Saudado na Flip, Lima Barreto atacava a arrogância e o preconceito da elite

  

     Caricatura do escritor Lima Barreto

 

 

Christian Schwartz e Felipe Botelho Corrêa

da Folha

RESUMO Homenageado da Flip, o carioca Lima Barreto fez carreira num momento de expansão da alfabetização no Brasil e de discussão sobre formas de atingir o novo leitorado. Opôs-se ferozmente ao hermetismo de parte de seus colegas e viu no advento da sociedade de massas a chance de propor mudanças de mentalidade.

 

Reprodução
Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), escritor brasileiro nascido no Rio de Janeiro
O escritor carioca Lima Barreto (1881-1922), autor de “Clara dos Anjos” e “O Homem que Sabia Javanês”

Ao fazer um balanço de carreira em sua última entrevista, o escritor Mário de Andrade (1893-1945) afirmou:

“Sempre considerei o problema máximo dos intelectuais brasileiros a procura de um instrumento de trabalho que os aproximasse do povo. Esta noção proletária da arte […] foi que me levou, desde o início, às pesquisas de uma maneira de exprimir-me em brasileiro. Às vezes com sacrifício da própria obra de arte”.

A conversa não chegara a esse tema aleatoriamente. O entrevistador era Francisco de Assis Barbosa, autor da notável biografia “A Vida de Lima Barreto” (José Olympio), de 1952, só recentemente rivalizada por “Lima Barreto – Triste Visionário” [Companhia das Letras, 704 págs., R$ 69,90, R$ 39,90 em e-book], resultado de dez anos de pesquisa de Lilia Moritz Schwarcz.

Pouco antes, Barbosa tinha sido incumbido de organizar as obras de Barreto para a Livro de Bolso, editora especializada no formato que, na década de 1930, fizera a fama de casas como a alemã Albatross e a britânica Penguin.

Editar Lima Barreto (1881-1922) a preços populares era simbólico, já que, segundo Barbosa, o autor carioca havia sido um dos poucos a combater o escapismo aristocrático dos que entendiam que a cultura devia ser privilégio de uma confraria de eleitos.

   Ficha da segunda internação de Lima Barreto no hospício

Para Mário de Andrade e os modernistas, por sua vez, Lima Barreto era uma referência pela limpeza de sua prosa, de estilo direto, antilitera?ria para a época –uma dicção que respondia a um contexto mais amplo: o da inserção do escritor e da literatura na emergente sociedade de massas.

No Brasil de Lima Barreto, surgia um novo público leitor alfabetizado, espalhado por várias cidades do país. Esse contingente constituía um dos principais motores de expansão da imprensa, especialmente de revistas populares de circulação nacional, como “O Malho”, “Fon-Fon” e “Careta”, todas criadas na primeira década do século 20.

Barreto passaria a publicar nessas revistas colaborações regulares, as quais ganharam há pouco nova projeção com as coletâneas “Sátiras e Outras Subversões” [Penguin-Companhia, 552 págs., R$ 44,90, R$ 30,90 em e-book], que revelou 164 textos inéditos escritos sob pseudônimos, “Crônicas da Bruzundanga” [e-galáxia, R$ 20,90 em e-book], ambas organizadas por Felipe Botelho Corrêa, e “Os Bruzundangas – Numa e a Ninfa” [Carambaia, 512 págs., R$ 129,90], organizada por Beatriz Resende e ilustrada por Fernando Vilela.

Com suas contribuições à imprensa, o escritor mordaz participou ativamente do embate público de ideias daquele momento da República Velha.

  Mapa do Rio de Janeiro em 1911

 

VANGUARDA ILEGÍVEL

Um dos aspectos mais importantes da transformação das multidões do século 19 nas massas do século 20 foi a já citada expansão da alfabetização. Naquele momento, a imprensa popular avultou-se como ameaça ao campo literário estabelecido, pois fez chegar o texto escrito a um leitorado ainda pouco familiarizado ou treinado para lidar com as convenções literárias.

Essa revolução dividiu os meios intelectuais quanto à relação do escritor com a nova ordem social. Um dos polos da contenda temia uma suposta ditadura das massas, contra a qual os intelectuais deveriam declarar guerra –em geral por meio de uma literatura hermética e pouco acessível.

Essa produção obscura foi saudada na Europa como modernismo de vanguarda, segundo alfineta John Carey em “The Intellectuals and the Masses” (os intelectuais e as massas), polêmico livro de 1992. Ali, o professor de Oxford não poupou quase ninguém da aristocracia literária local, mas disparou sua munição mais pesada contra a ficcionista e ensaísta Virginia Woolf (1882-1941).

Ao acusar Woolf e seus pares do círculo de Bloomsbury de um esnobismo cruel com os segmentos menos educados, Carey ataca tanto a conduta daqueles literatos na vida pessoal –registra com desgosto a entrada no diário de Woolf sobre a conversa prosaica de “vadiazinhas ordinárias” entreouvida num banheiro– quanto o modo como o homem e a mulher humildes são retratados em suas obras.

ABAIXO A ARROGÂNCIA

No outro extremo das reações aninhavam-se os intelectuais que entendiam a sociedade de massas como um instrumento poderoso de que o escritor dispunha para propor mudanças nas mentalidades. Era esse o viés da militância de Lima Barreto.

