“Três Estranhos Idênticos”, por Jorge Alberto Benitz

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Uma clara demonstração de como a ciência, quando não acompanhada de cuidados éticos, pode se constituir em fabricante de monstros; mesmo quando se pretende imbuída de bons propósitos.

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Three Identical Strangers “Três Estranhos Idênticos”

por Jorge Alberto Benitz

    Three Identical Strangers “Três Estranhos Idênticos”, do diretor Tim Wardle, disponível na Netflix, conta a história dos estadunidenses David Kellman, Edward Galland e Robert Shafran, que se reuniram 19 anos depois.  Documentário sensacional menos pelo inusitado da situação, que, não por acaso, rendeu várias apresentações deles em programas popularescos, do que pela questão ética envolvida. Questão ética que a julgar pelo visto no documentário passou batido neste tipo de programa que só explora o lado sensacional dos trigêmeos como gostar de fumar o mesmo cigarro, todos terem participado de lutas e, enfim, serem muito parecidos nos hábitos e gostos a despeito da separação. Não quero dizer que estes aspectos não são interessantes, mas havia muito mais questões que não teriam sido percebidas não fosse a atuação do jornalista investigativo da revista New Yorker, Lawrence Wright, responsável pela primeira reportagem investigativa sobre o caso em 1995, ir mais a fundo na história. Estou tentando não cometer spoiler. Não sei se vou conseguir.  

    Graças a investigação inicial de Lawrence Wright se descobriu que o estudo científico do psiquiatra Peter Neubauer recrutou participantes através de agências de adoção judaicas por toda a Nova York de 1960 para que ele pudesse entender como era o desenvolvimento de crianças com composições genéticas idênticas quando separadas após o nascimento. Ele queria saber quais traços específicos da personalidade de um indivíduo vem da natureza e quais da criação.

    Esta questão filosófica, envolvendo natureza e criação, vem sendo abordada pela filosofia desde há muito tempo. John Locke, filósofo empirista inglês, por exemplo, considerava que somos página em branco. Para ele, a sociedade, suas relações e experiências particulares imprimem a identidade, os vícios, as virtudes e os defeitos. O homem, enfim, é formatado pelo seu meio.  Rousseau, por sua vez, vai além, afirmando ser o homem `uma página em branco`, na qual o Estado e a sociedade inscrevem seus valores. A julgar pelos resultados da “pesquisa” dos três gêmeos, os filósofos citados est&ati lde;o meio certos e meio errados, isto é, nós somos mais o produto de um processo dialético, o que significa que em alguns pontos somos “páginas em branco” e em outros não. Em outras palavras nem somos totalmente determinados biológica e psicologicamente e, portanto, não somos produtos pré-fabricado pela natureza, e não somos só criação determinada pelos valores do meio. Inclusive, podemos transcender os determinismos natureza e criação via cultura política, filosófica e ideológica.  

    No caso dos trigêmeos foi revelado, a despeito do questionamento do caráter aético e inumano da “pesquisa”, que o diferencial na saúde mental deles foi o afeto recebido e não a classe social. Tanto que o mais privilegiado socialmente foi o que mais sofreu na vida e o que foi adotado por pais de classe média baixa foi o que melhor se saiu, neste sentido, graças a família que o adotou ser mais afetuosa.  

O que começou como um conto de fadas, se transformou, com o desvelamento via investigação do jornalista Lawrence Wright, em algo escandaloso e com aspectos sombrios.  Uma clara demonstração de como a ciência, quando não acompanhada de cuidados éticos, pode se constituir em fabricante de monstros; mesmo quando se pretende imbuída de bons propósitos.

    Querendo estudar o comportamento humano Peter Neubauer e sua equipe enveredaram por uma metodologia em tudo questionável por envolver não ratos de laboratórios, mas seres humanos com as implicações graves que disso advém. Pensei em afirmar que psicanalistas ou psiquiatras europeus, inclusive os não judeus, seriam incapazes de cometer ou mesmo cogitar de fazer uma pesquisa como esta. Depois descobri que Peter Neubauer era austríaco, fugitivo do nazismo, e tinha formação totalmente europeia, inclusive tendo trabalhado com Anna Freud em Londres.

    Cogitei esta possibilidade por achar que alguém conhecedor dos horrores do nazismo seria incapaz de sequer pensar e muito menos praticar este tipo de experimento que atropela qualquer resquício de humanidade e senso ético.  Uma das depoentes que aparecem no documentário, inclusive, lembra o quanto este tipo de experiência remete ao holocausto. O experimento com gêmeos tem semelhanças com os feitos por Mengele.

    O documentário não fica só nisso. Além de ser construído em camadas que se sucedem, revelando, ao se passar de uma para outra, situações surpreendentes e aterradoras em um crescendo que não fica em nada devendo a um bom thriller policial, ele é rico em abordar outras questões importantes, ainda que de modo secundário, como o acobertamento de malfeitos de poderosos, a sensibilidade, que muitos acham ser impossível, dos recém-nascidos que de algum modo manifestaram sua raiva e dor com a separação. Mais não digo para evitar mais spoiler.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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