Somos diferentes deles, por Wilson Ramos Filho

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Somos diferentes deles
 
por Wilson Ramos Filho
 
Nos últimos meses, nas redes sociais e nas relações interpessoais, excluímos fascistas, machistas, direitistas, misóginos, gente ruim. Nossas bolhas têm ficado menores, mais homogêneas. Falamos apenas para nós mesmos. E cada vez mais. Restaram em nossos convívios cotidianos preferencialmente apenas aqueles com quem compartilhamos valores? Talvez sim. 
 
A força das ideias dominantes, em graus diversos (e sem me excluir), todavia, acaba, sorrateiramente, por nos contaminar. São muitas as escorregadas (algumas espalhafatosas) aqui e ali. A ideologia de cada momento histórico é a ideologia das classes dominantes. E estamos em permanente risco de sucumbir a esta “cultura dominante” que, na contemporaneidade brasileira, nos impõe a inevitabilidade do que estamos, com desconforto e estupefação, vivenciando. 

 
Desassossegou-me encontrar na minha “bolha” companheiros e companheiras 
 
1. Repercutindo o tuíter machista do Renan, divertindo-se com a indignidade nele contida e criticando o decote da deputada, sem respeitar o direito de qualquer mulher se vestir como ela quiser;
 
2. Punitivistas, pedirem a prisão de executivos e de tucanos, fortalecendo a visão de nossos algozes do “quanto mais repressão, melhor”;
 
3. Trazendo fotos para criticar “os políticos”, genericamente, sem perceber que fortalecem com isso a meritocracia da Direita Concursada e a visão autocrata do mito;
 
4. Pedindo assinatura em petição pública pela “substituição da Damares” ou de qualquer desses ministros bizarros que envergonham o país;
 
5. Sindicalistas propondo o “diálogo com o governo” na Reforma da Previdência ou em outros temas;
 
6. Advogados trabalhistas defendendo a JT sem a ela endereçar nenhuma crítica pelo que tem sido;
 
7. Juristas de respeito que organizam seminários reivindicando a “força do direito” apesar de tudo o que vem acontecendo no país ou celebram a “constituição cidadã”, um mito insustentável sob qualquer perspectiva;
 
8. Pessoas esperançosas com o “filho de desaparecido político”, que defende a Lava-Jato ou políticos “do nosso campo” se propondo a “ajudar a aprovar” a desprezível “lei anti-crime” ou as “reformas necessárias”;
 
9. Compartilhando ideias fraticidas em uma esquerda fragmentada, marcando posição e exigindo autocríticas alheias sem jamais fazerem as suas próprias;
 
10. Torcendo para o general “menos ruim” substituir logo o capitão, entre outras barbaridades. 
 
Urge a construção de uma plataforma que nos unifique, que nos torne pessoas melhores e que nos diferencie daquela gente que defendeu o Golpe, que aceitou a prisão do Lula e seu impedimento para participar nas eleições, que tolera uma das cinco facções da Direita que, com Bolsonaro, comanda a destruição do país. 
 
O que nos unifica? O que nos diferencia deles? Ou somos todos (em alguma medida) parecidos com alguns deles? Qual seria o mínimo ético que nos singulariza? 
 
Duas propostas “frentistas” se desenham a bombordo do espectro político. A que tem na social-democracia o “ponto de chegada”, admitindo amplas alianças “dos democratas e dos setores nacionalistas” para se contrapor à barbárie instalada nos três Poderes da República. E a que, considerando a social-democracia como resultante da correlação de forças, ousa demandar o que parece impossibilitado de sequer ser pensado, como imprescindível para a reconstrução dos Direitos Sociais e das políticas públicas.
 
Para esta segunda perspectiva, como as destruições institucionais conduziram o país aos patamares anteriores ao reconhecimento dos direitos sociais, as reivindicações haveriam de ser semelhantes àquelas que mobilizaram as massas há mais de cem anos para conquistá-los. A conformação do Estado resultaria de uma relação entre propostas antagônicas e os arremedos de social-democracia no Brasil só teriam existido porque havia propostas que frontalmente combatiam a maneira de existir capitalista. A utopia (como horizonte a ser perseguido) deveria se erigir, portanto, em torno a uma plataforma francamente anticapitalista que propusesse outra maneira de existir em sociedade, em torno aos hoje desprestigiados valores da solidariedade, da igualdade, da não discriminação e da equidade, todos incompatíveis com o que pretendem os setores que governam o Brasil desde o golpe de 2016.
 
