Trump ganhou, e agora José?

Para entender a vitória de Donald Trump é preciso recordar algumas características principais que distinguem os EUA da Europa e do Brasil: valorização do sucesso pessoal, rejeição do culto à aristocracia, continuidade sob permanente transformação e compromisso ideológico em fazer mudanças que, no entanto, são incapazes de afetar profundamente o modo de vida americano. Sobre estas especificidades norte-americanas diz Seymour Martin Lipset:

“… o igualitarismo foi o motivo explícito da revolta contra as tradições do Velho Mundo, enquanto a ênfase no trabalho árduo e no bom êxito dos empreendimentos há muito era uma parte integrante da ética protestante. Além disso, a necessidade de valorizar ao máximo o talento devido ao empenho da nova nação de ‘ultrapassar’ o Velho Mundo levou a uma valorização ainda maior do bom desempenho do indivíduo, independentemente de sua condição social.” (A Sociedade Americana, Seymour Martin Lipset, Zahar editores, Rio de Janeiro, 1966, p. 121)

“A riqueza da nação nunca foi distribuída tão igualmente como as franquias políticas. A tendência ideal de realização para enfraquecer uma realidade como a igualdade e para estruturar uma sociedade diferenciada por classes distintas foi anulada pela periódicas vitórias das forças da igualdade na ordem política. Boa parte da história política americana, como notou Tocqueville, pode ser interpretada em termos de uma luta entre defensores da igualdade e futuras aristocracias de berço ou de riqueza.” (A Sociedade Americana, Seymour Martin Lipset, Zahar editores, Rio de Janeiro, 1966, p. 122)

“… ao contrário do que pensam os americanos, tem havido surpreendente continuidade na história de seu país em comparação com a história das nações européias. Essa propensão dos americanos para afirmar que a nação está passando por uma transformação em qualquer ‘tempo atual’ relaciona-se com uma ‘tendência que lhes é quase inerente para acreditarem que estamos separados definitivamente do passado como se entre hoje e ontem se interpusesse uma barreira física’.” (A Sociedade Americana, Seymour Martin Lipset, Zahar editores, Rio de Janeiro, 1966, p. 125)

“…a América é exemplo de um país em que a mudança social não destrói o tecido da sociedade, precisamente porque é baseada num compromisso ideológico com a mudança.” (A Sociedade Americana, Seymour Martin Lipset, Zahar editores, Rio de Janeiro, 1966, p. 125)

Outra característica que distingue os EUA da Europa e do Brasil é a fixação que os norte-americanos têm ou são levados a ter de “fazer algo a respeito” das contradições e crises que eles acreditam afetar o país deles e a frustração que resulta do fracasso de suas ações. Sobre isto diz Roy Wagner:

“…A tendência da cultura é manter-se a si própria, reinventando-se. Mas tenho observado que os controles convencionais da Cultura norte-americana são altamente relativizados – como dispositivos de ordenação e unificação, são eles próprios desordenados e particularizados: nossa ciência e nossa tecnologia são irremediavelmente burocratizadas, nossos símbolos nacionais são indiscutivelmente ambivalentes. A Cultura é ambígua (e a antropologia em grande medida existe por explorar essa ambiguidade). De resto, isso não se deve ao roubo de nossos fluidos vitais pelos comunistas, ao relaxamento da disciplina, aos espoliadores que espoliam O Meio Ambiente, aos Jovens Mal-Agradecidos por Sua Educação ou ao ‘tumulto mecânico por um pedaço de pão’, ainda que alguns desses fatores sejam sintomas importantes, Isso decorre diretamente do fato de que nos agarramos à nossa Cultura – às suas orgulhosas tradições, às suas técnicas poderosas, à sua história e à sua literatura, às suas impressionantes fileiras de Grandes Nomes – acima de todas as tentativas de reinventá-la. Não remodelamos completamente nossa Cultura e sua história de tempos em tempos e  caímos num limbo de total recriação porque amamos tanto nossa Cultura. Tentamos refazê-la outra vez e mais outra, e vejam o que conseguimos!

Embora nada vá me fazer deixar de amar Mozart, Beethoven e as Sinfonias Londrinas de Haydn, essa insistÊncia na Cultura, e a relativização que ela acarreta, força os americanos a viver numa contínua frustração de soluções que se desfazem em suas próprias mãos e numa contínua tensão de ‘querer fazer algo a respeito’ das coisas. Essa tensão e essa frustração impregnam nossas vidas moral, social, política, econômica e intelectual. Em muitos aspectos, elas são o que há de mais importante sobre os Estados Unidos. Isso torna nossos esforços de ‘fazer algo a respeito’ e de inventar a Cultura duplamente interessantes, muito embora estejam fadados a fracassar em certos aspectos.” (A Invenção da Cultura, Roy Wagner, Cosacnaify portátil, São Paulo, 2014, p. 157/158)

Os ideólogos da antiga URSS também foram capazes de perceber a profunda continuidade existente na cultura e na política dos EUA.

