Sobre os muros e muralhas que os norte-americanos imaginaram e constroem

No princípio não havia verbo, apenas competição por água, frutos e presas, assim como pelos territórios onde estas coisas essenciais existiam. Este estágio pré social foi referido por Hobbes como aquele predominava a agressão: “Homo homini lupus.”  Os conflitos, portanto, não nasceram com a “humanidade”. A agressão é algo que não depende da capacidade ou habilidade desenvolvida pelo homo sapiens de representar o mundo para si mesmo e para os seus iguais. Antes da civilização havia agressão. E a representação “outro” (o inimigo, o diferente, aquele que não pertence à mesma família, clã, tribo, cidade, nação, Estado etc…) apenas e tão somente sofisticou e acrescentou motivos à agressão pré-existente.

Aquele que agride sabe que pode ser agredido. “Homo homini lupus” significa inevitavelmente que aquele que se faz lobo também pode virar presa. Desejo de agredir e medo de ser agredido. A combinação destes dois sentimentos levou o homem a idealizar as muralhas antes mesmo de começar a construí-las.

Uma muralha contém, protege e mantém fora o que se considera indesejado. Se a muralha é mais alta, mais larga, construída de pedra, tanto melhor. Tudo o que conhecemos das guerras antigas estão de alguma maneira relacionada às formas pelas quais os homens conseguiam superar estas barreiras.

A queda de Tróia foi não foi precedida pela destruição da muralha da cidade, pois um ardil superou a proteção contra a qual a força inútil dos gregos se debateu por mais de uma década. A queda de Jericó só ocorreu porque a muralha da cidade cedeu. Mas só os tolos acreditam que Deus derrubou as muralhas porque os hebreus tocaram suas trompas. O mais provável é que eles tenham feito isto para atrair a atenção dos habitantes da cidade enquanto os sapadores trabalhavam no subterrâneo para minar a base da proteção que envolvia a cidade. Os engodos sobrepujam as maiores barreiras. Esta é uma lição que os norte-americanos ainda não aprenderam ou que eles desaprenderam antes da queda de Wall Street.

Tito Lívio narrou milhares de guerras romanas. Lá estão relacionadas para a eternidade todas as formas de entrar numa cidade protegida: o emprego de máquinas de assédio (torres, aríetes, etc…), o emprego de sapadores para arruinar as fundações das muralhas, a construção de terraplenos para que as tropas pudessem chegar ao beiral da mesma. Isto além do suborno, da invasão furtiva, dos acordos espúrios com facções políticas que não desejavam conflitos, etc…

A imponente e santificada muralha de Roma deixou os bárbaros do lado de fora da cidade por séculos enquanto os romanos invadiam centenas de outras cidades e romanizavam os povos que não desejavam escravizar. Aníbal Barca derrotou os romanos três vezes durante a II Guerra Púnica, mas quando acampou próximo à cidade desistiu de conquistá-la. A muralha de Roma derrotou seu ímpeto. Seis séculos depois os bárbaros de Alarico invadiriam Roma pela Porta Salária, que foi aberta para os invasores. Antes disto, porém, os bárbaros haviam destruído os aquedutos privando os romanos de água. É possível vencer batalhas sem ganhar a guerra por causa do desânimo provocado por uma muralha. Mas também é possível ganhar a guerra sem ter que derrubar uma barreira intransponível. Estas são lições antigas que raramente são lembradas por aqueles que constroem muralhas no espaço.

Na China diversas muralhas foram sendo construídas por reinos independentes até que estes reinos foram derrotados e um imperador mandou ligar estas muralhas e reforçá-las até que os bárbaros ficassem fora. Os chineses ficaram dentro. Mas dentro da China obviamente existiam chineses menos iguais que eventualmente gostariam muito de sair. A muralha é também uma barreira que preserva diferenças.

Fenômeno semelhante ocorreu em Atenas. Pouco antes da I Guerra Médica os atenienses começaram a cercar sua cidade por uma muralha colossal. Os povos que habitavam nas redondezas de Atenas foram forçados a abandonar suas vilas para viver dentro da cidade murada (Sinesismo). A diferença entre os nascidos em Atenas e os recém chegados não foi um problema durante a guerra contra os persas, pois o medo do outro quase sempre congela aspirações de igualdade. Depois da guerra, porém, a cidade entrou em ebulição. A democracia nasceu para que a cidade de Atenas continuasse existindo como uma unidade política contida pelas muralhas.