Curiosamente contemporâneo da cena de Bloomsbury, mas na belle époque carioca, o escritor também refletia sobre a ascensão das massas –e com a verve crítica e satírica pela qual tem sido justamente celebrado em publicações recentes e em eventos como a Flip deste ano.

Lima Barreto parecia farejar no ar (além de mais de uma vez ter sentido na pele, literalmente) o preconceito e a olímpica arrogância de uma certa elite. Se aqui, na realidade distante do Brasil da República Velha, ninguém ouvira falar de Virginia Woolf, não escaparam à fina percepção do autor alguns espécimes locais de jovens aristocratas –Woolf, admita-se, oferecia ao menos a contrapartida de seu talento literário.

“Que sabe uma mulher, uma ‘melindrosa’, ali da Avenida, a respeito da dor de uma pobre rapariga criada de servir?”, atacou em “As Mulheres na Academia”, crônica de fevereiro de 1921 para a revista “Careta”. “Nada. Entretanto, ela esteve no Colégio Sion e fala mais ou menos o francês e, do resto dos homens e mulheres que não são da sua roda, ela tem um grande desprezo. Para ela, essa gente não tem alma.”

Para além do fato de que se antecipava ao debate feminista, e ainda o matizava com a questão de classe, lançando mão de provocações que mesmo hoje causariam espécie, Barreto se insurgia, sobretudo, contra a cultura de elite da Primeira República. Desancava práticas e representações dominadas por paradigmas aristocráticos de derivação europeia e adaptadas aos ímpetos de modernização da vida urbana da capital.

  Diploma de Lima Barreto do ginásio

 

LETRAS NOBRES

Houve ainda, entre os intelectuais, quem reagisse até à expansão da educação pública. Muitos chegaram a sugerir que as massas não deveriam ser alfabetizadas, ou seja, que somente os intelectuais deveriam dominar a esfera da cultura escrita, o aprendizado formal permanecendo prerrogativa dos mais equipados a produzir obras grandes e duradouras.

O polímata francês Gustave Le Bon (1841-1931) chegou a afirmar que havia evidências estatísticas de que a criminalidade aumentava com a disseminação da educação e de que a escolarização criava inimigos da sociedade.

A eugenia, conforme também observa John Carey, foi uma das muitas maneiras pelas quais os intelectuais reagiram à ascensão das massas naquela virada de século.

Em 1905, antes mesmo da publicação de seu primeiro livro, Barreto escreveu em seu diário íntimo:

“Vai se estendendo, pelo mundo, a noção de que ha? umas certas raças superiores e umas outras inferiores, e que essa inferioridade, longe de ser transitória, e? eterna e intrínseca a? própria estrutura da raça. Diz-se ainda mais: que as misturas entre essas raças são um vício social, uma praga e não sei que coisa feia mais”.

E, como de costume, embrenhou-se no humor, mesmo tratando do mais grave dos temas:

“Tudo isto se diz em nome da ciência e a coberto da autoridade de sábios alemães. […] O que se diz em alemão e? verdade transcendente. Por exemplo, se eu dissesse em alemão o quadrado tem quatro lados seria uma coisa de um alcance extraordinário, embora no nosso rasteiro português seja uma banalidade e uma quase-verdade”.

A ideia de uma suposta superioridade intelectual alemã dá a deixa para a impressionante previsão sobre o perigo dessas ideias eugênicas que “ainda não saíram dos gabinetes e laboratórios, mas, amanhã, […] cairão sobre as rudes cabeças das massas”.

Lima Barreto conclui a anotação de forma sinistra: “Nossos liberalíssimos tempos verão uns novos judeus”. A Primeira Guerra (1914-18) só começaria dali a nove anos; a Segunda (1939-45), mais de três décadas depois.

  Capa da Revista ‘Floral’, que Lima Barreto dirigiu

 

EUGENIA LITERÁRIA

Mais sutil, embora não menos efetiva, era a ideologia eugênica aplicada ao campo simbólico da escrita e, em particular, da literatura.

Lima Barreto implicava particularmente com o academicismo praticado por filólogos e gramáticos, gente que limitava seu interesse pela cultura aos livros e à visão colonial, evitando o contato cotidiano com as pessoas:

“Criaram uma patologia linguística e deram em estudá-la, já em artigos, já em opúsculos e livros. Termos de argot, de calão, construções populares, modismos profissionais, eles se puseram a analisar, a explicar, ao jeito do que fazem os médicos com as doenças, moléstias, lesões etc.”. (Em “Médicos e Gramáticos”, publicado na “Careta”, em novembro de 1922). Pura eugenia, enfim.

O jovem Lima Barreto planejava de partida que sua obra se debruçasse sobre questões envolvendo os negros e a sociedade brasileira, com livros de ficção que tratassem da história da escravidão no Brasil e de suas consequências.

Contudo, a esse compromisso inicial com uma literatura negra juntaram-se outras preocupações, como a luta contra a referida “eugenia da linguagem”, com a qual vários literatos de sua época foram coniventes. Tal inquietação inevitavelmente desaguava no debate, até hoje inconcluso, sobre a inclusão das massas na vida intelectual brasileira pela via da educação pública.

 

CHRISTIAN SCHWARTZ, 42, pesquisador visitante na FGV e em Cambridge, é jornalista e tradutor.

FELIPE BOTELHO CORRÊA, 34, é doutor pela Universidade de Oxford, pesquisador e professor no King’s College London. 

 
Redação

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