Somos todos Viajantes, Detetives e Estrangeiros

 

Las Vegas, Área 51 e a Bomba Atômica foram eventos inaugurais da cultura pop irradiada pela indústria do entretenimento para todo o mundo. Emoldurados pela mítica paisagem desolada do deserto de Nevada, foram fatos simbólicos que se transformaram no centro espiritual da cultura contemporânea por representtarem os três protagonistas que melhor expressam a condição humana: o viajante, o detetive e o estrangeiro. 


Esta semana comecei a desenvolver com os alunos em Comunicação Visual da Universidade Anhembi Morumbi o que chamo de “repertório visual por décadas”, procurando resgatar a identidade visual de cada década através do levantamento dos principais ícones que formam a cara de cada período em moda, comportamento, design, capas de discos, filmes, ou seja, a própria cultura pop.


O ponto de partida foi a década de 1950. Resgatando com os alunos a paisagem icônica desse período, começamos a perceber três características recorrentes: a paranoia da guerra fria e o medo da conspiração comunista; a contaminação radioativa geradora de monstros (Godzila, espumas assassinas e formigas gigantes) ao lado da ficção científica mesclada com utopias futuristas; e o sonho da classe média americana em torno da figura do homem bem sucedido não tanto pelo seu talento, mas pelo charme, magnetismo e sex appeal.


Essas três características claramente são expressões visuais de três eventos que, acredito, foram acontecimentos inaugurais da atual cultura pop irradiada pelos EUA para todo o mundo: a institucionalização dos grandes cassinos-hotéis em Las Vegas, o incidente de Rosswell envolvendo um suposto OVNI que foi levado secretamente à Área 51 e as experiências com a bomba atômica.


Mais do que coincidência: todos esses eventos emoldurados pelas desoladas paisagens do Deserto de Nevada. Las Vegas e os hotéis-cassinos, OVNIs e as teorias conspiratórias em torno da Área 51 (mítica área de testes da força aérea dos EUA onde supostamente estão escondidos desde tecnologia alienígena até cadáveres extraterrestres), a bomba atômica e, finalmente, o deserto. Esse conjunto forma a matriz da imagerie pop, o centro espiritual da civilização norte-americana, os novos arquétipos irradiados pela indústria do entretenimento.



Como arquétipos modernos, são, na verdade, atualizações ou novas recorrências de antigos mitos partilhados pelo inconsciente coletivo da espécie. Certa vez o psicanalista Carl G. Jung interpretou a onda de avistamentos de discos voadores a partir do final da Segunda Guerra Mundial como uma tentativa da psique do inconsciente coletivo em encontrar nos céus uma salvação para a época apocalíptica em que vivemos. Para Jung as pessoas sempre olharam para o céu em busca da salvação do perigo. Em tais momentos no passado as pessoas tinham visões de deuses, santos, anjos, etc., que supostamente iriam resgatá-los do desastre. (veja JUNG, Carl G. Discos Voadores: Mito Moderno Sobre Coisas Vistas no Céu, Petrópolis: Vozes).


 

OVNIs: arquétipos partilhados pelo inconsciente
coletivo da espécie

 

Mas Jung diz que a ciência moderna tornou as pessoas muito céticas para crer em seres sobrenaturais ou imagens mitológicas tradicionais. Como vivemos em uma era de ciência e tecnologia, nós interpretamos os novos sinais no céu como máquinas de alienígenas provenientes de um mundo com tecnologia mais avançada que a nossa.


Em Jung os arquétipos são símbolos do inconsciente coletivo, símbolos atualizados por diversos meios (misticismo, religião, lendas, mitos até chegar à forma mais mística da publicidade contemporânea) onde são aglutinadas aspirações, desejos e grandes questões metafísicas e existenciais da espécie humana. Vivenciar um arquétipo é se sintonizar nessa rede inconsciente de nem que seja por breves flashs, como num déjà-vu.


Essa é o centro espiritual e verdadeiro do arquétipo que, ao ser instrumentalizado pela indústria do entretenimento, transforma-se em clichê, isto é, numa estrutura repetitiva que fascina pelo seu componente espiritual, mas se dilui na linguagem midiática.


E qual o centro espiritual desses eventos inaugurais que criaram a matriz arquetípica de toda a cultura pop atual?


Viajantes, Detetives e Estrangeiros


Brissac Peixoto em seu livro “Cenários em Ruínas” (São Paulo: Brasiliense, 1987) faz um verdadeiro inventário da imagerie arquetípica cinematográfica de filmes derivados de antigas novelas policias, filme noir, western e literatura de best-seller. Seu objetivo é o de descrever “os três modos de constituição da subjetividade e do mundo na cultura contemporânea” a partir das estórias míticas dos três tipos de protagonistas: o Detetive, o Viajante e o Estrangeiro.


Peixoto observa que esses três personagens são os protagonistas da pós-modernidade. Em suas narrativas aparecem, em geral, como prisioneiros em um universo hostil, estrangeiros dentro do seu próprio país, uma estranha sensação de deslocamento, de não fazer parte de um mundo decadente e corrompido.


 

“Medo e Delírio em Las Vegas” 
(1998): o “Viajante” no cinema

 

O Viajante é o “man out of nowhere”, aqueles que vêm do nada e partem para lugar nenhum. Não tem passado ou futuro, só direções e orientações. Tudo começa na estrada, no deserto, procuram a imensidão para que possa ficar longe. O imaginário de Las Vegas corresponde a este personagem: lugar de passagem, todos estranhos entre si vindo dos lugares mais distantes em busca da sorte. Cowboys pós-modernos em um mito da fronteira renovado. O filme “Medo e Delírio em Las Vegas” (Fear and Loathing in Las Vegas, 1998) é um bom exemplo de uma narrativa centrada nesse protagonista.


O Detetive é aquele que transforma a sensação de estranhamento com esse mundo em mistério que precisa ser desvendado. O mito da Área 51 e as teorias conspiratórias alimentadas pelas HQs e Hollywood crescem proporcionalmente à sensação do indivíduo em perder o controle do mundo em que vive. Crenças conspiratórias sobre sociedades secretas que dominam o mundo permeiam a mentalidade de uma sociedade atomizada, passiva diante de uma complexidade tecnológica incompreensível que domina o cotidiano.


O Estrangeiro é aquele que não se sente em casa em lugar algum. Procura sempre esquecer o seu passado, sua história, o que é. Passa a maior parte do tempo em silêncio, fechado no seu drama, tenso, crispado. Quieto observa o mundo cair em pedaços. A experiência apocalíptica da bomba atômica vai incendiar esse imaginário apocalíptico de fim de um mundo que, afinal, não nos pertence. A onda de filmes-catástrofes atuais analisada na postagem anterior (veja links abaixo) é um exemplo.

Luis Nassif

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