Significado técnico da expressão “julgamento jurídico e político do impeachment”, pelo Prof. Dr. Afranio Silva Jardim/UERJ

Do Facebook de Afranio Silva Jardim – Professor associado de Direito Processual Penal da UERJ. Mestre e Livre-docente em Direito Processual. Procurador de Justiça do ERJ (aposentado)

Currículo Lattes: aqui

Sobre o tema, ver também post “Por que o STF precisa apreciar o impeachment”, de nossa autoria, e “Analista/STF: impeachment é político mas com balizas jurídicas“.

Dica: Alexandre Pontes, leitor do GGN, via twitter.

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O SIGNIFICADO TÉCNICO DA EXPRESSÃO ‘JULGAMENTO JURÍDICO E POLÍTICO DO IMPEACHMENT’ DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA.

Inicialmente, cabe esclarecer que o tema é complexo, mas tentaremos produzir um texto sucinto e acessível a todos, na medida do possível, levando em consideração que aqui os leitores não são necessariamente profissionais da área do Direito.

Começo por uma indagação hipotética e até mesmo extravagante: se o Presidente da República fosse afastado do seu cargo, pelo Congresso Nacional, através de uma ação de impeachment, em decorrência de não ter pago o aluguel de seu apartamento, constando da denúncia que tal omissão caracterizaria crime de responsabilidade, pergunto agora: tal estranha decisão poderia ou não ser objeto de controle jurisdicional pelo Supremo Tribunal Federal?

Até mesmo pelo bom senso, acho que todos diriam que sim. Mas aí surgiria uma outra indagação: o julgamento do impeachment não é político?

Para resolver tais questões, passo a enfrentá-las dentro dos sistemas do Direito Constitucional e do Direito Processual.

A Constituição da República é expressa em assegurar os princípios jurídicos do contraditório e da ampla defesa. Isto, para qualquer tipo de processo. Um dos pressupostos destes princípios é a exigência de que haja correlação entre a acusação e o julgamento. Em outras palavras: ninguém pode ser julgado por conduta que não lhe foi imputada na denúncia.

Por outro lado, a toda evidência, a conduta imputada, comissiva ou omissiva, deve encontrar tipicidade penal em alguma norma jurídica anterior aos fatos.

No impeachment, surge um primeiro problema. Como no Tribunal do Júri, o julgamento é realizado através de votos baseados no chamado “sistema da íntima convicção”. Vale dizer, os parlamentares ( como os jurados) não precisam motivar a sua decisão, ficando difícil saber se eles formaram a sua convicção por fatos não narrados na acusação. Entretanto, pela antiga e universal “teoria dos motivos determinantes”, cunhada principalmente pelo publicista Gaston Jèze para os atos discricionários, se é explicitada uma específica motivação do ato ou voto, passa ela a ser submetida ao crivo do Poder Judiciário.

Desta forma, os votos que, em qualquer fase do processo de impeachment, vierem motivados em fatos não narrados na peça acusatória, podem ser anulados pelo Poder Judiciário, já que violadores do princípio da correlação da acusação e julgamento, pois o acusado teria sido condenado por conduta da qual não se defendeu. Como se defender do que não foi acusado?

Até aqui estamos tratando de uma questão jurídica preliminar e que, por conseguinte, não é o cerne do nosso breve e modesto estudo. Passemos então à questão central.

No processo de impedimento do Presidente da República, exige-se um julgamento jurídico, na medida em que ele pressupõe uma acusação de um crime de responsabilidade. Esta aferição da tipicidade penal, sempre partindo exclusivamente do que está narrado na denúncia, é uma questão estritamente jurídica e, consequentemente, suscetível de controle pelo Poder Judiciário. Por isso, o Supremo Tribunal Federal pode e deve anular o julgamento da Câmara dos Deputados que admita a instauração do processo pelo fato de o Presidente não ter pago o aluguel, conforme hipotética indagação feita anteriormente. Com mais razão, deve ser anulado o julgamento do Senado que julgue procedente o pedido de impeachment formulado na denúncia originária e do relatório da Comissão Especial. Seria até mesmo bizarro que o Presidente fosse afastado do Poder por não ter pago o seu aluguel e o Poder Judiciário nada pudesse fazer.

