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Seletividade penal ideológica olavista-bolsonariana, modo de usar


Qualquer jurista que quiser compreender o futuro do Direito que está sendo construído no Brasil precisará olhar para o passado.

Os sofistas gregos “…eran indivualistas y subjetivistas. Enseñaban que cada hombre tiene un modo próprio de ver y de conocer las cosas; de lo cual se sigue que no puede existir una verdadera ciencia objetiva y universalmente válida, sino sólo la opinión individual.” (Filosofía del Derecho, Giorgio Del Vecchio, Bosch, Casa Editorial, Barcelona, 1953, p. 50)

Cícero defendeu a tese de que o “…Derecho no está fundado sobre la opinión arbitrária, sino que hai lo justo natural, inmutable y necesario, del que da testemonio la consciência misma del hombre.” (Filosofía del Derecho, Giorgio Del Vecchio, Bosch, Casa Editorial, Barcelona, 1953, p. 68)

O abismo entre os sofistas e Cícero é apenas aparente, pois no mundo antigo escravidão era sempre considerada justa. A hierarquia entre os homens livres e os escravos não dependia da crença de que o Direito deveria ser ou não universalmente válido.

A escravidão é uma manifestação do poder, fenômeno que escapa aos limites do Direito desde a antiguidade clássica. No Brasil o trabalho escravo é crime. Todavia, desde o golpe de 2016 o Estado tem se esforçado para fazer esse crime cair em desuso de duas maneiras: equiparando o trabalho análogo à escravidão ao emprego formalmente regulamentado mediante a redução de direitos trabalhistas e previdenciários; coibindo, de uma maneira ou de outra, o combate ao trabalho escravo.

A Brasil está se reaproximando de seu passado escravocrata. Isso acarretará necessariamente uma revalorização da concepção antiga do Direito que legitimava a hierarquia entre aqueles que devem ser considerados titulares de direitos (os cidadãos livres) e os “outros” cujos interesses passam ao largo das cogitações jurídicas (sejam elas subjetivistas ou universalizantes). Pachukanis acertou na mosca quando disse que:

“…as relações de servidão e domínio podem existir também no modo de produção capitalista, sem se distanciar daquelas formas concretas, a partir das quais surgem como domínio das condições de produção sobre os produtores. E é justamente porque nessas condições não surgem de forma mascarada, como na escravidão e na servidão, que passam despercebidas pelos juristas.” (Teoria Geral do Direito e Marxismo, Evguiéni B. Pachukanis, Boitempo, São Paulo, 2017, p. 145/146)

Desde o golpe de 2016 predomina entre os juristas brasileiros uma certeza: a de que o sistema constitucional entrou em colapso. Alguns continuam lutando contra esse fenômeno. Outros procuram se ajustar aos novos tempos, fazendo de conta que a Constituição Federal pode dizer aquilo que não diz: que os brasileiros são desiguais perante a Lei, competindo ao Estado manter uma hierarquia rígida entre cidadãos livres e os que foram abandonados à própria sorte ou reduzidos pelo neoliberalismo à condição de neo-escravos. Ao preservar a prisão injusta de Lula ignorando a suspeição manifesta de Sérgio Moro para condená-lo, o STF escolheu o lado escuro da força.

Mas também há aqueles que aplaudem as medidas excepcionais e tentam legitimar o aumento da violência. Dentre eles está Olavo de Carvalho. O guru do mito não é jurista, mas se apresenta como tal. Tanto que anunciou um curso gratuito para os policiais https://twitter.com/opropriolavo/status/1152836100655919104?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1152836100655919104&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.tercalivre.com.br%2Folavo-de-carvalho-anuncia-curso-gratis-para-policia-militar%2F. A iniciativa dele foi imediatamente aplaudida por Carlos Bolsonaro, pois seria preciso combater a cultura esquerdista maléfica https://revistaforum.com.br/carlos-bolsonaro-parabeniza-olavo-de-carvalho-por-curso-gratis-para-as-pms-sobre-a-cultura-esquerdista-malefica/.

Aqui mesmo no GGN tenho escrito sobre a decadência do discurso jurídico brasileiro. Portanto, não posso dizer que fiquei surpreso com essa novidade. Ademais, Olavo de Carvalho vai apenas substituir outro rábula que ensinava os policiais.

“Atira, meu filho; é bandido” – disse Marcelo Rezende no seu curso jornalístico-jurídico gratuito ao ver as imagens do motoqueiro caído à mercê do policial.

