Temer amanhã, o renascimento do Brasil de ontem

Duas coisas caracterizam a construção do Brasil. A primeira é a progressiva conquista do território aos índios (fenômeno que ainda encontra ecos na resistência do governo Temer em respeitar as demarcações realizadas pelos governos Lula e Dilma). A segunda é a utilização de mão de obra escrava africana por mais de três séculos.

“A idéia de utilizar o índio como escravo não vingou, elo menos para os objetivos econômicos prioritários. Ele não se adaptava ao trabalho sedentário e, muito menos, ao trabalho industrial no engenho: tinha raízes próximas facilitando as fugas e deserções; finalmente foi objeto de proteção por parte da Coroa e da Igreja.

Encontrou-se, então, a solução africana para o fornecimento de escravos, tornando-se a África, sob este aspecto, uma verdadeira subcolônia do Brasil. A oferta de escravos era muito elástica graças às reservas humanas do continente negro, onde o escravo podia ser obtido a custo muito baixo. Mesmo acrescentando as perdas sofridas na travessia, os impostos e os lucros dos traficantes, o escravo era barato graças à elevada elasticidade da oferta. Vale observar que, passada a inflação mundial de 1550/1625, o preço do escravo ficou estacionário, com pequenas oscilações,  entre 40 e 50 libras-esterlinas-ouro até na véspera da abolição do tráfico africano, apesar da demanda crescente.

Não havendo grandes diferenças de produtividade nas tarefas rudimentares que eram exigidas, o trabalhador livre não podia competir com o escravo: mesmo se o preço de aquisição do escravo pudesse parecer bastante pesado – sobretudo devido à incapacidade financeira dos compradores, colonos do Brasil – a sua manutenção custava quase nada e, em compensação, o escravo trabalhava um número de horas que o trabalhador livre não aguentaria. Em suma, o escravo era submetido a um regime de trabalho forçado e de consumo baixíssimo que o tornava barato, preferível ao assalariado.” (Brasil: problemas econômicos e experiência histórica, Mircea Buescu, Forense-Universitária, Rio de Janeiro, 1985, p. 43/44)

Como estava no centro da exploração econômica da Colônia e do Império, o escravo e seu comércio também estiveram necessariamente no centro da política interna colonial e externa imperial. Isto explica tanto a repressão feroz aos quilombos, quanto o declínio da demanda por escravos por volta de 1815 na região nordeste do Brasil.

“Corria o anno de 1690. Reinava em Portugal D. Pedro II, o Pacífico, e pela terceira vez a raça negra trazida da Africa para a America Meridional, florescia pacificamente sobre a Serra lendaria que a asylara. Em três phases haviam sido os palmares batidos e massacrados. Em outros lugares também haviam sido plantados outros quilombos; nenhum lugar porém mais aprazado que a Serra da Barriga, empenachada marcialmente com as suas palmeiras e afastada do passo destruidor dos conquistadores do novo mundo.

Agora, com a luz do dia, vinha a intensidade de vida para os fugidos do cativeiro. As edificações ficavam no alto e não eram vistas de longe. Adivinhava-se o labor pelo fumo que subia dos vertedores do planalto e pelas manchas negras dos corpos invés dos caminhos sinuosos como serpentes.

O Quilombo era formado por duas sólidas estacadas que apertavam, em circulo, a edificação rudimentar. Os muicanzos, que eram os bairros dos palmarinos sem condição social, ficavam fora das circumferencias concentricas, entre a séde da republica e os terrenos destinados ás plantações. Em caso de perigo, os busios de alarma tocavam e todos os quilombolas se reuniam dentro das duas palissadas sem distinção social. As casas centraes eram construidas de barro e cobertas de palhas de ouricury, dendê e catolé, dispostas umas sobre as outras, depois de dobradas em forma de esteira. O aspecto architectonico variava. Ora refletia o conico da cabana angoleza ou guiné, ora uma vaga semelhança da casa dos dominadores lusos, com o luxo de uma cumieira e duas portas: uma para frente e outra para o fundo. A porta da frente abria-se sempre para o grande pateo onde se celebravam as festas religiosas, onde se procediam as eleições, onde se realisavam os exercícios de guerra e onde se reunia, sob a presidencia de probo dignatario, o conselho de justiça. Á noite, os quilombolas reuniam-se, em grupos, em frente aos mucamos e fumavam, então, o cachimbo e cantavam as canções de sua terra distante, já alinhavadas pelos termos da linguagem portuguesa aprendidos no captiveiro.” (O Quilombo dos Palmares, Jayme de Altavilla, editora Melhoramentos, São Paulo, 1932, p. 33/34)

Jayme de Altavilla nos deu uma interessante descrição do Quilombo dos Palmares antes do mesmo ser destruído por Domingos Jorge Velho. Duas coisas são interessantes nesta descrição. A primeira é a existência de diferenciação entre os quilombolas durante a vida cotidiana em tempo de paz. A segunda é sua igualdade em tempo de guerra.