O debate está aberto. Qual a proposta mais sedutora? Mas certamente não se obterá a unidade pretendida pela esquerda brasileira se não nos acautelarmos para evitar algumas das, digamos, “escorregadelas” acima mencionadas. Nós somos diferentes daqueles que – conscientemente ou não – se tornaram pessoas de Direita. Não nos permitamos com eles sermos confundidos. 
 
Wilson Ramos Filho, doutor, presidente do Instituto Defesa da Classe Trabalhadora.
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

9 Comentários

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  1. Defendamos, sim, o direito de

    Defendamos, sim, o direito de nos unirmos na manutenção da vida. Não somos iguais a eles. Mas também devemos

    ostentar com orgulho essa diferença. 

    Relembrando: o agora presidente (não se sabe até quando) zombando da ex-presidente Dilma, recém saida de uma 

    luta contra o cancer, discursou “desejando que Dilma sofresse muito com um cancer e dele viesse a falecer”.

    Felizmente isso não aconteceu. Agora é o atual presidente que “luta pela vida” num hospital.

    Nenhum petista ou adversário está lhe desejando tal desfecho. 

    Solidários em seu sofrimento, sim. Cumplices no seu discurso de ódio, não.

    Isso é o que nos diferencia.

  2. Algumas dificuldades
    “1. Repercutindo o tuíter machista do Renan, divertindo-se com a indignidade nele contida e criticando o decote da deputada, sem respeitar o direito de qualquer mulher se vestir como ela quiser;” Infelizmente, isso não se restringe de forma alguma a essa oportunidade. As figuras femininas da direita e da extrema-direita – Joyce Hasselman, Janaína Paschoal, Mírian Leitão, Damares Alves – são regularmente xingadas de forma misógina, o que só contribui para o argumento predileto da direita, de que “ambos os lados são iguais” e tudo não passa de um “fla-flu”. É verdade que a misoginia da esquerda é muito menos difundida, menos agressiva, e menos generalizante do que a da direita – xingamos menos, em geral não suplementamos os xingamentos com ameaças de morte e estupro, e em geral reservamos os xingamentos para figuras públicas cuja atuação é de fato nefasta, sem estendê-los às mulheres em geral. Mas é pouco consolo; temos a obrigação de sermos bem melhores do que isso.  2. Punitivistas, pedirem a prisão de executivos e de tucanos, fortalecendo a visão de nossos algozes do “quanto mais repressão, melhor”;  Isso é um dilema, que a direita se deleita em nos propor. Queremos igualdade… mas qual igualdade, direitos iguais para todos, ou cadeia e violência contra todos? Na situação em que estamos, em que Lula está na cadeia, condenado ao arrepio das provas, enquanto Aécio, Beto Richa, Alckmin, e tantos outros contra os quais pesam indícios os mais veementes de corrupção permanecem soltos e gozando de prestígio junto à imprensa e ao judiciário, é difícil manter a compostura. Ainda mais por que essa situação se entronca com o ponto 7. A defesa da democracia e das suas implicações jurídicas, sobretudo a presunção de inocência, continua a ser feita em nome de um fantasma – a Constituição de 1988, inapelavelmente revogada por um tribunal regional.  3. Trazendo fotos para criticar “os políticos”, genericamente, sem perceber que fortalecem com isso a meritocracia da Direita Concursada e a visão autocrata do mito;  A crítica desembasada é sempre ruim, mas é impossível evitar a crítica, inclusive aos políticos do campo popular. Não é passando a mão nos erros que nossas lideranças têm cometido que vamos contribuir para avançar. O problema é outro; é que as “críticas” muitas vezes, senão quase sempre, deixam de ser críticas e se rebaixam ao insulto e até à ameaça. É possível, e necessário, criticar o PT, ou Ciro Gomes, sem trazer o vocabulário de praxe – traidor, pelego, filhote da ditadura – para o discurso.  