Trump no Congresso: um discurso repleto de política fascista, por Henry A. Giroux

Para catedrático, discurso de Trump sobre o Estado da União se alinhou com políticas fascistas e mentiras deslavadas; fantasma de Orwell nunca esteve longe

Foto: Reprodução

Da Agência Carta Maior

Trump no Congresso: um discurso repleto de política fascista

Por Henry A. Giroux*

Tradução de César Locatelli

O fantasma de Orwell nunca esteve longe da retórica enganosa de Trump, mentiras deslavadas, afrontas desumanizadoras e políticas punitivistas. Todos estes últimos traços estavam em clara exibição no discurso de Trump sobre o Estado da União de 2020.

O discurso de Trump oscilou entre verdades absolutas, o que é esperado dos demagogos, incluindo comentários que variam entre como é grande a América (negligenciando que milhões vivem na pobreza e milhões perderam seus planos de saúde sob Trump) e como a economia dos EUA está em um crescimento sem precedentes (quando na realidade, cresceu no ritmo mais lento desde 2016).

O discurso de Trump também incluiu alegações escandalosamente falsas sobre seu suposto apoio a pessoas com doenças preexistentes e a proteção dos programas de Seguro Social, Medicare e Medicaid, quando, na realidade, ele tomou medidas para enfraquecer ou eliminar proteções para pacientes nessas condições, e propôs cortar o financiamento para os três programas sociais.

Sociedades autoritárias protegem os poderosos – não os pobres ou vulneráveis – e Trump deixou isso claro ao se gabar de políticas tributárias que beneficiam amplamente os ultrarricos e as grandes empresas. Ele mentiu sobre seu apoio aos direitos dos trabalhadores e à “restauração dos direitos de fabricação”, enquanto continua revogando normas regulatórias que colocam em risco o meio ambiente e a saúde dos trabalhadores e de muitas outras pessoas nos EUA.

Sua afirmação de que ele lançou o grande retorno americano está ligada a políticas mortíferas que variam da criminalização de problemas sociais, demonização e punição de imigrantes sem documentos e seus filhos, à assunção da retórica ultranacionalista e supremacista branca que reproduz políticas de limpeza social e racial das sociedades fascistas anteriores.

Quando Trump diz em seu discurso “nossas famílias estão florescendo”, ele deixa de lado a miséria e o sofrimento que infligiu a muitas pessoas que não se encaixam em sua noção cristã branca da esfera pública, assim como a imigrantes e a outras pessoas negras e pardas que ele considerou descartáveis.

Sua alegação de estar construindo a sociedade mais próspera e inclusiva do mundo está coberta de má fé, dado não apenas seu racismo manifesto, mas também seu uso dos serviços do nacionalista branco Stephen Miller, como seu conselheiro de confiança e principal escritor de discursos, da mesma forma que a concessão da Medalha Presidencial da Liberdade a Rush Limbaugh, um radialista conservador cujos racismo, misoginia e sexismo são o seu cartão de visita.

Como a maioria dos demagogos de direita, Trump se refere aos cuidados de saúde nacionais, que a maioria dos países avançados têm, como “socialista” e, absurdamente, procura retratar esses programas de saúde, projetados pelos democratas, como feitos em grande medida para beneficiar imigrantes sem documentos.

A ignorância de Trump, que está longe de ser inocente, ficou escancarada quando ele afirmou que seu governo está trabalhando para proteger o meio ambiente plantando novas árvores. Ao mesmo tempo, ele reverteu várias normas ambientais voltadas para a proteção do meio ambiente, retirou os EUA do acordo do clima de Paris, afrouxou os regulamentos sobre poluição tóxica do ar, abriu terras públicas para empresas e destruiu o poder da Agência de Proteção Ambiental (EPA), entre outras políticas.

Em seu discurso sobre o Estado da União, Trump se alinhou, sem remorso, com as políticas militaristas belicistas, como se espera em sociedades fascistas. Suas declarações mais fascistas centraram-se na celebração de funcionários do Controle da Imigração e Alfândega (ICE), confundindo imigrantes indocumentados com “criminosos” e descrevendo as cidades santuário [que não cooperam com a agência federal de imigração na deportação de imigrantes sem documentos] como uma ameaça à segurança e à proteção americanas. Nesse meio tempo, ele se gabou de abarrotar os tribunais federais com juízes de direita e expressou admiração pelos dois juízes de direita da Suprema Corte que ele nomeou, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh.

