Sob um ponto de vista singular, por Wilson Solon

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Fora de Quadro

Sob um ponto de vista singular

por Wilson Solon

Volto ao ponto de vista que reivindiquei como singular, no depoimento anterior. Se não para comprová-lo, pelo menos para justificá-lo, como foi dito, através dos infortúnios que conheci no audiovisual brasileiro do final do último século.

Apesar de ver aprovado (mas jamais produzido) pela Embrafilme meu segundo projeto de curta-metragem em 35 mm, também já se via o fantasma da extinção assediar a empresa, postergar os prazos das várias produções já contratadas, e aterrorizar ainda mais os que nem sequer tiveram a minha sorte de ter sido selecionado (pela segunda vez). Enfim, aos mais e aos menos ortodoxos em relação ao vídeo (ou apenas preconceituosos, como eu), só nos restava aguardar os acontecimentos.

Diante de tantas dúvidas, concluí ser prudente relativizar os preconceitos e esperar por dias melhores na televisão. Assim, aceitei o convite da cineasta Tizuka Yamasaki, sob cuja direção-geral me tornei o diretor de exteriores da novela Kananga do Japão – uma ousada e (em que pese a suspeição) memorável superprodução da TV Manchete. Permaneci na emissora por cerca de dois anos apenas, mas o suficiente para acrescentar ao currículo (além de outro prêmio) um especial musical e uma minissérie. Já então, como diretor-geral.

Aos 33 anos de idade, eu já me culpava por ser, ora velho demais, ora ambicioso de menos, para não arriscar voos mais altos na dramaturgia. Nessa altura, a emissora dos Bloch, apesar dos êxitos alcançados, já emitia também os primeiros sinais de sua notória incompetência administrativa; que, cedo ou tarde, começaria a comprometer a criatividade e a qualidade artísticas até então nunca alcançadas na televisão brasileira.

Nem sequer na concorrente dos Marinho. Este clã, no entanto, sempre dispôs das não menos notórias prerrogativas políticas e financeiras que, aliadas às debilidades estruturais da própria Manchete, afinal conseguiriam asfixiar e decretar o fim (em 1999) da única concorrente que chegara a beliscar a supremacia global junto às audiências.

Mas ainda no início dos 90 (quando saí da Manchete), parecia haver apenas duas opções de ascensão profissional para um cineasta: ir para a Globo, ou voltar às origens (como preferi) e tentar levantar a produção de um longa-metragem independente. A rigor, duas alternativas autofágicas: a primeira, para um brizolista convicto; a segunda, para um entusiasta da “magia do cinema”, e amante do ‘realismo mágico’, em particular. Na verdade, mais um personagem irreal de Garcia Marques, com meu “amor nos tempos do Collor”.

Ainda assim, mudei-me para o Rio Grande do Sul, onde obtive os patrocínios necessários ao filme (com o inestimável apoio do genial Luís Fernando e o carinho de toda a família Veríssimo), até que nos assestaram o golpe do desastroso Plano Collor e seu confisco de investimentos. Em suma, ao longo dessa última década do século, só me restou canalizar uma imponderável “criatividade” artística para outras atividades (teatrais e literárias). Mas ainda decidi fazer mais uma concessão às telenovelas, dessa vez na Band (nunca na Globo).

A emissora dos Saad parecia alimentar uma louvável pretensão de concorrer com as outras duas (ou três, com a dos Abravanel) na produção de “teledramaturgia”. Por dramática ironia, porém, o melhor que a Band conseguiu foi conjugar – e superar – a arrogância dos Marinho e a inoperância dos Bloch. Na melhor das hipóteses, os diretores (e artistas) pareciam ter sido contratados para tornar ainda piores as já sofríveis produções de ficção da Band. Na prática, nenhum Spielberg seria capaz de ocultar do público seus “defeitos especiais” intrínsecos.

Na última década do século, portanto, sobretudo na segunda metade, os mais ativos criadores de imagens já haviam se convertido em passivos espectadores da destruição da imagem de um Brasil soberano. Após a queda do dublê de atleta e herói collorido, era a vez de assistirmos à performance do novo dublê – de “economista” e “sociólogo” – igualmente repaginado pelos roteiristas globais: Fernando Henrique Cardoso (e sua “Privataria Tucana”).

Não bastasse ser mais um personagem fake, que contava com o mesmo patrocínio (mútuo, aliás) da Globo, FHC trazia ainda o próprio roteiro paradoxal – ou neoliberal – sob a sóbria beca do intelectual “de esquerda” europeu, em substituição ao bizarro figurino anteriormente eleito – do super-herói americano. Em outras palavras, seria mais um remake (como algumas telenovelas) apenas readaptado para convencer os trouxas de que sempre “vale a pena ver de novo” o que todos já sabíamos ser uma tragédia anunciada (ou uma pré-estreia da mesma quadrilha que hoje atua em Brasília).