4. Pedindo assinatura em petição pública pela “substituição da Damares” ou de qualquer desses ministros bizarros que envergonham o país;  Isso é mais ingenuidade do que qualquer outra coisa. É impossível “melhorar” o governo Bolsonaro. Eventuais aprimoramentos só podem ter um único conteúdo: trocar ministros incompetentes por ministros eficientes na execução das maldades. O pelotão de fuzilamento não “melhora” do ponto de vista dos condenados, com a escolha de atiradores melhores.  5. Sindicalistas propondo o “diálogo com o governo” na Reforma da Previdência ou em outros temas;  O que é mais ou menos a mesma coisa: as propostas do governo não têm de ser aprimoradas, têm de ser rejeitadas. Mas evidentemente essa rejeição não precisa necessariamente se dar pela recusa a debater. Melhor do que dizer “não conversamos sobre isso” pode ser conversar sobre isso e desconstruir, de maneira incisiva, os argumentos, ou a falta deles, do outro lado.  6. Advogados trabalhistas defendendo a JT sem a ela endereçar nenhuma crítica pelo que tem sido;  O que no momento parece inevitável. A ameaça que paira sobre nós é a extinção da Justiça do Trabalho, para remeter os processos à Justiça comum – que, sem ignorar as exceções, e sem ignorar os males da Justiça trabalhista, tem se demonstrado muito mais avessa à racionalidade democrática, muito mais propícia à cultura do juiz superstar, muito mais aferrada ao punitivismo e ao culto da meritocracia, do que a JT – ou, pior ainda, ilegalizar as demandas trabalhistas. Com todo respeito, e com toda crítica que o aparato da Justiça do Trabalho merece, a defesa da JT é indispensável no momento.  Até por que o contrário acaba descambando para o ponto 5., ou seja, o “diálogo com o governo” para “aprimorar” a extinção da Justiça do Trabalho e portanto o aumento da exploração dos trabalhadores e a repressão a seus representantes, que é o objetivo do governo.  7. Juristas de respeito que organizam seminários reivindicando a “força do direito” apesar de tudo o que vem acontecendo no país ou celebram a “constituição cidadã”, um mito insustentável sob qualquer perspectiva;  Isso é verdade. A Constituição de 1988 está morta; é tempo de reconhecermos isso. Mas esse reconhecimento exige de nós algum tipo de proposta alternativa; simplesmente reconhecer esse fato sem iniciar a discussão da nova constituição que precisamos é entregar de bandeja ao inimigo a noção de que as ações do governo não necessitam de embasamento jurídico.  8. Pessoas esperançosas com o “filho de desaparecido político”, que defende a Lava-Jato ou políticos “do nosso campo” se propondo a “ajudar a aprovar” a desprezível “lei anti-crime” ou as “reformas necessárias”;  A desinformação é muito grande. Já em 2013, vimos a facilidade com que a PEC 37 foi demonizada e transformada na “PEC da impunidade” pelo Ministério Público e pela imprensa. Também vemos como o “foro privilegiado” se transformou em tabu, nos levando a comemorar a remessa do inquérito contra Flávio Bolsonaro à primeira instância (onde se arrastará por dez anos, e depois terá de ser todo reformado devido aos inúmeros erros processuais que certamente serão cometidos, por incompetência ou má fé). Não é outro o caso das “10 medidas contra a corrupção” ou da “lei anti-crime”. Há crimes, eles estão ou parecem estar em ascenção, e naturalmente todos nós desejamos que isso seja resolvido.  