O Estado da União de Trump estava impregnado com as paixões mobilizadoras do fascismo, incluindo invocações de nacionalismo extremo e apelos à expansão do poder militar, além de racismo declarado, ilegalidade, desprezo por opiniões diferentes e fanatismo anti-imigrante.

Em meio a tudo isso, o Senado controlado pelos republicanos estava desejoso de ignorar o autoritarismo de Trump, seu desprezo pela democracia e seu apego impiedoso pelo poder para absolvê-lo das acusações do impeachment, deixando claro o tempo todo que questões relativas a evidências, fatos, verdade e justiça são irrelevantes para a decisão dos senadores republicanos. O Estado da União de Trump foi mais do que um comovente discurso de campanha – também foi indicativo do estado de declínio e crise que os Estados Unidos estão experimentando sob a sombra sinistra do autoritarismo.

No momento atual, com uma possível guerra com o Irã ainda em construção, as ações antidemocráticas em andamento de um governo Trump profundamente autoritário e a recusa de ambos os partidos políticos e da imprensa corporativa em lidar com a profunda crise econômica e política que o país enfrenta, é crucial analisar a atual crise de governança em um contexto mais amplo que analise o fascismo como uma possível onda do futuro.

Os elementos contemporâneos da tirania em ação nos Estados Unidos apontam, não apenas para uma crise de liderança e para o aumento de demagogos como Trump nos palcos doméstico e global, mas também para as condições e crises que produzem o descontentamento de milhões de pessoas que estão abraçando uma política de medo diante da instabilidade econômica e da insegurança climática.

Vivemos em uma era de crise implacável – uma era marcada pelo colapso de cultura cívica, valores éticos e instituições democráticas que servem ao bem público. A linguagem agora opera a serviço da violência, e a ignorância se tornou um ideal nacional. O fundamentalismo religioso, a supremacia branca e a tirania econômica agora se infundem um ao outro, dando origem a uma recorrência atualizada da política fascista. É uma época em que as profecias apocalípticas substituem a reflexão e os atos recorrentes de responsabilidade social.

Nesta era de crise, os regimes populistas de direita alimentam as teorias da conspiração, normalizam a mentira como uma maneira de degradar o discurso público e elevar a emoção sobre a razão como uma maneira de legitimar uma cultura de crueldade. Como resultado, mais e mais pessoas sentem a necessidade de vingança e a imposição de brutalidade e dano àqueles retratados como descartáveis.

O processo de impeachment fala não apenas do comportamento criminoso e das políticas perniciosas de Trump, mas também de uma crise maciça de ‘alfabetização’ cívica e da incapacidade do público de entender como a sociedade se separou, se tornou mais cruel e se afastou da linguagem da crítica, da esperança e da imaginação social. Uma cultura de renúncia da vida política (culture of withdrawal), privatização e imediatismo reforça a indiferença à vida pública, ao sofrimento dos outros e ao que Hannah Arendt uma vez chamou de “a ruína de nossas categorias de pensamento e padrões de julgamento”.

O espaço da política tradicional e uma cultura orientada pela mídia não mais fornecem a linguagem para entender a totalidade da crise que produziu Trump e o processo de impeachment. Na ausência de uma política abrangente capaz de definir as partes e as linhas relacionadas que apontam para uma sociedade em crise, a violência – especialmente relacionada à junção de um neoliberalismo predatório e uma política fascista da supremacia branca – se torna o princípio regulador da vida cotidiana.

Evidências da natureza distintiva da crise de hoje, tanto em nível nacional quanto global, podem ser vislumbradas nas forças políticas e culturais que moldaram o processo de impeachment do presidente Trump, o fiasco do Brexit e o surgimento de demagogos autoritários no Brasil, Turquia e Hungria, entre outros países.