Levando em conta as afirmações de Altavilla, somos obrigados a admitir a hipótese de que os ex-escravos reproduziram no Quilombo uma característica da Colônia. Em razão do número exíguo de portugueses em nosso território o sucesso do empreendimento colonial não teria sido possível sem que os colonos dessem status de igualdade aos chefes das tropas auxiliares indígenas durante os combates. Nos períodos de paz, os colonos voltavam fazer uma severa diferenciação  entre si mesmos e os indígenas.

Em relação ao declínio da demanda de escravos em 1815 afirma Tâmis Parron:

“Desde 1815, o algodão brasileiro não vinha enfrentando satisfatoriamente a concorrência do sul dos Estados Unidos, onde a reprodução vegetativa de escravos garantira provisão constante de mão de obra, inovações manufatureiras e agronômicas tinham ampliado a escala da produção e, a partir da terceira década do século, as ferrovias baratearam os custos do transporte. Nessas condições, a cotonicultura norte-americana auferiria taxas de crescimento quinquenal superiores a 30%, desbancando dramaticamente a concorrência brasileira. Em contrapartida, produtores maranhenses deploravam a inexistência de sólida estrutura do tráfico negreiro na era do livre mercado e previram que isso, aliado à falta de inovações técnicas, emperraria o deslanche agrícola: ‘Se fosse tão fácil a qualquer pessoa o negócio da escravatura’, disse um observador local em 1818, ‘como o é o prover-se de fazendas, efeitos ou gêneros para vender ao público, nunca se veriam tão frequentes abusos dessa liberdade de comércio, e os monopólios desapareceriam […] mas no ramo de que falo são poucos os vendedores, porque também são poucos os que podem ter as proporções para se interessar nele, e, por consequência, fica aberta a porta para o monopólio.’ O algodão de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande e Ceará, que chegou a contabilizar 83% da exportação de Recife em 1816, declinaria incessantemente nas décadas seguintes. A demanda por africanos escravizados cairia ali na mesma medida.” (A política da escravidão no Império do Brasil, Tâmis Parron, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2011, p. 91)

A abolição do tráfico negreiro, algum tempo depois, impactou bastante a política interna e externa do Brasil. Para o Deputado Cunha matos:

“… a extinção definitiva do tráfico negreiro provocaria uma espécie de crise sistêmica no Brasil, pois atingiria as atividades navais, o comércio, a arrecadação fiscal e a agricultura. Nas linhas comerciais, o acordo selava a ruína definitiva dos negociantes brasileiros, já acossados pela concorrência estrangeira desde o generoso sistema tarifário de 1810. ‘Filantropias, economias políticas, teorias inglesas e francesas’, disse ele em alusão a Adam Smith, a Jean-Baptiste Say e aos tratados comerciais assinados com os dois países, eram ‘boas para ler e muito más na prática’. Menores não eram os efeitos sobre os navios mercantes, pois o tráfico, principal ramo de atividades marítimas brasileiras, era a melhor escola para a formação de tripulações. Dessa forma, o tratado estiolaria a infraestrutura material e humana necessária para a continuidade do comércio atlântico de bens lícitos – ouro, marfim, azeite de palma, cera, panos, resinas – em embarcações nacionais.” (A política da escravidão no Império do Brasil, Tâmis Parron, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2011, p. 65/66)

Nas observações acima fica patente que o negro era considerado apenas um ativo mercantil. Nenhuma consideração de natureza humanitária em relação aos escravos era feita por aqueles que exploravam sua mão de obra e a comercializavam. A racionalidade do lucro obtido através da circulação e utilização de um tipo muito especial de mercadoria (o escravo negro africano) chega a ser considerado mais importante do que qualquer teoria econômica. À inexistência de inovação técnica equivale o conservadorismo dos escravocratas que comandavam o Estado brasileiro.

Curiosamente, o sucesso político da exploração dos escravos no Brasil (a escravidão foi tardiamente abolida) pode ter mascarado o atraso econômico do nosso país em relação aos seus concorrentes.

“… o açúcar brasileiro passou por enorme crescimento na esteira da Revolução de São Domingos: de 20 mil toneladas em 1790, a produção brasileira subiu para 100 mil toneladas em 1850. Porém, não tão agudo como o de Cuba: em 1791, a colônia espanhola produziu cerca  de 17 mil toneladas; em 1850, quase 300 mil. O hiato se aprofundou nos quinze anos seguintes: 130 mil toneladas no Brasil, 550 mil em Cuba. Ademais, enquanto o crescimento açucareiro do Brasil foi apenas quantitativo, sem modificações de relevo nos padrões técnicos, os engenhos cubanos passaram por uma profunda transformação tecnológica, o que lhes permitiu enfrentar com sucesso a queda dos preços no mercado internacional. O crescimento da produção brasileira de açúcar só ocorreu enquanto o tráfico transatlântico de escravos esteve aberto. Os ganhos decrescentes da atividade açucareira para o Brasil são evidentes na composição dos valores relativos de bens exportáveis (30% do total, nos anos 20; 24% nos anos 30; 26% nos anos 40; 21% nos anos 50; 12% os anos 60).” (Escravidão e capitalismo histórico no século XIX, Rafael Marquese e Ricardo Salles organizadores, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2016, p. 141)

Os traficantes e senhores de escravos acreditaram na eficiência de um sistema econômico ultrapassado e, por isto, foram sendo ultrapassados. É difícil explicar este apego dos brasileiros à escravidão. Talvez a percepção distorcida (oriunda da diferenciação entre brancos ricos e índios e escravos miseráveis) tenha criado neles a sensação de que eles eram bem sucedidos exatamente quando estavam fracassando.

Mas o fracasso do Brasil não foi apenas econômico (fenômeno apontado de passagem nos textos acima reproduzidos). Nosso maior fracasso foi, sobretudo, humanitário. Convivemos tempo demais com as sevícias da escravidão e, pior, construímos para nós mesmos o mito dos cordiais senhores de escravos brasileiros. A historiografia rejeita enfaticamente este mito.

“Outra característica constante era a reiteração dos defeitos físicos desses escravos rurais, que poderiam advir tanto do duro ofício, que os diferenciavam de outros tipos de escravos…

‘Fugiu de Bragança, no dia 17 do corrente mez, o escravo Jovito de 18 annos mais ou menos, pardo, sem barba, olhos vivos, foi criado de servir na corte. Há pouco mais de um mez foi vendido nesta cidade para serviço de roça e por isso está com as mãos callosas…’ (Correio Paulistano, 23 de maio de 1880)

… como de torturas e sevícias que pareciam constituir fato corriqueiro, e que eram destacadas nos anúncios como sinais para uma possível captura. Assim, ‘peças e ganchos’, ‘cicatrizes’. ‘marcas de ferro’, membros mutilados… não só testemunhavam os rigores da escravidão como também acabavam por ser utilizados como sinais, que dificultavam a evasão do cativo, marcando em seu próprio corpo a sua condição.

‘Casa Branca

Fugio da fazenda de Francisco Prudente José Correa o escravo Agostinho, de cor preta, tocado a fulla (…) tem um sinal no pescoço [ferro] e este recente (…) este escravo foi a 2 mezes submetido a julgamento no jury desta cidade e sendo condennado a açoute tem sinal de castigos nas nádegas. Esteve açoitado por 10 mezes. Quando preso precisa de toda a cautela pois tem conseguido soltar-se estando preso em ferro.’ (Correio Paulistano, 10 de fevereiro de 1880)

‘Deolindo natural de Bahia, signais de castigo nas nádegas, alto e corpo regular (…) idade 40 annos mais ou menos (…) fugiu com peças e ganchos e quando tenha tirado deve existir os sinais de ferros… (Correio Paulistano, 28 de janeiro de 1874).” (Retrato em Branco e Preto – Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XX, Lilia Moritz Schwarcz, Companhia das Letras, São Paulo, 2008, p. 145)

Qual a relevância de discutir, neste momento, o atraso econômico, político e humanitário produzido no Brasil pela escravidão? A resposta a esta pergunta é obvia. Os reflexos daquele fenômeno ainda podem ser vistos diariamente. Os jornais e telejornais exibem a exuberância e plenitude das vidas de juízes e promotores que ganham acima do teto e celebram as carreiras medíocres de políticos tucanos intocáveis pelo sistema Judiciário. Abaixo deles, ignorados pela imprensa vivem os “outros” brasileiros, aqueles que são vítimas  da violência policial e degolados nos presídios em razão do descaso das autoridades governamentais irresponsáveis pelos seus atos e omissões. Não por acaso os juízes, promotores e políticos raramente não são descendentes dos escravocratas, enquanto os demais quase sempre são descendentes de índios e de negros.

Este tema, porém, se tornou ainda mais relevante neste momento. De canetada em canetada Michel Temer e seus sabujos no Congresso Nacional estão reduzindo direitos sociais, trabalhistas e previdenciários que estavam começando a civilizar a elite brasileira e a elevar a autoconsciência humana dos “outros” brasileiros.

Se o processo histórico iniciado por Temer não for imediatamente detido e revertido, as piores características profundas da civilização brasileira retornarão à superfície. Após as inevitáveis comoções (provocadas pela resistência sindical, que certamente será ferozmente reprimida) e acomodações (produzidas com ajuda das igrejas evangélicas que pregam a submissão cega aos empresários ungidos pelos pastores) veremos a consolidação e legitimação de condições de trabalho análogas à escravidão. E em pouco tempo as punições corporais voltarão a ser aplicadas aos empregados dentro de seus locais de trabalho.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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