Suspensão de registro de óbito durante pandemia pode gerar mais desaparecidos

Eliana Vendramini reconhece que momento é excepcional, mas alerta que enterros feitos sem certidão podem gerar impunidade em casos de violação de direitos humanos

Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

da Ponte Jornalismo

‘Suspensão de registro de óbito durante pandemia pode gerar mais desaparecidos’

por Jeniffer Mendonça

No dia 30 de março, o Ministério da Saúde e o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) assinaram uma portaria conjunta que autoriza os estabelecimentos de saúde, na ausência de familiares ou pessoas conhecidas do falecido, a enviarem os corpos direto para os cemitérios para serem sepultados ou cremados sem a obrigatoriedade de fazer o registro civil de óbito, a chamada certidão de óbito. A justificativa é o cenário de pandemia da Covid-19.

A declaração de óbito, também conhecida como atestado, é emitida por médicos. Os cartórios de registro civil, por sua vez, recebem esse documento e emitem a certidão de óbito. Sem isso, os cemitérios, sejam públicos ou privados, não podem fazer o sepultamento, conforme previsto no artigo 77 da Lei 6.015/1973.

A nova determinação é vista com muita preocupação pela promotora Eliana Vendramini, coordenadora do Programa de Localização de Identificação de Desaparecidos do Ministério Público de São Paulo, porque pode dificultar a busca de informações de pessoas desaparecidas. “A gente entende o momento de exceção, mas a exceção não pode ser a ponto de gerar mais desaparecidos”, declarou.

O Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) emitiu nota técnica no dia 6 de abril (leia aqui) destacando que a falta do registro poderia agravar suportes jurídico e forense, além de prejudicar investigações posteriores, a “acontecimentos de execução sumária e outras graves violações de direitos humanos, especialmente as praticadas contra populações carcerárias, moradores em situação de rua e povos indígenas que não teriam o devido registro por parte do Estado”. O órgão cita exemplos de outros países, como Itália e Espanha, apontando que, apesar de serem os maiores afetados da pandemia, mantêm uma preocupação com a notificação dos óbitos.

A nova portaria também estabelece que as certidões de óbito sejam lavradas em até 60 dias contando da data do falecimento. O texto também orienta que mortes por doença respiratória suspeita para Covid-19, que não tenham sido confirmadas, tenham as declarações de óbito indicando a causa da morte como “provável para Covid-19” ou “suspeito para Covid-19”.

No caso de corpos não identificados, a portaria prevê que as declarações de óbito constem, caso possível, características físicas, foto, sinais aparentes, idade presumida e afins. Segundo a promotora, no entanto, elencar que esses itens não sejam preenchidos de forma obrigatória “é muito grave”, pois abre margem para que a recomendação não seja seguida. “A portaria fala muito de ‘se possível’ quando, na verdade, esse não deveria ser um segundo plano, mesmo numa situação difícil dessa”, afirma. “Só no estado de São Paulo, nós temos uma média de 5 mil desaparecidos por ano. É o estado que mais tem desaparecidos no Brasil”, prossegue.

Para ela, o contexto de pandemia também pode acabar sendo usado para negligenciar a transparência de informações públicas. “Além de ter um sistema oficial ainda pouco organizado, a gente tem o inoficioso, que são os cemitérios clandestinos com grande dificuldade de apuração, principalmente na capital [paulista]”, aponta.

A promotora Eliana Vendramini coordena grupo de trabalho sobre desaparecidos | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Na visão da promotora, todos os estados e municípios deveriam adotar o Sinalid (Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos do Ministério Público). Desde 2019, o Ceará é o único adepto da plataforma. “Estou tentando um acordo com o governo do Estado e com a prefeitura [de SP] para que adotem o Sinalid, que é um sistema nosso digital de identificação de pessoas, também das que morrem desacompanhadas ou não reclamadas, para que os dados delas sejam passados de forma fácil, digital, e com possibilidade de busca no futuro”, explica Eliana.

Essa é uma das recomendações feitas pelo Centro de Arqueologia Forense da Unifesp e também pelo Ministério Público Federal, destacado pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat, em ofício enviado no dia 6 de abril ao Ministério da Saúde e ao CNJ (leia aqui), “para evitar violação a direitos fundamentais”. “Entende-se que, apesar da gravíssima crise sanitária, o Estado brasileiro é capaz de adotar cautelas para prevenir que surja um contingente de casos de pessoas desaparecidas na sequência da emergência sanitária”, diz trecho do documento.

O órgão sugere que os corpos não sejam cremados e sim enterrados, “o que possibilita exumação para eventual posterior confirmação de identidade”, que tenham uma etiqueta de identificação à prova d’água; criação de um formulário padronizado para identificação de cadáveres; que os serviços funerários destaquem que seja um corpo enterrado no contexto da pandemia e que as sepulturas tenham informações claras para cruzamento de registros de óbitos; que seja obrigatório a coleta de impressão digital ou material genético acompanhado de uma fotografia, entre outros.

“A nossa proposta é fazer parte da solução, só que está demorando essa resposta”, afirma Eliana Vendramini. “A gente precisa que esses dados sejam inscritos porque vai ter problema dentro do hospital e vamos ter problemas depois nos locais de inumação [sepultamento]. Se é desorganizado no dia a dia, imagine agora que a gente vai ter um monte de corpo sendo inumado sozinho sem que a gente possa saber maiores detalhes”, critica.

Outro lado

Ponte questionou as assessorias de imprensa da Prefeitura de SP e da Secretaria de Segurança Pública do Estado sobre a adoção do Sinalid, que não responderam sobre esse assunto.

A gestão municipal declarou que atualiza os dados de pessoas não identificadas ou não reclamadas em seu site oficial e no Diário Oficial da cidade e que os sepultamentos dessas pessoas são feitos nos cemitérios Dom Bosco, Vila Formosa e São Luís.

Já a InPress, assessoria terceirizada da SSP-SP, declarou que os dados de registros do Instituto Médico Legal são divulgados junto com as estatísticas criminais, cuja previsão para a publicação dos dados de março é 25 de abril. A pasta também aponta que o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa Humana, por meio da 5ª Delegacia de Polícia de Investigações sobre Pessoas Desaparecidas, tem um sistema de cruzamento de boletins de ocorrência para identificação dos desaparecidos.

A reportagem procurou a assessoria do Ministério da Saúde, mas não obteve resposta até a publicação.

Redação

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