As propostas do governo vão na direção oposta: elas tendem a facilitar a prática do crime, e a enrijecer as punições para o crime já cometido. Libera as armas para todo mundo, e depois impõe penas mais draconianas para o homicídio, e rebaixa o padrão das provas para a condenação. Mas essa é uma discussão difícil de fazer quando a desinformação é a regra. Para dar um exemplo, vi esses dias o tuíte de uma cidadã indignada por que o governo Bolsonaro reduziu o salário mínimo. Ela achava que “essa coisa de reduzir o salário mínimo” era coisa só do PT e estava decepcionada por que estava constatando que “todos são iguais” nesse aspecto. Isso depois de treze anos consecutivos de elevação do salário mínimo pelos governos do PT, que inclusive foram selvagemente criticados por isso!  9. Compartilhando ideias frat[r]icidas em uma esquerda fragmentada, marcando posição e exigindo autocríticas alheias sem jamais fazerem as suas próprias;  Isso é mais ou menos inevitável. Desde que a gente seja capaz de discutir essas coisas racionalmente, e de denunciar a postura de dono-da-verdade de quem acha que entendia perfeitamente a conjuntura em 2018, e faz as retroprofecias mais insensatas baseado em puro wishful thinking, a solução volta a ser aquela proposta pelo velho Marx nas teses sobre Feuerbach: os desvios da teoria para o misticismo se resolvem na prática. Nós vamos ver a atuação de cada segmento da esquerda no período que se inicia agora, e vamos chegar às nossas próprias conclusões. Haverá quem desista de tudo ao perceber que o PDT, longe de representar uma oposição mais coerente, combativa ou lúcida, é apenas o que sempre foi, um saco de gatos onde tudo cabe, inclusive bolsonaristas mais ou menos declarados? Com certeza, mas é o preço a pagar pelo esclarecimento das coisas. Haverá quem se desiluda com o fato de o PT (ou mesmo o PSOL) não propor a revolução social? Da mesma forma, mas o que cabe é tratar de transformar as desilusões em disposição para a luta, em vez de desistência.  E as autocríticas vão sendo feitas. Elas não se fazem nos termos nem nos prazos que os adversários escolhem; a autocrítica do PSDB não vai incluir algo como “nós deveríamos ter apoiado os governos do PT”, a autocrítica do PDT não vai ser na linha do “a candidatura do Ciro foi um erro”, e a autocrítica do PT não vai ser “ah se a gente tivesse apoiado o Ciro… teria sido um suicídio, mas teria salvo o país do bolsonarismo”. Elas se fazem nos termos dos objetivos de cada agente político, não nos termos de uma rendição incondicional aos objetivos dos outros.  Pior, creio eu, seria tentarmos alguma espécie de “beijo Lamourette” das esquerdas, cada um fingindo que não há divergências e incongruências, para fazer uma unidade baseada em fantasias, incompreensões, ou falsos consensos.  10. Torcendo para o general “menos ruim” substituir logo o capitão, entre outras barbaridades.   Bom, aí o problema é o seguinte: o Bolsonaro é um fascista, que vai destruir o país num vendaval de loucuras crescentes, até que tenhamos que ser salvos pelo Exército da Venezuela plantando a sua bandeira nas torres gêmeas do parlamento brasileiro? Ou é apenas um imbecil sem noção, que está mais atrapalhando o projeto do restabelecimento da tutela militar sobre a sociedade do que qualquer outra coisa?  Por que no primeiro caso, é necessário removê-lo, e, sim, o Mourão é um mal menor. É bom quando o Mourão diz, explicitamente, que não vai haver intervenção militar na Venezuela, e que a Embaixada brasileira em Israel deve ficar em Tel-Aviv. Mas se o caso é o segundo, então é o Bolsonaro que é o mal menor; enquanto ele desmoraliza a presidência da República e as instituições em geral, sem que o Exército possa aparecer como o salvador da pátria, mais poderemos verificar como as instituições – Forças Armadas incluídas – estão já desmoralizadas, e precisando de uma recauchutagem geral, sem que uma delas queira se impor sobre todas as outras, com os resultados que conhecemos bem, de 1964 a 1985…