“Somos cautivos de la guerra y necesitamos de la paz. Sufrimos a causa de las disensiones y necesitamos la unidad. Vemos en torno nuestro una vida que necesita objetivos. Vemos tareas que hay que cumplir, las cuales esperan las manos que puedan cumplirlas.

Para esta crisis espiritual necesitamos encontrar una respuesta espiritual.

Este reconocimiento es tanto más sintomático porque en los últimos años en los EE.UU. se ha convertido en una tradición que cada nuevo presidente, al tomar en sus manos las riendas del poder, se considera obligado a dar esperanzas a la opinión pública de que la sociedad norteamericana recobrará por fin los valores espirituales perdidos. J. Kennedy prometió en su tiempo abrir ‘nuevos horizontes’ ante los nortemaericanos, L. Johnson ofreció construir la ‘gran sociedad’ y R. Nixon llamó a encontrar una respuesta espiritual a la crisis espiritual. Pero la agudeza de la crisis político-ideológica no decrece.

La incapacidad de resolver los problemas socieales y políticos maduros mete cada vez más a la sociedad capitalista en un atollero del que los cículos más reaccionarios ven solamente una salida: la violencia encarnizada con respecto a las masas trabajadoras y fuerzas progresistas, la violencia en todas sus formas, has las más extremadas.” (Ideologia y Politica, V. Kortunov, Editorial Progreso, Moscú, 1977, p. 310/311)

Barack Obama, primeiro negro a ocupar a presidência norte-americana, fez os eleitores acreditarem que ele realizaria mudanças importantes na política dos EUA. Ao fim dos dois mandatos dele, podemos dizer com certa margem de segurança que Obama mudou bem pouco a realidade política dentro e fora de seu país.

O racismo não ressurgiu com Donald Trump, nem foi especialmente intensificado pelo ódio provocado em razão da vitória de Barack Obama. De fato, as tensões raciais sempre existiram nos EUA e só não aumentaram muito porque o presidente negro se recusou a utilizar as estruturas de poder à sua disposição para reprimir, perseguir e punir os grupos racistas que ajudariam Trump a ganhar a eleição.

Quando era candidato Obama falou em mudança. Eleito ele manteve a política externa imperial agressiva suavizando-a (o democrata preferiu empregar drones e terroristas ao invés de usar as Forças Armadas dos EUA para invadir a Líbia e a Síria). Em casa, Obama não chegou a abalar os fundamentos do neoliberalismo decepcionando muitos daqueles que acreditaram nele. Hillary Clinton perdeu a eleição porque os eleitores queriam fazer algo a respeito do empobrecimento visível dos norte-americanos. Não há dúvida de que ela foi rejeitada pelos pobres que dizia representar melhor do que Trump.

O novo presidente dos EUA pode, portanto, ser considerado uma síntese da cultura norte-americana. Donald Trump, empresário bem sucedido, flertou com o racismo (fenômeno social permanente que tem um peso eleitoral importante nos EUA) e se apresentou como instrumento da mudança desejada pelo eleitorado neste momento. Mas ele tomou o cuidado de não reproduzir os mantras eleitorais de Obama.

Donald Trump rejeitou a globalização e os efeitos devastadores neoliberalismo, mas não se comprometeu a destruir o capitalismo e desmantelar o império norte-americano. Muito pelo contrário, ele disse que reconstruiria ambos (o capitalismo e o império) mediante um retorno ao isolacionismo econômico do passado.

A eleição foi perdida por Hillary, mas também foi ganha por Trump. O bordão eleitoral que ele empregou (“Fazer a América grande de novo”) sintetiza de maneira perfeita e profunda tudo que foi dito por Seymour Martin Lipset, Roy Wagner e V. Kortunov sobre a sociedade norte-americana: tensão, frustração, esperança, desejo de mudança, ação regeneradora, recorrência do passado e, sobretudo, a valorização do esforço para distinguir os EUA da Europa e do Brasil.

É evidente, portanto, que a sociedade norte-americana só sofrerá mudanças significativas se a reação a Donald Trump se espalhar e se tornar mais violenta do que está sendo. Isto não ocorrerá se depender das lideranças democratas, pois elas aceitaram o resultado da eleição.

Se os movimentos de secessão, que crescem na Califórnia e no Oregon em razão da vitória republicana, forem levados adiante e produzirem fragmentação territorial nos EUA, uma nova guerra civil norte-americana será inevitável. O uso da violência política dentro daquele país será, contudo, apenas consequencia da incapacidade dos norte-americanos de resolver outro problema político maduro: o império norte-americano não consegue mais se sustentar e Trump não irá sustentá-lo alimentando esperanças na população como Kennedy, Johnson e Nixon.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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