Marcelo Rezende também não tinha formação jurídica, mas ele trabalhava no Brasil e estava sujeito à legislação brasileira https://jornalggn.com.br/midia/mpf-entra-com-acao-civil-por-violacoes-de-direitos-no-programa-cidade-alerta/. Olavo de Carvalho é um rábula a serviço do bolsonarismo que continuará a salvo nos EUA. Ele não poderá ser incomodado pela justiça brasileira se os seus novos alunos começarem a cometer crimes ao reprimir com mair rigor o que Carlos Bolsonaro chamou de cultura esquerdista maléfica.

O guru do mito e o jornalista que ancorava o programa Cidade Alerta compartilhavam a mesma crença: a de que a Lei deve ser aquilo que os rábulas disserem que ela é. Marcelo Rezende já morreu. Ao contrário dele, porém, Olavo de Carvalho parece acreditar que nenhuma Lei deve garantir a vida e a liberdade de consciência e de manifestação dos esquerdistas. Reprimir a desumanização deles pelos policiais será equiparado a um crime de lesa majestade.

A necessidade de legitimar a perseguição ideológica está acima dos princípios constitucionais que garantem a pluralidade política e a não criminalização da diferença? A resposta de Olavo de Carvalho a essa pergunta certamente será: SIM.

Nesse ponto convém lembrar um detalhe importante. No sistema brasileiro os policiais têm duas missões. A primeira é combater a criminalidade nas ruas. A segunda é legitimar as condenações criminais que ocorrem nos Fóruns. Os depoimentos que eles prestam nos processos são considerados verdadeiros e quase sempre legitimam condenações questionáveis.

“A principal consequência dessa ‘presunção de veracidade’ se dá na dimensão probatória. Em razão de se reconhecer como verdadeiras as declarações dos agentes públicos (presunção relativa) tem-se o fenômeno da inversão do ônus probatório: cabe a quem alegar que a declaração não é verdadeira, ou apresentar versão contrária, comprovar a mentira.

No processo pena, portanto, se os depoimentos dos policiais confirmaram a imputação veiculada na denúncia (e, não raro, a acusação foi formulada com base exclusivamente nas declarações prestadas por essas mesmas pessoas em sede policial), não há alternativa à defesa, a quem caberá provar a inocência do réu. Não há dúvida possível diante do teor das declarações dessas ‘testemunhas acreditadas’. Presumir a veracidade das declarações de uma testemunha (aquela comprometida, em linha de princípio, com os fins da persecução penal) significa conferir a esse relato um valor superior aos demais. Correlata a essa presunção de veracidade há, ainda que velada, uma presunção de desconfiança em relação às demais testemunhas.” (Processo Penal do Espetáculo, Tirant lo Blanch, Florianópolis, 2018, p. 212/213)

Sua majestade Jair Bolsonaro deve ter ficado satisfeito ao saber que seu guru educará as Polícias Militares. Olavo de Carvalho será pago com dinheiro público? Não sei como responder essa pergunta. Os deputados de esquerda deveriam requisitar informações àqueles que fazem a gestão orçamentária.

O presidente brasileiro é ignorante e grosseiro. Mas até mesmo Bolsonaro está em condições de saber que a maioria dos processos criminais são solucionados levando em conta os depoimentos dos policiais. Como os juízes conferem grande valor probatório ao que eles dizem doutriná-los da maneira adequada se torna assim um imperativo categórico da expansão da violência excepcional que a familícia pretende impor aos seus adversários.

O ataque sistemático ao sistema constitucional é evidente. Bolsonaro pretende utilizar um um rábula com fixações anais para reintroduzir na realidade brasileira aquele denominador comum que existia na antiguidade entre os sofistas e Cícero. Numa sociedade rigidamente hierarquizada ninguém poderá, dentro da Lei, defender impunemente os neo-escravos. Questionar uma estrutura social intrinsecamente injusta não poderá ser mais uma tarefa dos juristas. Num mundo em que o Direito é dito por Olavo de Carvalho, a missão dos juízes não será distribuir justiça. “Condena, meu filho; é de esquerda” – será a principal aula de Olavo de Carvalho aos seus pupilos.

A seletividade penal ganhou força quando, invertendo um princípio expresso na Constituição Federal, o ministro do STF Luiz Fux condenou José Dirceu porque ele não provou ser inocente. Ela se tornou escandalosa quando Rafael Braga foi condenado porque estava portando Pinho Sol durante uma manifestação. Futuramente, ninguém que adotar ou for suspeito de adotar uma ideologia considerada de esquerda poderá ser inocentado com base no depoimento de um policial educado pelo rábula do bolsonarismo. Como os advogados não terão condições de monitorar quem foi e quem não foi doutrinado, dificilmente eles conseguirão provar o ódio que o policial devota à vítima que gostaria de ver apodrecendo na prisão.

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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