    1. E mais uma dificuldade…

      … qual seja, a de dividir o texto acima em parágrafos; do jeito que está, beira a ilegibilidade.

      Como faço para quebrá-lo em parágrafos?

      1. Assino em baixo

        De fato, a legibilidade foi pra cucuia, embora o comentário tenha sido muito bom. 

        Só não entendi o Luis Henrique Donádio Baptista criticando o Luís Henrique Donadio Baptista.

        De minha parte vou tentar reproduzir abaixo o comentário original de Luís Henrique Donadio Baptista, desta vez dividindo-o em parágrafos e ressaltando os ítens em negrito a fim de melhorar a legibilidade.  É um comentário muito bom que não merece ficar obscurecido na ilegibilidade:

        “1. Repercutindo o tuíter machista do Renan, divertindo-se com a indignidade nele contida e criticando o decote da deputada, sem respeitar o direito de qualquer mulher se vestir como ela quiser;”

        Infelizmente, isso não se restringe de forma alguma a essa oportunidade. As figuras femininas da direita e da extrema-direita – Joyce Hasselman, Janaína Paschoal, Mírian Leitão, Damares Alves – são regularmente xingadas de forma misógina, o que só contribui para o argumento predileto da direita, de que “ambos os lados são iguais” e tudo não passa de um “fla-flu”. É verdade que a misoginia da esquerda é muito menos difundida, menos agressiva, e menos generalizante do que a da direita – xingamos menos, em geral não suplementamos os xingamentos com ameaças de morte e estupro, e em geral reservamos os xingamentos para figuras públicas cuja atuação é de fato nefasta, sem estendê-los às mulheres em geral. Mas é pouco consolo; temos a obrigação de sermos bem melhores do que isso.  

        2. Punitivistas, pedirem a prisão de executivos e de tucanos, fortalecendo a visão de nossos algozes do “quanto mais repressão, melhor”;  

        Isso é um dilema, que a direita se deleita em nos propor. Queremos igualdade… mas qual igualdade, direitos iguais para todos, ou cadeia e violência contra todos? Na situação em que estamos, em que Lula está na cadeia, condenado ao arrepio das provas, enquanto Aécio, Beto Richa, Alckmin, e tantos outros contra os quais pesam indícios os mais veementes de corrupção permanecem soltos e gozando de prestígio junto à imprensa e ao judiciário, é difícil manter a compostura. Ainda mais por que essa situação se entronca com o ponto 7. A defesa da democracia e das suas implicações jurídicas, sobretudo a presunção de inocência, continua a ser feita em nome de um fantasma – a Constituição de 1988, inapelavelmente revogada por um tribunal regional.  

        3. Trazendo fotos para criticar “os políticos”, genericamente, sem perceber que fortalecem com isso a meritocracia da Direita Concursada e a visão autocrata do mito;  

        A crítica desembasada é sempre ruim, mas é impossível evitar a crítica, inclusive aos políticos do campo popular. Não é passando a mão nos erros que nossas lideranças têm cometido que vamos contribuir para avançar. O problema é outro; é que as “críticas” muitas vezes, senão quase sempre, deixam de ser críticas e se rebaixam ao insulto e até à ameaça. É possível, e necessário, criticar o PT, ou Ciro Gomes, sem trazer o vocabulário de praxe – traidor, pelego, filhote da ditadura – para o discurso.  

        4. Pedindo assinatura em petição pública pela “substituição da Damares” ou de qualquer desses ministros bizarros que envergonham o país;  

        Isso é mais ingenuidade do que qualquer outra coisa. É impossível “melhorar” o governo Bolsonaro. Eventuais aprimoramentos só podem ter um único conteúdo: trocar ministros incompetentes por ministros eficientes na execução das maldades. O pelotão de fuzilamento não “melhora” do ponto de vista dos condenados, com a escolha de atiradores melhores.  

        5. Sindicalistas propondo o “diálogo com o governo” na Reforma da Previdência ou em outros temas;  

        O que é mais ou menos a mesma coisa: as propostas do governo não têm de ser aprimoradas, têm de ser rejeitadas. Mas evidentemente essa rejeição não precisa necessariamente se dar pela recusa a debater. Melhor do que dizer “não conversamos sobre isso” pode ser conversar sobre isso e desconstruir, de maneira incisiva, os argumentos, ou a falta deles, do outro lado.  