Trata-se de uma crise geral cujas raízes estão na ascensão do neoliberalismo global, cingido do capital financeiro, enormes desigualdades de riqueza e poder, ascensão do estado de punição racial, violência de estado sistêmica e a criação de uma era de precariedade e incerteza . Esta é uma crise produzida, em parte, por um ataque em larga escala ao estado de bem-estar social, trabalho e bens públicos. Sob tais circunstâncias, a democracia se tornou mais fina e a esfera social e o contrato social não mais ocupam um lugar importante na América de Trump.

Como Nancy Fraser ressalta, “essas forças vêm limando nossa ordem social há algum tempo” e constituem não apenas uma crise de política e economia, que é altamente visível, mas também uma crise de ideias, que não é tão visível. À medida que a economia global se desenredava, a reação, contra as chamadas elites políticas e formas estabelecidas de governança liberal, frequentemente produziu movimentos pela soberania popular que careciam do apelo crucial por direitos iguais e justiça social.

A atual crise histórica não apenas refigura a esfera social como local de comercialismo e infantilismo, mas também redefine questões de agência individual e social, através da mediação de imagens, nas quais a auto-alienação é reforçada, dentro de uma cultura de imediatismo, desaparecimento e fuga de qualquer senso de responsabilidade social.

Máquinas de desimaginação rígida e suave

A crise da política agora é acompanhada por uma mídia digital e uma cultura de tela dominantes e controladas por empresas, que aumenta a ignorância e produz teatro político e narrativas fragmentadas. Ao mesmo tempo, autoriza e produz uma cultura de sensacionalismo projetada para aumentar os índices de audiência e lucros às custas da verdade. Essa cultura solapa uma interpretação complexa da natureza relacional dos problemas sociais e suprime uma cultura de diversidade de opiniões e julgamentos informados.

Vivemos em uma época em que o teatro e o espetáculo da performance esvaziam a política de qualquer substância moral e contribuem para o renascimento de uma versão atualizada da política fascista. A política agora está carregada de linguagem bombástica: palavras encadeadas para chocar, entorpecer a mente e imagens exageradas com um senso egoísta de sedição e raiva. O que é distinto nesse período histórico, especialmente no regime Trump, é o que Susan Sontag chamou de forma de fascismo estético com seu desprezo por “tudo o que é reflexivo, crítico e pluralista”.

Um elemento distintivo do momento atual é o surgimento de máquinas de desimaginação rígida e suave. As máquinas de desimaginação rígida- como Fox News, rádios conservadoras com participação de ouvintes e mídia Breitbart – funcionam como máquinas de propaganda francas e sem hesitação que vendem nativismo, deturpação de informações e racismo, tudo envolto num manto de uma visão regressiva do patriotismo.

Como Joel Bleifuss aponta, a Fox News, em particular, é “flagrante em seu desprezo pela verdade” e se envolve, noite após noite, no “ritual de enterrar a verdade em ‘buracos de memória’”. Bleifuss acrescenta: “Esta rede, a mais assistida rede de notícias a cabo, funciona em sua lealdade a Trump como um Ministério da Verdade do mundo real de George Orwell de 1984, onde os burocratas ‘retificam’ o registro histórico para conformá-los aos decretos do Big Brother.” A política fascista de Trump e as fantasias de pureza racial não poderiam ter sucesso sem as máquinas de desimaginação, os aparatos pedagógicos e os profissionais necessários para tornar sua “visão não apenas real, mas grotescamente normal”.

As máquinas de desimaginação suave ou a mídia convencional liberal, como o jornal televisivo “NBC Nightly News”, MSNBC e a imprensa estabelecida funcionam, em grande medida, para alimentar o universo do Twitter de Trump, a cultura de celebridades e o ethos cruel do mercado – tudo isso ao mesmo tempo em que isolam questões sociais, individualizam problemas sociais e tornam o funcionamento do poder superficialmente visível.

A política como espetáculo satura os sentidos com barulho, melodrama barato, mentiras e bufonaria. Isso não sugere que o espetáculo, que agora molda a política como puro teatro, se destina apenas a entreter e distrair.

