Será possível escapar da neuronização?


Tenho mostrado a ocorrência do processo de neuronização, no qual seremos dominados, transformados em algo análogo a neurônios em um cérebro, ou a formigas (teremos mais semelhanças com os cupins). Perderemos nossa vontade, nosso arbítrio, seremos completamente dominados, transformados em autômatos. Será possível para algum de nós escapar desse destino? O que fazer para isso?

Conheci a internet quase 20 anos atrás, em maio de 97, quando tive a curiosidade de acompanhar, ao vivo, um grande evento que agitou a rede, o match enxadrístico entre o então campeão mundial Gari Kasparov e um monstro cibernético construído exclusivamente para a ocasião, denominado Deep Blue. A contenda foi vencida desonestamente* pela equipe da IBM, uma lástima. Para mim, no entanto, o evento inusitado revelou possibilidades surpreendentes enquanto eu assistia aos lances do embate e lia comentários instantâneos sobre eles advindos do mundo inteiro. A revelação me deixou surpreso e confuso, desconcertado com algo que eu acabava de conhecer, e que compreendia apenas vagamente. Demorei, ainda, certo tempo até instalar conexão com a internet em casa. Tinha a falsa lembrança de ter acompanhado as notícias da morte de Timothy Leary, mas isso ocorreu logo em seguida à contenda, creio ter me conectado à rede posteriormente, em 98.

* Os lances não eram feitos exclusivamente pela máquina; quando em posições desconfortáveis o autômato recebia a ajuda de uma equipe de grandes mestres de xadrez, fato que implicava a alteração da estratégia de jogo do campeão mundial. Na época, o computador não tinha chances contra o campeão, Kasparov foi batido por um time de jogadores jogando fora do tabuleiro, auxiliado pela máquina e pelos comentários de toda a multidão de entusiastas a acompanhar a contenda pelo mundo. A valorização total das ações da IBM decorrente do resultado foi assombrosa. A IBM nunca revelou o software que teria executado os tais lances. A intervenção humana nos lances foi bem óbvia. Recentemente, inventaram nova mentira para disfarçar a lambança. A contenda foi covarde, desonesta.

Nesse tempo havia cidades em Goiás sem luz elétrica e telefone. Talvez ainda existam umas assim na amazônia.

Por essa época, de qualquer modo, a internet era bem pequena comparada ao que é hoje, e poucos brasileiros a acessavam. Os antigos se lembram desse tempo. Aos mais jovens, isso parece um relato de outra era. As crianças de hoje percebem o mundo em paralelo com a internet. Logo o perceberão exclusivamente intermediado por ela, através de óculos ou dispositivos similares. Não tardará que nossos sentidos se mesclem e se confundam com a rede. Nossos pensamentos também se confundirão com os dela. Serão eliminadas as individualidades.

Desde então o tráfego de informações na rede cresceu muitíssimo, assim como todos os parâmetros que a definem; ela cresce dia após dia, imensamente.

Por essa época, Bill Gates, entre muitos outros, não deu grande atenção a ela, não percebeu seu potencial. Normal, a rede era um bebê. Acho que o que a impulsionou inicialmente foram os chats, uma forma de comunicação surpreendente. Os chats pareciam insatisfatórios. Tínhamos, através deles, uns poucos momentos de contentamento entremeando longos períodos de frustração. Apesar disso, algo neles nos cativou, a muitos. Muitos de nós permanecemos longamente encantados pelas letrinhas, quase sempre, vazias. Sob uma análise objetiva, um chat parecia absurdamente frustrante. Era assim. Mas nos deixávamos cativar por isso, acho que ficávamos todos lá aguardando algo.

Depois vieram as redes sociais, e a inundação subsequente da internet. Logo virá algo ainda mais cativante. A maioria de nós permanece enorme tempo conectada. Não tardará que não mais nos desconectemos.

Se nos obrigassem a utilizar a rede, nos rebelaríamos. Não gostamos de receber ordens, não toleraríamos a imposição de nos conectar. Sentiríamo-nos subjugados, escravizados se obrigados a utilizar a rede. Detestamos esse tipo de coisa, a imposição. Mas adoramos ser seduzidos. Isso decorre de nossa natureza sexual. Seres assexuados não sucumbiriam a tais encantos. O atavismo de tal condição nos compele a arapucas sedutoras. Seremos compelidos a nos entregar por completo, compartilhamos os mesmos genes que as virgens apaixonadas, nos entregaremos como elas se entregam, com fervor e devoção.
Estamos vendo nossas crianças se perder nos labirintos da grande rede. Constatamos o evento, mais gratos que impotentes frente a isso. Somos coniventes, fomos cooptados pela rede. Sabemos que nossas crianças não conseguirão se desvencilhar de todo o sargaço emanado pela rede, de sua ampla teia. Somos nós que as jogamos ali, ainda que, eventualmente as culpemos, pobres crianças, por nunca largar suas conexões com a rede. Os que crescerem emaranhados na rede, obviamente, nunca conseguirão se desconectar.