        6. Advogados trabalhistas defendendo a JT sem a ela endereçar nenhuma crítica pelo que tem sido;  

        O que no momento parece inevitável. A ameaça que paira sobre nós é a extinção da Justiça do Trabalho, para remeter os processos à Justiça comum – que, sem ignorar as exceções, e sem ignorar os males da Justiça trabalhista, tem se demonstrado muito mais avessa à racionalidade democrática, muito mais propícia à cultura do juiz superstar, muito mais aferrada ao punitivismo e ao culto da meritocracia, do que a JT – ou, pior ainda, ilegalizar as demandas trabalhistas. Com todo respeito, e com toda crítica que o aparato da Justiça do Trabalho merece, a defesa da JT é indispensável no momento.  Até por que o contrário acaba descambando para o ponto 5., ou seja, o “diálogo com o governo” para “aprimorar” a extinção da Justiça do Trabalho e portanto o aumento da exploração dos trabalhadores e a repressão a seus representantes, que é o objetivo do governo.  

        7. Juristas de respeito que organizam seminários reivindicando a “força do direito” apesar de tudo o que vem acontecendo no país ou celebram a “constituição cidadã”, um mito insustentável sob qualquer perspectiva;  

        Isso é verdade. A Constituição de 1988 está morta; é tempo de reconhecermos isso. Mas esse reconhecimento exige de nós algum tipo de proposta alternativa; simplesmente reconhecer esse fato sem iniciar a discussão da nova constituição que precisamos é entregar de bandeja ao inimigo a noção de que as ações do governo não necessitam de embasamento jurídico.  

        8. Pessoas esperançosas com o “filho de desaparecido político”, que defende a Lava-Jato ou políticos “do nosso campo” se propondo a “ajudar a aprovar” a desprezível “lei anti-crime” ou as “reformas necessárias”;  

        A desinformação é muito grande. Já em 2013, vimos a facilidade com que a PEC 37 foi demonizada e transformada na “PEC da impunidade” pelo Ministério Público e pela imprensa. Também vemos como o “foro privilegiado” se transformou em tabu, nos levando a comemorar a remessa do inquérito contra Flávio Bolsonaro à primeira instância (onde se arrastará por dez anos, e depois terá de ser todo reformado devido aos inúmeros erros processuais que certamente serão cometidos, por incompetência ou má fé). Não é outro o caso das “10 medidas contra a corrupção” ou da “lei anti-crime”. Há crimes, eles estão ou parecem estar em ascenção, e naturalmente todos nós desejamos que isso seja resolvido.  As propostas do governo vão na direção oposta: elas tendem a facilitar a prática do crime, e a enrijecer as punições para o crime já cometido. Libera as armas para todo mundo, e depois impõe penas mais draconianas para o homicídio, e rebaixa o padrão das provas para a condenação. Mas essa é uma discussão difícil de fazer quando a desinformação é a regra. Para dar um exemplo, vi esses dias o tuíte de uma cidadã indignada por que o governo Bolsonaro reduziu o salário mínimo. Ela achava que “essa coisa de reduzir o salário mínimo” era coisa só do PT e estava decepcionada por que estava constatando que “todos são iguais” nesse aspecto. Isso depois de treze anos consecutivos de elevação do salário mínimo pelos governos do PT, que inclusive foram selvagemente criticados por isso!  

        9. Compartilhando ideias frat[r]icidas em uma esquerda fragmentada, marcando posição e exigindo autocríticas alheias sem jamais fazerem as suas próprias;  