Pelo contrário, o espetáculo atual, mais recentemente evidente nas audiências de impeachment no Congresso, funciona em grande parte para separar o passado de uma política que, em sua forma atual, se tornou letal em seu ataque aos valores e instituições cruciais para uma democracia operante. Nesse caso, ecos de um passado fascista permanecem ocultos, invisíveis sob a gritaria histriônica e as campanhas de desinformação que ralham contra as “notícias falsas” (“fake news”), que é um eufemismo para dissidência, responsabilização do poder e uma mídia de oposição. Um talento para o drama excessivo elimina a distinção entre fato e ficção, mentiras e verdade.

Sob tais circunstâncias, o espetáculo funciona como parte de uma cultura de distração, divisão e fragmentação, tudo ao mesmo tempo em que recusa a colocar a questão de como os Estados Unidos compartilham elementos de uma política fascista que o conecta a vários outros países autoritários – tais como Brasil, Turquia, Hungria e Polônia – que adotaram uma forma de estética e política fascista que combina uma cultura cruel de austeridade neoliberal com os discursos de ódio, nativismo e racismo. O teatro político em sua forma atual, especialmente no que diz respeito ao processo de impeachment, enreda elementos de um passado fascista e, ao fazê-lo, cria uma forma de autossabotagem na qual o público se recusa em grande parte a “colocar a questão de por que Hitler e a Alemanha nazista continuam a capturar a vida moderna “.

Esquecimento da História e a Legitimação da Supremacia Branca

Outra lição a ser aprendida com a ausência de história, ou o que significa até ter uma história no discurso em torno das audiências de impeachment, não é apenas como a ignorância se torna a norma, mas também como a ausência de pensamento crítico nos permite esquecer que somos sujeitos morais capazes de mudar o mundo à nossa volta. Ecos de um passado sombrio pairam sobre o processo de impeachment e os crimes do governo Trump. Não apenas as lições não são aprendidas, mas a história está sendo reescrita à imagem do líder místico, uma cultura de mentiras e uma máquina de movimento perpétua que vende racismo, medo e intolerância.

O processo de impeachment de Donald Trump é uma crise que precisa ser totalmente enfrentada tanto historicamente quanto em termos de uma política abrangente, que nos permita aprender com sinais alarmantes vindos do governo Trump. Essa crise contém elementos de um passado que sugerem que não podemos desviar o olhar ou ceder ao atual ataque ao passado como uma medida de respeitabilidade intelectual.

A recusa do Senado, dominado pelo Partido Republicano, de destituir Trump do cargo tanto legitima sua ilegalidade, como deixa claro que Trump é simplesmente um sintoma de uma política fascista que há muito vêm sendo lentamente cozida. Essa é uma política cujas raízes estão profundamente enraizadas na política americana e produziram um Partido Republicano que Noam Chomsky argumentou ser “a organização mais perigosa da história da humanidade”.

Este é um partido político que esquece as narrativas históricas que considera perigosas. Ao mesmo tempo, conjuga sua adesão à amnésia histórica com uma revisão da história, que se baseia em um passado mítico para promover a masculinidade tóxica, o patriarcado e a supremacia branca. Há algo mais operando aqui do que apenas uma noção de história que celebra uma ordem social arcaica e reacionária. Há também as sementes de um autoritarismo crescente.

A história oferece um modelo para aprender algo com suas reviravoltas ao autoritarismo anteriores, tornando mais difícil presumir que o fascismo seja apenas uma relíquia do passado. Memórias de terror não apenas estão presentes no desfile de ódio e intolerância da supremacia branca que ocorreu em Charlottesville, mas também na atual Casa Branca, que abriga supremacistas brancos como Stephen Miller, que é um conselheiro de alto nível de Trump e é visto por muitos como o arquiteto de suas políticas de imigração draconianas. Recentemente, mais de 900 dos e-mails de Miller foram divulgados pela ex-editora do Breitbart, Katie McHugh.

Em meio à valiosa coleção de e-mails, Miller comentou e forneceu referência a sites nacionalistas brancos, como o VDARE, e celebrou o romance racista, O Acampamento dos Santos. Ele “também supostamente adotou teorias da conspiração sobre imigração, apoiou políticas racistas de imigração introduzidas pelo presidente Calvin Coolidge que foram elogiadas por Adolf Hitler e empregou gírias populares nos círculos nacionalistas brancos para se referir à imigração”. Judd Legum argumenta que Miller também “ficou obcecado pela perda de símbolos confederados após a violência homicida de Dylann Roof.”