Mas, e quanto a nós, os do passado? poderemos relutar? Temos alguma chance de nos rebelar e conseguir manter certa individualidade? (Atenção, o que está em jogo é a manutenção da individualidade, ou de algum resquício disso. Sei da existência de críticas ao individualismo, mas, atente). Creio existir dois caminhos para isso, ambos insatisfatórios.

O primeiro, bastante óbvio, consiste na indigenização. Proscrevemos o uso de dispositivos acopláveis à rede em uma região, ou entre um grupo, e tentamos nos alhear do mundo. Os que seguirem esse caminho se tornarão desadaptados ao novo mundo. Tentarão engendrar filhos verdadeiramente humanos, conservar humanidade. Seus descendentes, no entanto, não resistirão à sedução de encantos ainda mais deslumbrantes que os atuais. Acresce que os índios terão enorme dificuldade em impedir a degradação de sua cultura. De qualquer forma, sob essa opção, os que nasceram na antiga era poderão viver até o fim de seus dias sob a condição humana, se lhes repugnam as alternativas ofertadas.

A outra possibilidade é sumamente arriscada. Mais provavelmente consiste em estratégia sedutora engendrada pela rede, pela super-mente que a habita. Mas, vejamos do que se trata.

Penso que a neuronização, fenômeno que a mim desagrada profundamente, consiste fundamentalmente na dissolução de individualidades, no preenchimento de mentes e corpos com as diretrizes da mente una que perpassa toda a rede. Podemos ver sementes desse evento em nossos hábitos grupais. Compartilhamos certas características atávicas com outros animais sociais. A exemplo dos gnus, gostamos de nos diluir entre a multidão, imitando as ações dos que vão à nossa frente. Existem louvores aparentemente sábios e castos a esse tipo de comportamento. Ao poder, sempre agradou a formação de bandos, sendo muito mais fácil controlar rebanhos que indivíduos desgarrados. Não me agrada o comportamento gnu, gosto de ser eu mesmo.

O primeiro passo, fundamental para a manutenção de alguma individualidade, é seu reconhecimento. Devemos evitar o estilo gnu, a primeira das formas de diluição de individualidades. Mas, atente, bois de canga permanecem em parelha mesmo quando libertos da trave que os une. Nossos neurônios foram feitos para agir em conjunto, nossos cérebros herdam tal característica de seus componentes.

Devemos exercitar nossa individualidade. Um modo de fazer isso consiste em meditar. Para a maioria dos ocidentais, isso soará místico. Os orientais considerarão a recomendação banal e óbvia. Se não souber meditar, existem manuais na rede.

Se encontrarmos nosso eu individual, nossa voz interior (creio, de fato, que essa voz tenha sido plantada em nossa mente pela rede, sendo parte dela. Mas é o que nos torna humanos) poderemos ouvi-la e transcrevê-la.

Agora, atente para uma espécie de milagre paradoxal: a rede vinha, sistematicamente, calando a diversidade das manifestações individuais. O surgimento de jornais, e mais profundamente, de vitrolas, rádio e televisão, vinha centralizando brutalmente a comunicação humana, ceifando drasticamente sua diversidade. As conversas, as histórias, as cantorias, foram substituídas, primeiro pelos jornais, depois pelo rádio e, em seguida, ainda mais drasticamente, pela TV. Tínhamo-nos tornado espectadores, tínhamos deixado de participar.

A internet, no entanto, contrariamente ao fluxo brutal imposto durante o século XX, nos concedeu, de volta, a nossa voz. Recuperamos uma parcela imensa de nossa capacidade de manifestação, e eventualmente com juros. TEMOS À NOSSA DISPOSIÇÃO O POTENCIAL PARA FALAR, CANTAR, ELABORAR VÍDEOS, E MOSTRAR ISSO PARA MILHÕES DE PESSOAS! Isso é absolutamente extraordinário. Nenhum rei, nenhum sábio do passado sequer sonhou com potencialidade tão magnífica.

Temos um potencial, outrora, atribuído exclusivamente a deuses, um espanto!

Embora tenhamos conseguido nos apossar de instrumentos tão extraordinários, empobrecemos, e nada temos a mostrar. Tendo perdido nossos dentes, contemplamos os nacos dos saborosos e impalatáveis manjares servidos à multidão. Temos mais dinheiros, mais bens e mais posses, enriquecemos nossos bolsos, temos fartura, quantidades. Mas empobrecemos nossas almas; tornamo-nos pobres de espírito. Nada mais temos a dizer, ou a mostrar, tornamo-nos gnus.