A chamada era FHC correspondeu ao epílogo das missões anteriores, que nem os militares nem o Collor tiveram capacidade ou tempo de entregar – em nome dos “contratos” com a Globo – ao capitalismo internacional; vale dizer, ao “Mercado” e aos norte-americanos. Que foram, por sua vez, os patrocinadores originais das próprias “Organizações” contratantes (e criminosas, por lesa-pátria). Assim se fechava o ciclo de aniquilação – da imagem e literal – do País, no cenário mundial.

Desde então, nos meios audiovisuais, originalidade e autonomia criativa não passariam de arremedos de si mesmas, ou meros discursos inócuos de ficção. Nesse caso, entre participar de um jogo de cartas marcadas, em solo nacional, ou atirar-me à imprevisibilidade de uma aventura internacional, obviamente, não esperei que viesse um diabo novo e escolhesse por mim. Parti para a Europa antes mesmo da virada do milênio, onde permaneci por toda a década seguinte.

Nessa altura, a propósito dos movimentos opostos que investigamos, nem sequer pensei se minha decisão resultaria da coragem ou da covardia, diante dos destinos nacional e pessoal. Ainda explicarei essas motivações antagônicas (que também atormentam outros brasileiros). Desde logo, a minha opção parecia ser a antítese da obstinação do Lula, em continuar a enfrentar nossos adversários comuns, embora bem mais palatáveis para ele do que para mim.

O PT já havia se consolidado como uma base de apoio ideológico – e independente do pensamento opressor das nossas elites – algo com que os cineastas jamais poderiam sonhar, em terras arrasadas pelas imagens globais e neoliberais. Ou talvez sim, se utilizassem as duas ferramentas básicas dos diretores de imagens, ainda que sujeitas à corrosão, pela vaidade: a primeira, a consciência do mundo exterior (ao ego); a segunda, a liberdade de pensar o mundo interior (sem as perturbações do egoísmo).

Vaidosamente, talvez, acreditei que possuía e poderia usar essas ferramentas em qualquer país do mundo, como o patrimônio maior de um artista. E não só: também dos políticos mais dignos de respeito, como o Brizola e o Lula (que o provaria três anos mais tarde, aqui mesmo no Brasil). Se nunca nos vimos de perto (e ele a mim, nem de longe), nossas distâncias aparentes não impediriam os resultados análogos, diante dos mesmos adversários; guardadas, é claro, as proporções das respectivas vitórias (que nem sequer permitiriam comparações).

Seja como for, Lula conseguiu neutralizar as “tramas” globais e assumir a presidência, por coincidência, no mesmo ano de 2003 em que conquistei mais um triunfo profissional – então o maior prêmio da televisão de Portugal – com uma série de época (O Processo dos Távoras) ou, a rigor, com uma série de ironias. Os dois primeiros programas consecutivos que realizei, nos dois anos anteriores (desde a chegada naquele belo e querido país), já tinham sido “nomeados”, como eles dizem, para o mesmo prêmio, sem êxito.

Nas duas vezes, inevitavelmente, pensei nos fracassos eleitorais do Lula – o mais constante “segundo lugar”, desde a primeira eleição presidencial que disputou. Mas ele era também o candidato que já havia demonstrado mais coragem, resiliência e consistência para permanecer no posto por tanto tempo. Até que ocupasse o cargo de primeiro mandatário da nação.

No mesmo ano, o Globo de Ouro (até hoje patrocinado por uma emissora privada), para surpresa minha, foi concedido à referida série histórica e política da emissora estatal de Portugal (RTP). Para quem jamais perseguiu essa “honra” (inclusive a dispensava), mais irônicos do que o nome do prêmio, eram o nome e o fato de a emissora (SIC-Sociedade “Independente” de Comunicação) ter como um dos sócios fundadores a Rede Globo de Televisão, e retransmitir quase todas as suas novelas em terras lusitanas.

Na minha perspectiva (de constante “segundo lugar”), nem sequer haveria motivos para estar presente na cerimônia de premiação, transmitida ao vivo (e um dos campeões de audiência em Portugal). Mas afinal vi e ouvi em casa, ao lado de alguns amigos, o meu nome ser anunciado pela televisão. De fato, uma visão surpreendente. Mas a propósito das três perspectivas singulares já mencionadas, cabe acrescentar, em relação ao Lula, que não vi sua eleição nem vivi um único mês no Brasil, durante os seus governos.

O que em nada comprometeu a isenção do meu ponto de vista. Ao contrário, o autoexílio até o ampliou, literalmente, tanto pelo efetivo “distanciamento” crítico de seus feitos (do outro lado do Atlântico) quanto pela percepção mais nítida das novas “imagens do Brasil”, cada vez mais respeitáveis e respeitadas no exterior. Como nunca haviam sido até então.