        Isso é mais ou menos inevitável. Desde que a gente seja capaz de discutir essas coisas racionalmente, e de denunciar a postura de dono-da-verdade de quem acha que entendia perfeitamente a conjuntura em 2018, e faz as retroprofecias mais insensatas baseado em puro wishful thinking, a solução volta a ser aquela proposta pelo velho Marx nas teses sobre Feuerbach: os desvios da teoria para o misticismo se resolvem na prática. Nós vamos ver a atuação de cada segmento da esquerda no período que se inicia agora, e vamos chegar às nossas próprias conclusões. Haverá quem desista de tudo ao perceber que o PDT, longe de representar uma oposição mais coerente, combativa ou lúcida, é apenas o que sempre foi, um saco de gatos onde tudo cabe, inclusive bolsonaristas mais ou menos declarados? Com certeza, mas é o preço a pagar pelo esclarecimento das coisas. Haverá quem se desiluda com o fato de o PT (ou mesmo o PSOL) não propor a revolução social? Da mesma forma, mas o que cabe é tratar de transformar as desilusões em disposição para a luta, em vez de desistência.  E as autocríticas vão sendo feitas. Elas não se fazem nos termos nem nos prazos que os adversários escolhem; a autocrítica do PSDB não vai incluir algo como “nós deveríamos ter apoiado os governos do PT”, a autocrítica do PDT não vai ser na linha do “a candidatura do Ciro foi um erro”, e a autocrítica do PT não vai ser “ah se a gente tivesse apoiado o Ciro… teria sido um suicídio, mas teria salvo o país do bolsonarismo”. Elas se fazem nos termos dos objetivos de cada agente político, não nos termos de uma rendição incondicional aos objetivos dos outros.  Pior, creio eu, seria tentarmos alguma espécie de “beijo Lamourette” das esquerdas, cada um fingindo que não há divergências e incongruências, para fazer uma unidade baseada em fantasias, incompreensões, ou falsos consensos.  

        10. Torcendo para o general “menos ruim” substituir logo o capitão, entre outras barbaridades.   

        Bom, aí o problema é o seguinte: o Bolsonaro é um fascista, que vai destruir o país num vendaval de loucuras crescentes, até que tenhamos que ser salvos pelo Exército da Venezuela plantando a sua bandeira nas torres gêmeas do parlamento brasileiro? Ou é apenas um imbecil sem noção, que está mais atrapalhando o projeto do restabelecimento da tutela militar sobre a sociedade do que qualquer outra coisa?  Por que no primeiro caso, é necessário removê-lo, e, sim, o Mourão é um mal menor. É bom quando o Mourão diz, explicitamente, que não vai haver intervenção militar na Venezuela, e que a Embaixada brasileira em Israel deve ficar em Tel-Aviv. Mas se o caso é o segundo, então é o Bolsonaro que é o mal menor; enquanto ele desmoraliza a presidência da República e as instituições em geral, sem que o Exército possa aparecer como o salvador da pátria, mais poderemos verificar como as instituições – Forças Armadas incluídas – estão já desmoralizadas, e precisando de uma recauchutagem geral, sem que uma delas queira se impor sobre todas as outras, com os resultados que conhecemos bem, de 1964 a 1985…

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        Concordemos ou não com todos os pontos e reflexões acima, esse debate é para ontem. Ao menos poderemos afirmar que há vida inteligente entre os nossos.

         

  3. Gostei

    Muito bom o post, e estranho dele ter recebido algumas estrelinhas negativas.

    Acho as críticas válidas e me enxergo em algumas delas.

    Podemos divergir aqui ou ali. Eu também não concordo com tudo.

    Mas me parece um bom ponto de partida para identificarmos aquilo que nos distingue dessa lama toda resultante do colapso/desmoronamento da barragem do comportamento civilizado.

    Entendo ser difícil não sair contaminado pela lama que nos atingiu a todos. Entretanto confesso que às vezes dá um grande desânimo ver reproduzidos entre nós, eu inclusive, muitos daqueles comportamentos que, com justa razão, criticamos nos outros.

  4. Belos par de seios, alias

    Me mostraram a foto da tal deputada e eu rindo disse que ela tinha o direito de se vestir assim dentro do parlamento, ja que os homens de bens avacalharam o Congresso ja ha bom tempo. A respeita quem se da ao respeito, diz o adagio. 

    Quanto a tudo isso que nos separa deles… Nem todas as pessoas têm a compreensão da complexidade do jogo politico, logo temos que ter paciência e sermos didaticos. Sempre ouço os psolistas falando que o PT se corrompeu e, até ja ouvi, quem dissesse que Lula merece estar na prisão. Retirando esses que defendem a prisão de Lula, o restante a gente dialoga, inclusive com a ideia do PCO de que a esquerda deve também comprar armas e se preparar para o bang-bang… 

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