Apesar de uma série de telefonemas de vários políticos para a exoneração de Miller da Casa Branca, Trump manteve-se firme, reforçando a noção amplamente aceita de que Trump é um nacionalista branco totalmente à vontade com a ideologia da supremacia branca. Isso não é surpreendente, já que Trump trouxe a linguagem do nacionalismo branco para a Casa Branca e para a política dominante.

Evidentemente, remover Miller não mudaria muito. Miller não é o principal supremacista branco no governo Trump. Sua presença também não pode esconder o fato de que a supremacia branca é um elemento básico do Partido Republicano há décadas – evidente na história e na presença contemporânea de políticos republicanos de alto nível, como os senadores Strom Thurmond e Jeff Sessions e os deputados Steve King, Tom Tancredo e Dana Rohrabacher.

Ademais, o longo legado da supremacia branca nos Estados Unidos não deve minar a diferenciação das visões supremacistas brancas de Trump, que ele usa como um distintivo de honra ao escalar e normalizar as sensibilidades, práticas e políticas da supremacia branca, de modo distinto de qualquer outro presidente nos tempos modernos. A demonização e o uso, de políticos, atletas e outros críticos não-brancos, como bodes expiatórios refletem mais do que uma estratégia de dividir e governar, é uma estratégia atualizada para trazer, à tendência atual, elementos fantasmáticos de morte atinentes ao fascismo.

Além disso, ele sempre travou uma guerra contra a mídia e elevou a noção espúria de “notícias falsas” ao nível de uma proposição do senso comum. Esse mais recente termo depreciativo tem uma forte semelhança com a demonização de Hitler da “Lügenpresse” – a imprensa mentirosa. Rick Noack afirma: “A palavra difamatória foi usada com mais frequência na Alemanha nazista. Hoje, é um slogan comum entre aqueles rotulados como representantes da “Alemanha feia”: membros de grupos xenófobos de direita. Essa calúnia nazista também tem sido usada por alguns dos seguidores de Trump.”

Trump legitimou uma cultura de mentira, crueldade e um colapso da responsabilidade social. Ao fazer isso, ele avançou o processo de tentar tornar as pessoas supérfluas e descartáveis, ao tempo em que produzia um nevoeiro de ignorância que dá credibilidade contemporânea à afirmação de Hannah Arendt, em As Origens do Totalitarismo, de que: “O sujeito ideal do regime totalitário não é o nazista convicto ou o comunista convicto, mas as pessoas para quem a distinção entre fato e ficção (ou seja, a realidade da experiência) e a distinção entre verdadeiro e falso (ou seja, os padrões de pensamento) não mais existem.”

Sob esse abismo moral, a política luta contra a verdade e a memória histórica. Isso ficou claro na recusa do Senado em ouvir testemunhas, avaliar evidências e remover do cargo um presidente que abusou repetidamente do poder do cargo e produziu incansavelmente um cenário de ameaça e drama fabricado, apresentado como espetáculo através de ameaças de violência, mentira, medo e fúria branca.

Se a Alemanha nazista ofereceu uma imagem de uma política destituída de responsabilidade social e moral, Trump nos oferece uma prévia de como é a destruição total da democracia e do planeta. A absolvição de Trump como ponto final do processo de impeachment fornece um relance de um partido supremacista branco de direita que rejeitou a democracia em troca de um modo autoritário de governança, que beneficia os ultrarricos, a elite corporativa, a direita evangélica, militaristas, ultranacionalistas e supremacistas brancos.

O Partido Republicano está agora organizado como um culto. Ele sucumbiu a visões totalitaristas, narrativas de declínio histórico e uma política de “purificação” étnica e racial.

Embora o Partido Republicano seja muito mais extremista que o Partido Democrata, deve-se lembrar que ambos participam, se beneficiam e apoiam o que Robert Jay Lifton chamou de “normalidade maligna”, que ele define em seu livro Losing Reality como “a imposição de uma norma de comportamento destrutivo ou violento, de modo que esse comportamento seja esperado ou exigido das pessoas.”

