Saudade

Álvaro de Campos

 

O absurdo da partida provoca a saudade.

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«Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém,»

 Carlos Calvet. «Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!» Pintura. 1987

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Quando nos iremos, ah quando iremos de aqui?

Quando, do meio destes amigos que não conheço,

Do meio destas maneiras de compreender que não compreendo,

Do meio destas vontades involuntariamente

Tão contrárias à minha, tão contrárias a mim?!

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Ah, navio que partes, que tens por fim partir,

Navio com velas, navio com máquina, navio com remos,

Navio com qualquer coisa com que nos afastemos,

Navio de qualquer modo deixando atrás esta costa,

Esta, a sempre esta costa, esta sempre esta gente,

Só válida à emoção através da saudade futura,

Da saudade, esquecimento que se lembra,

Da saudade, engano que se deslembra da realidade,

Da saudade, remota sensação do incerto

Vago misterioso antepassado que fomos,

Renovação da vida antenatal, […]

Absurdamente surgindo, estática e constelada

Do vácuo dinâmico do mundo.

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Que eu sou daqueles que sofrem sem sofrimento,

Que têm realidade na alma,

Que não são mitos, são a realidade

Que não têm alegria do corpo ou da alma, daqueles

Que vivem pedindo esmola com a vontade de perdê-la…

Eu quero partir, como quem exemplarmente parte.

Para que hei-de estar onde estou se é só onde estou?

Para que hei-de ser sempre eu se eu não posso ser quem sou,

Mas isto tudo é como uma realidade longínqua

Daqueles que não partiram ou daqueles

Cujo lar é nenhum e de memória

Quando, navio […], deixaremos o lar que não temos?

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Navio, navio, vem!

Ó lugre, corveta, barca, vapor de carga, paquete,

Navio carvoeiro, veleiro de mastro, carregado de madeira,

Navio de passageiros de todas as nações diversas,

Navio todos os navios,

Navio possibilidade de ir em todos navios

Indefinidamente, incoerentemente,

À busca de nada, À busca de não buscar,

À busca só de partir.

À busca só de não ser

À primeira morte possível ainda em vida —

O afastamento, a distância, a separar-nos de nós.

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Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém,

É sempre de nós que partimos quando deixamos a costa,

A casa, o campo, a margem, a gare, ou o cais.

Tudo que vimos é nós, vivemos só nós o mundo.

Não temos senão nós dentro e fora de nós,

Não temos nada, não temos nada, não temos nada…

Só a sombra fugaz no chão da caverna no depósito de almas,

Só a brisa breve feita pela passagem da consciência,

Só a gota de água na folha seca, inútil orvalho,

Só a roda multicolor girando branca aos olhos

Do fantasma inteiro que somos,

Lágrima das pálpebras descidas

Do olhar velado divino.

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Navio quem quer que seja, não quero ser eu! Afasta-me

A remo ou vela ou máquina, afasta-me de mim!

Vá. Veja eu o abismo abrir-se entre mim e a costa,

O rio entre mim e a margem.

O mar entre mim e o cais,

A morte, a morte, a morte, entre mim e a vida!

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28-10-1924

 

 

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Fontes: 

1) Álvaro de Campos – Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.  – 59.

2) Arquivo Pessoa

 

Redação

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