Entendo que a tipicidade da conduta narrada no impeachment funciona como uma verdadeira “justa causa” para legitimar a instauração do respectivo processo. Explico.

Atualmente, tendo em vista a nova redação do artigo 395 do Código de Processo Penal, faço a distinção entre o chamado “suporte probatório mínimo”, que deve lastrear toda acusação (quarta condição da ação penal), da denominada categoria “justa causa”, que se apresenta como preliminar de mérito. Vale dizer, a constatação “prima facie” da tipicidade da conduta imputada na denúncia é indispensável à instauração do próprio processo. Por isso que o revogado art.43 do Cod. Proc. Penal já dizia que a denúncia deveria ser rejeitada, liminarmente, se “o fato narrado evidentemente não constituir crime”.

Todas estas questões, por serem eminentemente jurídicas e relacionadas aos Direitos Fundamentais previstos na Constituição Federal, não podem ser subtraídas da apreciação do Poder Judiciário, no caso, do Supremo Tribunal Federal.

O estabelecimento destas premissas justifica uma derradeira indagação: e o aspecto político da decisão de impeachment? Respondo adiante.

Demonstrada que esteja a tipicidade da conduta imputada ao Presidente da República, os parlamentares podem deixar de votar pela procedência do pedido de impedimento do Presidente da República por motivos de oportunidade ou conveniência políticas. Aqui é que entra o aspecto político da decisão. O contrário não é possível, ou seja, não pode o Congresso Nacional afastar o Presidente da República, por motivos políticos, sem que esteja provada uma conduta tipificada como crime de responsabilidade.

Mal comparando, é o que hoje ocorre nos julgamentos do Tribunal do Júri, tendo em vista a atual exigência de um quesito genérico, indagando aos jurados se absolvem o réu, após os quesitos da autoria e materialidade do crime. Assim, entendemos que, para condenar, se faz necessário que a acusação alegue e prove que o réu praticou uma conduta típica, ilícita e culpável. Nada obstante tal prova, os jurados podem absolver o réu por motivos fora do Direito, segundo juízos não explicitados (decisão não motivada) de conveniência ou não de sujeitar aquele réu ao nosso sistema carcerário. Usam a expressão “absolvição por clemência”, política no sentido puro da palavra.

Em relação ao Tribunal do Júri, buscando restaurar a sua concepção originária e tendo em vista a mudança legislativa acima apontada, cabe aqui mencionar o brilhante estudo doutrinário elaborado pela falecida filha Eliete Costa Silva Jardim, cujo título é “ Tribunal do Júri – absolvição fundada no quesito genérico: ausência de vinculação à prova dos autos e irrecorribilidade”, constante de livro publicado em nossa homenagem e também no site “emporiodireito.com.br”. A menção ao Tribunal do Júri, no estudo do processo de impeachment, se justifica por se tratarem de duas ações, cujo julgamento não se dá por juízes togados, de natureza condenatória e que fogem à sistemática de julgamento dos demais processos previstos no nosso ordenamento jurídico.

Em resumo, o Presidente da República não pode ser julgado, no processo de impeachment, por conduta diversa da que lhe foi imputada na denúncia (a qual vincula os relatórios das Comissões Especiais). Tal conduta, narrada na peça acusatória, tem que encontrar clara tipicidade na norma jurídica que descreva o crime de responsabilidade. Preenchidos tais requisitos, que podem ser apreciados pelo Poder Judiciário, as Casas do Congresso Nacional farão seus julgamentos políticos, podendo ou não autorizar a instauração do processo e condenar ou não o Presidente da República, segundo critérios de oportunidade e conveniência. Aqui, repita-se, reside a natureza política do impeachment.

Rio de Janeiro, abril de 2016.

 

Redação

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