Em um nível, isso me parece uma definição adequada de uma forma raivosa de neoliberalismo e capital financeiro que agora é reproduzida de diferentes formas pelos dois partidos. Em outro nível, aplica-se aos “arranjos assassinos” que definem a política fascista praticada pelo governo Trump. Vale a pena citar exaustivamente Lifton. Ele escreve:

“Com Trump e Trumpismo … experimentamos uma normalidade maligna nacional: mentiras e falsificações extensas, corrupção sistêmica, ataques ad hominem a críticos, destituição de instituições e descobertas de inteligência, rejeição de verdades sobre mudanças climáticas e de cientistas que as expressam, repreensões de nossos aliados internacionais mais próximos e acolhimento de ditadores, e deslegitimação desdenhosa do partido de oposição. Essa constelação de normalidade maligna tem ameaçado e, por vezes, virtualmente substituiu, a democracia americana.”

Luta contra a política fascista através de educação cívica

O historiador David Blight escreveu que a “maior ameaça de Trump à nossa sociedade e à nossa democracia não é necessariamente seu autoritarismo, mas sua ignorância essencial – da história, da política, do processo político, da Constituição.” Blight está apenas parcialmente certo nisso. A maior ameaça à nossa sociedade é uma ignorância coletiva que legitima formas de esquecimento organizado, modos de amnésia social e a morte da educação cívica. A noção de que o passado é um fardo que deve ser esquecido é uma peça central dos regimes autoritários. Enquanto alguns críticos evitam a comparação de Trump com a era nazista, é crucial reconhecer os sinais alarmantes neste governo que ecoam uma política fascista do passado. Como observa Jonathan Freedland, “os sinais estão lá, se é que podemos suportar olhar”. Rejeitar a comparação entre Trump-nazismo torna mais fácil acreditar que não temos nada a aprender da história e ter conforto na proposição de que ele não pode acontecer mais uma vez. Nenhuma democracia pode sobreviver sem uma cidadania informada e educada.

A lição pedagógica oferecida pelo processo de impeachment excedeu em muito seus objetivos limitados declarados como uma forma de educação cívica. O processo não apenas ignorou o que havia de mais grave dos crimes de Trump, mas também falhou em examinar uma série de linhas políticas, que juntas, constituem elementos comuns a uma crise global na democracia. O processo de impeachment, quando visto como parte de uma crise mais ampla da democracia, não pode ser analisado e removido dos fios ideológicos, econômicos e culturais que se entrelaçam através de questões frequentemente isoladas, tais como o nacionalismo branco, a ascensão de um Partido Republicano dominado por extremistas de direita, o colapso do sistema bipartidário e a ascensão de uma mídia controlada por empresas, que funciona como uma máquina de desimaginação e como um sistema corrosivo de poder.

A apresentação do Estado da União por Trump foi uma ode ao capitalismo com esteroides, um futuro controlado por 1% e uma política que substitui narrativas democráticas e lutas por emancipação e igualdade social por uma política fascista.

Crucial para qualquer política de resistência é a necessidade de analisar o uso da política por Trump como espetáculo e como abordá-lo não isoladamente, não apenas como uma forma de desvio da atenção e teatro político, mas também como parte de um projeto político mais abrangente no qual formas atualizadas de autoritarismo e versões contemporâneas do fascismo estão sendo mobilizadas e ganhando tração nos Estados Unidos e em todo o mundo. Federico Mayor Zaragoza, ex-diretor-geral da UNESCO, afirmou uma vez: “Você não pode esperar nada de cidadãos sem instrução, exceto uma democracia instável”. No atual momento histórico e era de Trump, seria mais apropriado dizer que em uma sociedade na qual a ignorância é vista como uma virtude e a ‘alfabetização’ e educação cívicas são vistas como um passivo, você não pode esperar nada além de fascismo.

O discurso do Estado da União de Trump deixou claro que ele vive em um mundo de mentiras, espetáculos e um complexo mecanismo de manipulação que destrói qualquer noção viável de cultura cívica e instituições que são fundamentais para uma democracia robusta.

