Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Série “Além da Imaginação” e a sensibilidade gnóstica atual

A comparação do episódio “Special Service” da terceira temporada da série de TV “Além da Imaginação” (1988-89) com o filme “Show de Truman” (1998) revela didaticamente com a sensibilidade gnóstica atual está por trás de adaptações dos clássicos da TV e do cinema. O episódio de 1988 inspirou  Andrew Niccol a escrever o roteiro de “Show de Truman”: enquanto no episódio original vemos uma típica ficção científica orwelliana onde a paranoia e conspirações dominam o protagonista, na adaptação de Niccol vemos esses mesmos elementos transmutados em drama e sátira social. Mas Niccol colocou algo mais: a suspeita de que o reality show não seja apenas televisivo, mas cósmico.

A postagem anterior sobre o filme brasileiro O Efeito Ilha (1994) e a possibilidade sugerida pelo diretor Luís Alberto Pereira de que Peter Weir teria “chupado” a ideia do filme para construir o roteiro de Show de Truman (Truman Show, 1998), provocou polêmica aqui no blog – clique aqui.

Como vimos, essa suspeita não procede, já que o tema do controle da privacidade que é transformado em show pela mídia são tratados de forma invertida: em O Efeito Ilha, a transmissão televisiva involuntária da vida do protagonista é tratada como “dissonância cognitiva, isto é, elemento dissonante que faz os espectadores tomarem consciência da TV como instrumento de alienação; enquanto em Show de Truman, a vida do protagonista é transformada em um autêntico reality show, como instrumento de alienação para as massas.

No filme brasileiro, o reality show involuntário propicia conscientização; no filme de Weir o reality show é proposital para aprisionar o protagonista e os telespectadores em uma gigantesca indústria publicitária.

Na verdade o roteirista  de Show de Truman, Andrew Niccol (GattacaS1m0ne), teria se inspirado em um episódio da terceira temporada (1988-89) da série Além da Imaginação chamado “Special Service” – veja o episódio abaixo. Enquanto o episódio original de 1989 possuía um tom muito mais de thriller de ficção científica, a adaptação de Weir e Niccol de 1998 foi muito mais um drama e sátira social com algumas pitadas de ficção científica.

Para um blog como esse estudioso da recorrência dos simbolismos gnósticos no cinema, a forma como Weir e Niccol adaptaram a série clássica televisiva  é um flagrante exemplo de como a sensibilidade gnóstica é atuante nas produções cinematográficas.

Se prestarmos bem atenção no argumento do episódio “Special Service”, veremos que explora os temas da paranoia e da desilusão, porém em uma perspectiva ainda clássica – por assim dizer, orwelliana – relativo a George Orwell, autor da distopia 1984

Como veremos, a adaptação de Show de Truman também vai lidar com esses temas centrais, porém dentro de uma cosmologia gnóstica.

O episódio “Special Service”

 O episódio acompanha a vida de John Selig, aquele que passa a vida “com as duas mão no volante”,  constante e prático, um realista. Quando acorda para mais um dia de trabalho para se barbear  no banheiro, o espelho cai revelando uma câmera embutida na parede com uma luz vermelha acesa.

De repente, surge um técnico que munido de uma furadeira recoloca o espelho no lugar. Quando John questiona a existência da câmera, o técnico age como se nada tivesse acontecido e tenta ir embora.

Sob a ameaça de John chamar a polícia, o técnico leva-o para um closet para revelar a verdade sobre tudo: a vida de John é transmitida ao vivo, 24 horas por dia, para todo o planeta. John se questiona como não sabia de nada disso. “Isso é o que torna tudo mais interessante, não saber que está sendo televisionado!”, exclama o técnico.

Antes de ir para o trabalho, sua esposa fala ao seu ouvido: “não estrague tudo, os índices de audiência estão altos”, confirmando a confissão do técnico de que tudo ao redor não passa de um meticuloso reality show. John faz uma busca pela sua casa, encontrando diversas câmeras escondidas. Enquanto isso, o telefone toca com advertências e ameaças de que as câmeras são propriedade particular e que ele não pode arrancá-las das paredes.

Para quem assistiu ao filme Show de Truman, esperamos que o desenrolar do episódio seja idêntico ao filme de 1998: que tudo ao redor (a casa, a rua, a cidade etc.) seja, na verdade, uma gigantesca cenografia produzida para criar a ilusão da realidade no protagonista. Mas o filme não segue esse que seria um argumento gnóstico.

Um clássico orwelliano

Assim como no filme de Peter Weir, o episódio explora temas clássicos do gnosticismo: a paranoia e a desilusão.

Mas no decorrer do episódio percebemos uma diferença fundamental: esses temas ainda são tratados da forma clássica orwelliana – há um complô do qual participaram inclusive vizinhos para que a conspiração televisiva fosse escondida de John Selig. A noção de realidade não foi desconstruída de forma radical como em Show de Truman (pressuposto da cosmologia gnóstica de que toda a realidade é uma ilusão produzida e mantida por um Demiurgo).

Como uma abordagem clássica orwelliana, o episódio “Special Service” funde em um único bloco a paranoia e a realidade: há um Estado, mídia ou conspiração de vizinhos contra John Selig. Temos aqui a paranoia abordada num viés narcísico, isto é, há um complô apenas contra o protagonista. Sua desilusão não desconstrói a realidade como em Show de Truman: ela apenas faz o protagonista cair em si de que é o pivô de uma rede de conspirações.

Ao contrário, a paranoia numa abordagem gnóstica é mais radical pois desconstrói o próprio princípio de realidade. Diferente do viés narcísico, a paranoia gnóstica é cósmica: a própria realidade é uma construção artificial para aprisionar não apenas o protagonista, mas todos.

O reality show cósmico

Show de Truman: a possibilidade gnóstica 
de existir um reality show cósmico

Por isso, o episódio “Special Service” centraliza a tecnologia do reality show apenas nas câmeras ocultas. Não há o aspecto da construção cenográfica da realidade como em filmes gnósticos como Show de TrumanCidade das Sombras (Dark City, 1998) ou Vidas em Jogo (The Game, 1997).

https://www.youtube.com/watch?v=0FsE1RFRH1I

Legendas em português aqui

 
Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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