguesa, quando topam com documentação em Londres que as levou a “descobrir” Bertha Lutz. A cientista brasileira, afora ser bióloga e diretora do Museu Nacional, foi também sufragista  e fundadora de uma associação feminista pioneira, com sede no Rio de Janeiro, tão cedo quanto 1919.

Delegada do Brasil, Bertha Lutz participou das reuniões que criaram a Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, em São Francisco, ao fim da Segunda Guerra. O filme mostra o papel relevante que teve ao reivindicar que a igualdade das mulheres figurasse na Carta da ONU. Dos 850 delegados apenas 8 eram mulheres, mas assim mesmo ela insistia que os direitos das mulheres deveriam ser mencionados separadamente. E que, como mostrava a experiência, quando se falava em direitos “humanos”, passava-se a entender que eram só dos homens e não das mulheres também. Outras delegadas lhe disseram que deixasse de apelar para argumentação feminista, que era um comportamento vulgar…. Na continuação, depois de muita luta e muita discussão, conseguiu impor seu ponto de vista e a mulher aparece separadamente na Carta, com paridade de direitos explícita.

Mas as coisas não ficaram por aí. O filme mostra como Bertha foi posteriormente apagada da memória da ONU, esse momento crucial  da luta por emancipação ficando creditado às americanas e inglesas, que à época eram contra  o que ela queria impor. As posições avançadas vinham do hemisfério Sul e eram sistematicamente contraditadas pelo hemisfério Norte, a política imperialista predominando.

Aumenta o interesse do filme sua atualização, com o foco narrativo centrado no presente, ou seja, nas duas pesquisadoras e em sua via crucis por Genebra, Nova York, Brasília e Rio de Janeiro, procurando consertar o erro histórico e reabilitar Bertha. Ninguém liga a mínima, nem na ONU nem na diplomacia brasileira, todos escudados em conversinhas simpáticas e absolutamente inoperantes, todos treinados em enganar os outros com promessas vazias, que não pretendem cumprir.

As duas pesquisadoras espantam-se por não encontrar em lugar nenhum uma menção especial ao nome dela, um busto, um retrato que fosse, naquela imensidão de representações masculinas. Mas todos respondem que é muita gente ilustre, que não daria para contemplar todo mundo etc. Elas têm um objetivo prático: corrigir o site da ONU, que mostra  quatro mulheres (a brasileira, a dominicana, a chinesa e a americana) assinando a Carta da ONU. Como se não bastasse,  a americana é aquela que se manifestou contra a inclusão de vulgaridades feministas… E o site ainda traz uma enorme fotografia de Eleanor Roosevelt, esposa do presidente americano F. D. Roosevelt, segurando a Carta, como se fosse sua autora – e ela sequer esteve na Conferência de São Francisco. Assim o imperialismo foi usurpando a grande jornada militante de Bertha e atribuindo seus feitos às americanas.

As duas pesquisadoras ficam perambulando por três anos, sem convencer ninguém. Entretanto, seus esforços tiveram final feliz. No embalo de movimentos como MeToo (Eu também) e Time`s Up (Agora chega), conseguiram que o desempenho crucial de Bertha fosse reconhecido, embora com relutância, tanto pela ONU como pelo Brasil.

De passagem, é com dor no coração que vemos as duas pesquisando o acervo de Bertha por ela legado ao Museu Nacional, para em seguida vermos imagens do criminoso incêndio de nosso principal museu, em que esse acervo inteirinho, e da importância desta extraordinária pessoa, foi reduzido a cinzas, juntamente com os tesouros ali guardados.

Fazem falta mais filmes mostrando mulheres que sirvam de modelo para as novas gerações, mulheres que foram tornadas invisíveis para a memória coletiva, como é o caso de tantas delas em vários setores da vida cultural e política do país. Constata-se mais uma vez que o trabalho corrosivo do patriarcado, e ainda mais quando reforçado pelo imperialismo, consegue usurpar a militância das mulheres mesmo a posteriori.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Redação

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