A retórica enganosa e as mentiras, que Trump produziu no discurso do Estado da União, precisam ser combatidas com o poder de uma educação cívica. Na luta contra as falsidades fabricadas e o ecossistema do ódio, a ‘alfabetização’ cívica é um recurso fundamental. Viver dentro da verdade, como Václav Havel disse uma vez, exige modos de educação cívica em vários locais que usam o “poder da cultura para energizar e articular questões políticas”. Nesse caso, a educação cívica exige não apenas uma luta por ideias, mas também uma luta pelas instituições públicas e esferas críticas que produzem, legitimam e sustentam essas ideias.

Qualquer tentativa de derrotar Trump deve expor o tipo de mentira central em seus implacáveis comícios, tuítes e discursos, ao mesmo tempo em que constrói uma política ligada ao questionamento e à responsabilização do poder. A educação cívica e uma cultura cívica devem se tornar centrais na política, seguindo a proposição de que a democracia não pode existir sem uma cultura democrática formativa cuja tarefa é encenar modos democráticos de governar e produzir pensadores críticos que possam questionar as instituições existentes e as relações dominantes de poder. Sob tais circunstâncias, como escreve o crítico social Cornelius Castoriadis, a ‘alfabetização’ cívica fornece a estação de trabalho cultural em que “a questão da justiça” se torna central para “a questão da política”.

A ‘alfabetização’ cívica e a educação cívica são um antídoto para a cultura de mentira e manipulação de Trump e oferecem a primeira linha de defesa contra as máquinas de desimaginação de Trump, que incluem tanto a imprensa e talk shows da direita, como plataformas de mídia digital protofascistas reacionárias. A despolitização é uma forma de dominação na qual a agência se torna tóxica e não-reflexiva, enquanto o pensamento crítico é depreciado e a esperança real é banalizada ou se degenera em cinismo.

O uso de retórica apocalíptica e exagerada de Trump em seu Estado da União falam à linguagem maligna, à verdade, à memória histórica e ao bem público. Seu discurso serviu como um lembrete de que o fascismo começa com a linguagem. O que precisa ser lembrado também é que a ‘alfabetização’ cívica também começa com a linguagem, não como uma ferramenta de violência, mas como um meio de desenvolver modos coletivos de resistência ligados a mudanças e planejamento estruturais reais.

O discurso do Estado da União de Trump foi simplesmente outro exemplo da descida ao abismo constitucional e político no qual a ilegalidade e a crueldade se tornaram norma e apoiadas por reivindicações grandiosas que abandonam qualquer pretensão à verdade a serviço do poder. Mudanças na linguagem tornaram difícil imaginar a promessa de uma democracia robusta. Não devemos esquecer que a ‘alfabetização’ cívica não afasta a realidade, a verdade ou a democracia, ao contrário, oferece os alicerces de uma cultura cívica formativa na qual o mundo fascista do drama fabricado e sua subjacente camisa de força de bom senso pode ser desafiado por indivíduos que podem falar, escrever e agir a partir de uma posição de agência e empoderamento.

A ‘alfabetização’ cívica trata da possibilidade de interpretação como um ato de intervenção que pode conectar problemas privados a forças sistêmicas mais amplas. A apresentação do Estado da União por Trump foi uma ode ao capitalismo com esteroides, um futuro controlado por 1% e uma política que substitui narrativas democráticas e lutas por emancipação e igualdade social por uma política fascista. Se se pretende derrotar Trump e sua contrarrevolução neoliberal, o primeiro passo é expandir e desenvolver as culturas formativas, instituições críticas, modos de identificação e formas de ‘alfabetização’ cívica capazes de desafiar a retórica violenta e as energias afetivas do fascismo. Só então podemos começar a construir um movimento popular disposto a se envolver em formas de resistência que possam superar as forças neoliberais protofascistas e racistas que produziram Trump.

 

* Henry A. Giroux é catedrático na McMaster University, Canadá, e autor ou coautor de mais de 65 livros. Recebeu o prêmio Paulo Freire em Pedagogia Crítica da American Educational Research Association.

Redação

2 Comentários

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    1. Ola Rogério, fiz uma busca mas não consegui encontrar esse texto sugerido por você, deve ser problema de algoritmo… Será que você poderia precisar o autor ou o possível sítio Internet? Obrigado!

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