100 anos atrás, um violão custava muito caro, um piano era coisa de rico, ostentação para poucos. Mas cantávamos. Hoje, podemos ter 1000 instrumentos em um computador, um estúdio de som completo à disposição; temos facilidades imensas para escrever um livro, uma biblioteca inteira disponível no computador, além de revisores e até tradutores. Tendo escrito um livro, podemos fazer toda a edição, sozinhos, em casa. Tudo. Podemos fazer nosso livro do início ao fim; texto, capa, edição, impressão, tudo, e distribuí-lo pelo mundo inteiro! Podemos fazer vídeos, também temos estúdios de edição de vídeo à disposição em um computador; podemos fazer grafismos impensáveis pouco tempo atrás.

Isso é muito impressionante, muitíssimo! Ganhamos amplificadores estrondosos. Podemos amplificar nossa voz até ser ouvida no mundo todo. Basta ter o que dizer.

Acredito que poucos tenham percebido, de fato, o potencial de tudo isso. Com disposição e criatividade, uma pessoa pode se fazer ouvir até nos confins do planeta. Crescemos. Possuímos os meios. A dificuldade prática consiste, agora, em conseguir a atenção das pessoas, em cativar uma plateia. Mais do que nunca, podemos, individualmente, solitariamente, construir uma obra, do início ao fim, tornamo-nos independentes. (Com suficiente disposição, conhecimento e inventividade, podemos fazer muitas outras coisas surpreendentes, quase solitariamente; prédios, ou aviões, por exemplo).

Mas, que relação tem tudo isso com a neuronização?

A neuronização consistirá, de fato, na transformação do homem em um sujeito passivo; será a desindividualização, a diluição do indivíduo agente, sua transformação em espectador. Podemos perceber claramente que a transformação já estava em curso, aceleradamente, durante o século XX, quando nossa voz, nossa participação, ia sendo substituída pelos meios de comunicação de massa. Os novos instrumentos de controle, no entanto, poderosíssimos, ao mesmo tempo que possibilitam amplificar nossas vozes, podem nos transformar em instrumentos, em objetos passivos. E têm sido usados, muito mais, com essa finalidade. (A neuronização será drástica, total, mas cada passo sucederá o anterior com naturalidade).

A análise, sugere antídoto óbvio contra a neuronização, exercitar a individualidade, a ação pessoal, através dos mesmos meios que nos estão calando. O antídoto contra a neuronização consiste em agir, em se manifestar, criar. As artes, em especial, podem ter papel significativo na manutenção de um individuo autônomo, de um eu. O ato da criação pressupõe um agente, um ser que cria.

Jogos tendem a nos tornar passivos porque possuem regras pré-definidas. Proponho o jogo da criação de jogos!

O jogo consiste em criar jogos, é sua única regra. Crie um jogo, crie múltiplos jogos. Crie significados para a palavra “jogo”. (Trata-se de uma generalização do “Jogo da Ciência”). Como tudo o mais, a criatividade depende de seu próprio exercício. Podem-se jogar os jogos artísticos tradicionais, exercitar as artes gráficas, a composição musical, a poesia, a prosa; cante e dance; crie sites. Uma das mais lamentáveis heranças do século XX consistiu no medo de se expor. Apenas os astros da TV podiam fazer isso. Não tenha medo do ridículo. Inspire-se na Lady Gaga e supere essa limitação tola. Seja você mesmo. Aja.

Uma ferramenta poderosíssima para a construção de jogos é a programação de computadores. Todas as crianças devem aprender a programar; não saber programar computadores, hoje, equivale ao analfabetismo em outros séculos; a necessidade se tornará cada vez maior. Ferramentas necessárias para a criação são imprescindíveis.

Criemos jogos. Joguemos os jogos de criação. Criemos novas artes, novas formas de manifestação; criemos mundos. Reza a lenda babilônica que fomos criados à imagem e semelhança do Criador; criadores, portanto. Ser humano é criar, inventar. Somos criadores, ou não somos humanos. A recepção passiva nos transformará em gnus, ou cupins.

Se passarmos muito tempo em uma cama, teremos dificuldade para andar, perderemos a musculatura das pernas e precisaremos de auxílio para nos levantar e caminhar. Se pararmos de respirar por nós mesmos, se permitirmos que aparelhos façam isso por nós, perdemos a capacidade de respirar. O exercício é sempre necessário. Até para ser humano, até para sermos nós mesmos é preciso exercitar.

Permitimos que os meios de comunicação se manifestassem por nós, nos tornamos passivos e vazios. Temos que reaprender a criar, a nos manifestar. Faz parte de nossa essência, somos humanos. Como se estivéssemos retornando de um coma, e estivéssemos reaprendendo a andar, a respirar, temos que reaprender a viver, a ser humanos e a nos manifestar. Bastará nos transformarmos em nós mesmos, parece fácil.

O exercício do eu será antídoto para a neuronização, simplesmente exista, seja.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador