Transtorno em SP poderia ser evitado

Do Brasilianas.org

Chuvas: transtorno em SP poderia ser evitado 

Por Bruno de Pierro e Lilian Milena

As cenas de ruas alagadas e transbordamento do rio Tietê, em São Paulo, tornaram-se clichê dentro das narrativas e dos noticiários nesta época do ano. A cada alagamento, renovam-se as discussões sobre qual o verdadeiro culpado das tragédias: a administração pública ou a natureza? Segundo o professor do Departamento de Projetos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP João Sette Whitaker, esta última está apenas dando um “carimbo” de que não houve competência administrativa.

Na entrevista concedida à repórter Lilian Milena, do Brasilianas.org, Whitaker é enfático ao atribuir ao planejamento público a responsabilidade pelas enchentes todos os anos. Entre as falhas graves, está o fato de se considerar a média de chuva anual, e não o pico de chuvas, na formulação de políticas públicas de prevenção. “Se você faz uma política, ou uma obra, que se conforme em função do pico, por mais que esse pico aumente, não terá nunca um aumento que seja tão significativo”, argumenta.

SemdSem deixar de lado os fatores históricos, o professor destaca equívocos do processo de urbanização no Brasil, marcado, de acordo com ele, por um liberalismo absoluto ao mercado imobiliário. “Não podemos continuar num país que deixa o mercado imobiliário fazer o que bem entende”, critica.

Whitaker ressalta que as recentes obras na Marginal Tietê não priorizaram a questão das enchentes, além de não cumprirem com o objetivo proposto pelo governo, de desafogar o trânsito na capital.

Acompanhe os principais pontos da entrevista.

Fenômenos naturais versos falta de planejamento público    

O problema das enchentes, enfrentado anualmente na cidade de São Paulo, é uma questão de políticas públicas mal aplicadas e planejamento mal feito. Independente do volume de chuvas aumentar anualmente ou não. Qualquer engenheiro ou arquiteto civil sabe, perfeitamente, que para construir o telhado de uma casa, e até uma grande avenida ao lado de um córrego, deve-se considerar o pico de chuvas que haverá no ano, e não da média de chuva anual.

Por exemplo, se chove 100 milímetros em um mês, distribuídos por 30 dias, a chuva vai ser amena. Enquanto que, se chover 100 milímetros em um só dia, vai ser um desastre, apesar da média mensal ser a mesma. Portanto, se você faz uma política, ou uma obra, que se conforme em função do pico, por mais que esse pico aumente, não terá nunca um aumento que seja tão significativo.

Qual é a diferença entre o problema que temos aqui, e o que está acontecendo na Austrália, ou quando neva demais no Canadá, ou na França, que teve uma onda de frio muito grande? A diferença é que, nesses locais, justamente quando ocorre isso, foi porque o nível do fenômeno climático ultrapassou o pico previsto pela política pública do ano anterior. Por isso, enquanto na Europa morrem os mais frágeis, aqui, quando acontece uma tragédia, todos correm risco. Não tem uma coisa que se diga “nossa, a política tava bem estrutura, mas não lembramos que tinha uma população mais fragilizada e na hora do pico foi atingida”.  

No Canadá, existe uma política para combater a questão da neve, que chega a 4 ou 5 metros no pico de inverno. Se chegar um ano, e nevar 6 metros no inverno, terão alguma conseqüência, sim. Mas o impacto será bem menor, porque fizeram ações preventivas em cima de um pico pouco inferior ao fenômeno que ultrapassou o esperado.

Isso mostra, [apesar de ser] uma explicação pouco técnica, que o que acontece aqui é realmente devido à falta de planejamento de política pública. As enchentes que ocorrem todo início do ano não surgem como se fossem inesperadas. O que acontece aqui é a crônica da tragédia anunciada. Ela se repede exatamente a cada 12 meses, ano a ano.

A responsabilidade criminal dos governos

O que tem que ser colocado agora, de maneira clara, é que existe uma responsabilização, que deveria ser pensada até em termos criminais, dos administradores públicos do país, quando você tem uma situação que é reiterada ano a ano, que se repete, e que envolve vidas humanas.

Tudo bem se essa situação ocorre em municípios que ainda não tinham sido atingidos, sempre vai ter a possibilidade daquele prefeito argumentar que foi surpreendido, mas na hora que isso acontece de novo no lugar que já ocorreu, a natureza está dando um carimbo de que não houve competência administrativa.

A questão da competência administrativa deve ser colocada. A cada ano nós vamos lá, e repetimos exatamente as mesmas observações.

Urbanização: interesses imobiliários e políticos

Os principais erros de competência, pelo menos do caso de São Paulo, é uma questão complexa e que envolve várias dimensões. A primeira é histórica e diz respeito à lógica da urbanização brasileira. A dinâmica como se dá o crescimento das cidades no Brasil é extremamente equivocada, porque foi marcada por um liberalismo absoluto para com os agentes construtores da cidade – basicamente o mercado imobiliário – mas também as grandes obras públicas de cunho eleitoreiro, que é o que marcou o crescimento da cidade.

O resultado disso é, do ponto de vista de obras públicas, que você tem avenidas de fundo de vale, expressas, que tamponam ou canalizam os rios, que vão alterando a lógica do sistema hídrico da cidade. Você tem o desaparecimento das matas ciliares, da possibilidade de ter parques lineares ao longo dos córregos e dos rios. Existe um professor da FAU-USP, chamado Vladimir Bartalini, que tem um trabalho que se chamaOs córregos ocultos da cidade, no qual mostra que existem milhares de córregos que a gente nem sequer sabe onde estão – foram completamente soterrados pelo crescimento das cidades.

Essa lógica da obra, que não prevê o regime de águas, as questões de drenagem, ou que sub-dimensiona essa questão em detrimento de obra das questões que “interessam”, é um problema do ponto de vista público. Vou dar um exemplo recente: as obras da Marginal Tietê foram feitas ao custo de R$ 1,8 bilhão, há quatro ou cinco meses – nem vou entrar na questão da justificativa, se essa obra é ou não é necessária para o tráfego, porque, além do mais, ela é inútil do ponto de vista do tráfego de São Paulo. Mas ela é de significativo investimento público e, passado dois meses da inauguração, na primeira grande chuva, antes de ontem [12/01], a Marginal Tietê estava alagada do começo ao fim.

Como eu, cidadão, posso imaginar que se invista mais de bilhão em uma obra e, dentro do conjunto de coisas que são feitas nessa obra, não se tenha sido considerada a perspectiva de uma cheia acima da média, ou dentro dos picos do rio em torno do qual essa obra está sendo feita?

Regulação de obras de construção civil é deficiente

Agora, junto com essa questão das obras públicas, que tem um caráter eleitoreiro, que não consideram essa questão sistêmica, você tem outro problema que é da liberalidade do mercado da construção civil, que verticaliza de maneira inconseqüente, que produz subsolos de qualquer tamanho, de três quatro andares de pavimento para estacionamento, e isso afeta o lençol freático, afeta os caminhos naturais de drenagem da água por onde tem que correr.

A regra de impermeabilização é muito liberal também, não tem mais como a terra respirar e absorver essa quantidade de água que, além do mais tem o seu fluxo acelerado pela pavimentação, pelo asfalto exagerado. Fora isso, você tem uma segunda dimensão que é do que pode ser feito apesar dessa lógica de urbanização.

O que deve ser feito para reverter o processo histórico

Primeiro, é preciso mudar essa lógica [da urbanização livre]. Não podemos continuar num país que deixa o mercado imobiliário fazer o que ele bem entende. E isso, agora numa cidade como São Paulo, onde o prefeito é oriundo do mercado imobiliário, é gritante. A reedição do Plano Diretor da cidade de São Paulo não sai do papel. A proposta tem envolvido mais liberalidades ao mercado, mais capacidade de construção. Então, se for ver toda essa disputa que está existindo em torno do Plano Diretor, é exatamente o reflexo disso [da liberdade dada ao mercado imobiliário]. Precisa-se mudar, e isso é uma questão estrutural muito grave.

Políticas públicas de assentamento 

 Uma questão fundamental é a urbanização brasileira. Ela é feita de maneira estrutural e endêmica, é excludente e segregadora, empurra para a periferia as populações pobres. Nossa sociedade não dá alternativa de moradia para a população pobre, nem do ponto de vista de mercado, nem do ponto de vista de política pública, pelo menos não de forma suficiente. Resultado: a população mais pobre vai se assentar nos lugares onde consegue, por meio da expansão periférica que, ao mesmo tempo, vai se urbanizando ao longo do tempo, e os mais pobres vão indo cada vez mais longe. Até chegar uma hora que vão parar nas áreas de proteção ambiental, áreas ambientalmente mais frágeis, como Serra da Cantareira, ou nas represas. Isso não afeta de apenas a questão do regime de águas das represas, mas também coloca a população em áreas de risco, que podem levar a tragédias muito grandes.É uma aberração, portanto, o governador ou o prefeito responsabilizar essas pessoas – como aconteceu ano passado no Rio de Janeiro. Um estado não pode estar falando isso, porque as pessoas têm o direito à moradia. Está estabelecido na Constituição o direito a moradia digna. 

Porém, temos agora uma situação pouco peculiar na serra do Rio de Janeiro. Nessa cidade formal, que tem asfalto, impera a liberalidade, a corrupção e, portanto, a facilidade de você passar por cima da lei. Nessas situações de cidades turísticas e que tem encostas em áreas arriscadas, é muito fácil o sujeito, por ter dinheiro, burlar a lei e criar uma situação de risco.

Compensação da urbanização historicamente mal planejada

 Apesar dessa dimensão estrutural, pode-se fazer coisas que a gente chama de políticas de fiscalização, manutenção e prevenção. E essas políticas não são feitas.

Fiscalização é fazer um cadastramento, por exemplo, das áreas de risco das cidades. Isso começou a ser feito pelo IPT [Instituto de Pesquisas Tecnológicas] em São Paulo mas, até onde eu sei, foi descontinuado.

É fácil para um técnico olhar uma favela e verificar as casas que estão em risco – o que o IPT começou a fazer, na gestão da Marta, de levantar quais são as áreas de risco e fazer uma ação preventiva e retirar as pessoas antes que a calamidade ocorre. Municípios brasileiros carecem de metodologia para mapear locais de risco 

Acompanhamento e cadastramento

Levantamento, acompanhamento e cadastramento são da primeira fase. Ocorre que isso não é feito em São Paulo. A verdade é que também não existe uma prática, e nenhuma metodologia para que isso seja feito em todos os municípios. Se você vai nos municípios menores, como São Luiz do Paraitinga, essas cidades serranas do Rio, como Sumidouro, Petrópolis, eles não tem absolutamente nenhum controle sobre a ocupação territorial. Você precisa ter, não só para São Paulo, mas todos os municípios brasileiros, a consolidação de uma metodologia de um procedimento de acompanhamento, cadastramento e prevenção das áreas de risco. 

Manutenção dos sistemas de drenagem 

Precisa-se ter, também, uma política de investimentos significativos na manutenção dos sistemas de drenagem e captação de água. Tem que haver ampliação, porque, como a urbanização nociva, estrutural não parou e continua, não basta só manter o sistema de bocas de lodo, galerias, drenagens e canalização de córregos, que já é falho. É preciso ampliar; a urbanização crescente gera mais demanda de drenagem. Logo, deve ampliar-se permanentemente, até mesmo como piscinões – mesmo que sejam soluções que nem sempre são as melhores. Todas essas soluções paliativas têm que ser permanentemente pensadas e ampliadas. E isso não é feito, definitivamente.

Ampliação de investimentos e grupos de estudo 

Num país como o Canadá, onde há problemas com a neve, existem investimentos públicos significativos não só nas políticas de prevenção, mas também para financiar estudos na universidade. Conheço um professor que é de um grupo de pesquisa sobre os efeitos do sal que jogam para derreter a neve na cidade de Montreal no rio de Montreal – Saint Laurent. Esse nível de sal estava afetando o equilíbrio ambiental e a poluição daquele rio. O grupo de pesquisa está há anos estudando isso e vendo quais são as alternativas. Ou seja, você tem uma mobilização envolvendo produção de conhecimento em torno dessas questões. Aqui, temos o IPT, talvez alguma coisa na Poli-USP, mas onde tem uma política estruturada por parte do Estado, ou do governo federal, uma linha de fomento para essas discussões e pesquisas? Isso não existe.

Reversão da impermeabilização urbana

É necessário também uma política de reversão da impermeabilização do estado, ou seja, a recuperação dos córregos, a realização de parques lineares – em São Paulo até começou a ser feito agora com o [Gilberto] Kassab e o secretário Eduardo Jorge, mas foi muito anunciado e pouco foi feito. Você recuperar os rios e córregos, as margens com matas ciliares, fazer revegetação, e recuperar parques lineares que aumentem não só a capacidade de drenagem do solo, permeabilidade, como também a possibilidade desses córregos terem um regime razoável, podendo encher e secar, deixando parques e áreas de lazer durante o inverno.

Essas políticas públicas não são feitas porque em julho ninguém mais fala delas. Ninguém lembra que isso tem que ser feito durante essa época de inverno para não chegar no verão, quando estarmos despreparados. O problema é que realmente a natureza não perdoa e vem cobrar. É muito difícil quase que uma aberração ter governador anunciando no meio da tragédia que ele vai investir R$ 800 milhões [para desssoreamento dos rios Tiête e Pinheiros] – não estamos falando de alguém que entrou [no governo] agora.

Curto prazo

Muitas [realizações] são rápidas, como os planos de prevenção imediata de manutenção do sistema de drenagem, canalização, bocas de lodo, de recuperar matas ciliares. Ttudo isso pode ser feito a partir de amanhã. No ano passado, o Jardim Romano ficou embaixo de água, porque houve opção da Sabesp de abrir comportas, pois ela não estava agüentando o regime de chuvas em algumas represas; e, um ano depois, estamos exatamente com o mesmo problema. É a mesma questão da Sabesp estar fazendo uma incorreta gestão das represas e dos reservatórios de água, tendo que abrir de novo comportas e promovendo enchente. Tem um problema técnico e está claro para poder ser resolvido. Engenharia urbana existe para isso.

Luis Nassif

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