Ainda assim, nada do que foi dito evidenciaria a singularidade do meu ponto de vista. Outros cineastas também foram para a televisão (embora este, pouco permanecesse nela, no próprio país); alguns também emigraram (embora talvez não por tanto tempo); e muitos devem ter sido igualmente premiados em terras estrangeiras. Como os próprios diretores da Globo, que explodem de orgulho e contentamento, cada vez que seus trabalhos televisivos são reconhecidos pelos americanos, em Nova York.

Não me cabe retirar (nem reconhecer) o mérito de tais profissionais. Apenas me intriga que produções “globais” (de ficção ou “jornalísticas”) jamais vistas pelo público americano, ainda assim, sejam agraciadas com uma frequência inversamente proporcional às audiências. Por outro lado, não chega a surpreender que, em última análise (e nas últimas décadas), os critérios e os “julgadores” se confundam com os próprios patrocinadores – ideológicos, políticos e financeiros – da família Marinho.

Mas o que penso ter tornado o meu ponto de vista realmente único não foram os movimentos erráticos, as opções profissionais em si, nem alguns prêmios que recebi; senão o critério pessoal de não por os pés em nenhuma empresa do grupo Globo, nem mesmo para divulgar meus trabalhos. Os onipotentes senhores dos destinos e empregos alheios certamente diriam que tampouco fui convidado; ou que os “globais” nem sequer tomaram conhecimento de minha existência.

Talvez, em parte. Mas posso citar dezenas (ou centenas) de profissionais – técnicos, artistas, diretores e assistentes – que já trabalharam sob a minha direção e foram pedir a guarida “protetora” da Globo, por opção ou falta de outra qualquer. Modéstia à parte, creio que também estaria entre eles, se o desejasse. Se não estive (e cheguei a ser ridicularizado por isso), convém reinterpretar o conteúdo semântico do que muitos consideraram “radicalismo” ou “orgulho” – de uma esquerda já então “ultrapassada” (seria mesmo, diante dos retrocessos tão brutais a que chegamos?).

Há décadas, adquiri e preservei a consciência do que ameaçava meu compromisso – realmente radical – com a liberdade de ter e expressar os próprios pensamentos; ou de não ter manipulado os alheios – como de fato me orgulho. Pela mesma lógica (ou postura ideológica, se o quiserem), nunca exerci nenhum tipo de patrulha sobre quem pensasse diferente. Razão pela qual optei pelo silêncio, não menos radical. Postura que somente agora sou obrigado a alterar, como vítima de uma violação da cidadania.

Mas termino pelo princípio (do primeiro depoimento), para destacar o que também foi alterado na ingênua expressão “luzes, câmera, ação”. Ou o que hoje tomou o sentido inverso do passado. Não nego que as luzes conservaram toda a sua magia, assim como as câmeras se multiplicaram em proporções antes inimagináveis (sobretudo na era da internet). E ambas continuam a bombardear nossas retinas com quantidades de informações virtualmente inassimiláveis. As ações, no entanto, há muito que perderam a ingenuidade original – quer na ficção, quer na realidade.

Tais fronteiras, a rigor, não parecem ter sido apenas removidas, mas completamente invertidas, em sua lógica e dinâmica próprias. Explico o óbvio: houve tempo em que as “ações” mais dignas de registros – nos palcos, nos cenários, ou na vida real – determinavam o posicionamento das luzes e das câmeras, para que a magia da arte e os dramas da vida (ou vice-versa) fossem captados em toda a sua integridade.

Hoje, ao contrário, no Brasil retratado pela Globo (e suas imitadoras), um oligopólio de famílias – nem tão dignas nem tão íntegras – é quem de fato posiciona os refletores e as câmeras. Quando não “cenografa” uma locação predeterminada, onde punhados de artistas deslumbrados deverão desenvolver suas ações. Ou permanecer calados, para que tudo pareça “real” e as multidões idiotizadas também cumpram o seu papel previamente roteirizado. E não só nas novelas, “naturalmente” vocacionadas para alienar, mas igualmente nos noticiários manipulados para ocultar a verdade. Ou disseminar as mentiras deliberadas do “império global”.

Se o Lula não soube, não pôde ou não quis combatê-lo, já pagou o seu preço. E não pode ser acusado de cumplicidade, porque nunca deixou de oferecer ao País infinitamente mais do que recebeu dele e de sua porta-voz oficiosa. Analogamente (apesar das diferenças), se este ex-cineasta optou pelo exílio e pelo silêncio, em respeito aos colegas que trilharam o caminho oposto, nem sequer posso considerar que paguei um preço alto.

Na verdade, ganhei bem mais do que ambicionei. Não me refiro apenas a algum prestígio profissional, aqui e lá fora, nem ao respeito de uma minoria que pensava como eu. Nem a qualquer gênero de remuneração material. Ao contrário, recebi da vida pelo menos duas recompensas imateriais, para as quais não seria possível estabelecer um preço: a primeira, o prazer de desfrutar da plena liberdade mental; a segunda, a certeza de que existe vida inteligente fora da Globo.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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