Sempre que penso neste assunto fico intrigado. A ironia é evidente. O mais livre dos regimes políticos nasceu justamente por causa das diferenças contidas pela muralha de Atenas. A barreira construída para separar a cidade dos persas, também uniu povos diferentes forçados a habitá-la e transformou politicamente a própria cidade. Mas quando olhamos para Atenas, raramente nos damos conta de que a democracia foi também um fenômeno urbanístico. Os gregos antes do Sinecismo eram livres, se tornaram mais livres justamente porque abdicaram de sua liberdade.

A democracia ateniense durou pouco tempo. O regime que salvou a cidade de Atenas da guerra civil foi consumido pela Guerra do Peloponeso. Ironicamente, os espartanos que haviam freado a invasão de Xérxes nas Termópilas e foram decisivos para a derrota dos invasores persas em Platéia derrotaram seus democráticos inimigos porque o Império Persa financiou a frota de Esparta. A primeira coisa que os novos donos de Atenas fizeram foi justamente destruir a muralha da cidade. Portanto, a destruição da democracia ateniense também foi um fenômeno urbanístico. Aquilo que aprisionava os atenienses e preservava a liberdade deles deixou de existir no exato momento em que eles se tornaram servos de Esparta. Não poucos colaboraram com o novo regime acreditando que estavam enfim mais livres do que haviam sido durante a guerra. 

Desde que o canhão foi inventado as muralhas se tornaram obsoletas? Sim e não. A resposta é sim, mas apenas se a cidade estivesse ao alcance de um canhão. Neste caso a diplomacia seria mais indicada do que o conflito aberto porque a barreira inevitavelmente seria destruída. A resposta é não, desde que houvesse algum outro tipo de barreira que desse alguma garantia de segurança.

A colonização do Novo Mundo foi, em grande medida e especialmente nos EUA, fruto de uma tentativa de preservar a mentalidade da muralha. O mar oceano passou a ser imaginado como uma imensa muralha, além do qual estavam os inimigos dos protestantes. No novo continente, contudo, já havia gente e os protestantes se limitaram a colonizar o litoral. Quando finalmente se sentiram seguros e fortalecidos eles simplesmente exterminaram os índios, que não tinham para onde ir e não podiam se esconder atrás de muralhas.

Após séculos de conflitos maiores e menores, protestantes e católicos acabaram se ajustando bem dentro da União Européia. Os norte-americanos preferiram a tranqüilidade do isolamento e se limitaram a fazer guerras em países distantes (Filipinas, Coréia do Norte, Vietnã, Iraque, etc…). Eles só se deram conta que os oceanos não eram muralhas intransponíveis quando descobriram que podiam ser mortalmente feridos pelos mísseis balísticos nucleares intercontinentais da URSS. A mentalidade da muralha, contudo, persistiu nos EUA. Ronald Reagan tentou transferir a muralha americana para o espaço (projeto Guerra nas Estrelas, que somente foi paralisado por Barack Obama).

Onde a mentalidade da muralha predomina, o desejo de agredir e o medo de ser agredido dominam a existência dos homens. Os norte-americanos, contudo, seguem acreditando que são tão ou mais civilizados que os outros povos que começaram a abandonar a fixação ancestral por muralhas. Eles acreditam que tem um destino manifesto, mas empurram sua muralha para o espaço. Supõe que o sonho americano e bom, quando ele não passa de um que oprime tanto os que estão fora quando aqueles que estão dentro.

Através da internet travei contato com vários norte-americanos. Alguns deles são receptivos e gentis, terríveis apenas quando criticam seu próprio país. Muitos deles, contudo, ficaram profundamente irritados ao descobrir que eu não olho para os EUA como se aquele país fosse uma cidade iluminada no alto da montanha. O “American way of life” não me excita, nem me atrai. Creio que a muralha norte-americana já ruiu e que os norte-americanos não perceberam isto, muito embora alguns se esforcem para reconstruí-la.

Quem são os arquitetos da nova muralha dos EUA e o que eles pretendem? Esta meu caro é uma pergunta que merece ser respondida apenas por aqueles que ficarão separados do resto mundo. Uma prisão também tem muros, mas ninguém é livre dentro dela.  

Fábio de Oliveira Ribeiro

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